quarta-feira, 27 de junho de 2007

Jogar o juízo...

"A imagem é a duplicidade da revelação. O que vela revelando, o véu que revela voltando a velar dentro da indecisão ambígua da palavra revelar é a imagem. A imagem é imagem nesta duplicidade, não o duplo do objeto, mas o desdobramento inicial que permite depois à coisa ser figurada; no entanto, mais acima está o dobramento, a volta da volta, esta 'versão' sempre se invertendo e levando em si o vai-e-vem de uma divergência." (BLANCHOT, Maurice. El diálogo inconcluso. Caracas: Monte Avila Editores Latinoamericana, 1996. p. 67)

A imagem do juízo final é o avesso de si mesma. A cada instante somos julgados; em cada reflexo inapreensível aos olhos está a nossa salvação; esta, a salvação, não nos é dada, ao contrário, ela é aquilo a que escapamos; ela nunca nos alcança; seu golpe é desferido sempre no vazio que nos antecede; purgados da salvação estamos.... irreparável é a nossa condição...

Histórias do sr. Keuner


O Reencontro

Um homem que o o sr. K não via há muito o saudou com as palavras: "O senhor não mudou nada". "Oh!", fez o sr. K., empalidecendo.


Sobre a traição

Deve-se manter uma promessa?
Deve-se fazer uma promessa?
Quando algo tem que ser prometido, não existe ordem. Então deve-se produzir essa ordem. O homem não pode prometer nada. O que o braço promete à cabeça? Que continuará um braço e não se tornará um pé. Pois a cada sete anos ele é outro braço. Se um trai o outro, trai o mesmo ao qual prometeu? Na medida em que alguém a quem algo foi prometido se vê em circunstâncias sempre novas, e portanto muda conforme as circunstâncias e se torna outro, como poderá ser mantida a ele a promessa feita a um outro? Aquele que pensa trai. Aquele que pensa nada promete, exceto que continuará sendo um homem que pensa.


[Aquilo que o sr. Keuner era contra]

O sr. Keuner não era a favor de despedidas, nem de saudações, nem de aniversários, nem de festas, nem do término de um trabalho, nem do começo de um novo período de vida, nem de acertos de contas, nem de vingança; nem de juízos conclusivos.



Bertold Brecht. Histórias do sr. Keuner. Tradução Paulo César de Souza. Ed. 34, 2006.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Idéia da Paz


Idéia da Paz
Desde que a reforma da liturgia reintroduziu na missa o sinal da paz entre os fiéis, nos demos conta, não sem desconforto, de que estes ingenuamente ignoravam o que tal sinal podia ser e, uma vez que o ignoravam, depois de alguns instantes de perplexidade, recorriam ao único gesto que lhes era familiar e se davam, sem muita convicção, as mãos. Seu gesto de paz era, portanto, o mesmo que, nas contratações dos mercadores e das feiras campesinas, ratifica o cumprimento do acordo.
Que o termo paz indicasse originalmente um pacto e uma convenção já está escrito no seu étimo. Mas o termo que, para os latinos, indicava o estado que derivava daquele pacto não era pax, mas, otium, cujas incertas correspondências nas línguas indo-européias (gr. aúsios, vazio, aútos, em vão; got. auspeis, vazio; isl. aud, deserto) convergem na esfera semântica do vazio e da ausência de finalidade. Um gesto de paz poderia ser, então, tão somente um gesto puro, que não quer dizer nada, que mostra a inatividade e a vacuidade da mão. E assim é, de fato, em muitos povos, o gesto de saudação; e, talvez, exatamente porque o aperto de mãos é hoje simplesmente uma maneira de saudar-se que, chamados pelo sacerdote, os fiéis recorrem inconscientemente a este gesto incolor.
A verdade é, no entanto, que não existe e não pode existir um sinal da paz, porque a verdadeira paz estaria somente onde todos os sinais fossem cumpridos e extintos. Toda luta entre os homens é, de fato, uma luta pelo reconhecimento, e a paz que segue a esta luta é somente uma convenção que institui os sinais e as condições do mútuo e precário reconhecimento. Tal paz é sempre e somente paz das nações e do direito, ficção do reconhecimento de uma identidade na linguagem, que vem da guerra e acabará na guerra.
Não o referir-se a sinais e imagens garantidos, mas que não possamos reconhecer-nos em nenhum sinal e em nenhuma imagem: é esta a paz – ou, preferindo-se, este regozijo que é mais antigo que a paz e que uma admirável parábola franciscana define como um lar – noturno, paciente, forasteiro – no não reconhecimento. Este é o céu perfeitamente vazio da humanidade, a exposição da inaparência como única pátria dos homens.

AGAMBEN, Giorgio. Idea della Prosa. Macerata: Quodlibet, 2002. pp. 63-64. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Spectrum




"Na época da alienação máxima dos homens entre si, das relações infinitamente mediatizadas - enfim, as únicas que eles têm -, inventou-se o filme e o gramofone. No filme o homem não reconhece o seu próprio andar, no gramofone não reconhece sua própria voz."

(Walter Benjamin. A Modernidade e os Modernos. p. 103)



Canto espectral
Ó Górgone que me guardas,
mirastes além da minha alma trincada!
Formastes a rocha deste ser inamovível;
findastes o puro inapreensível.
Não canto o estático,
rompo a morte,
encontro a morte.
Aliás,
morro vivendo, ou vivo morrendo?
Não encontro os rastros daquele calçado antigo.
Não escuto o eco daquele grito sentido.
Apenas vago...
Ou vaga está a rocha que 'eu sou'?
Quem sabe nela pousará um passarinho...

sábado, 16 de junho de 2007

À memória de L. Bloom.


“Tu, enquanto forjavas,
nas cidades do desterro,
naquele desterro que foi
teu detestado e escolhido instrumento,
a arma da tua arte,
construías teus labirintos,
infinitesimais e infinitos,
admiravelmente mesquinhos,
mais populosos que a história.”

Invocação a Joyce. Jorge Luis Borges (“Elogio da Sombra”)



Mnemolembro

Escritaestaticautomatica
torpor de frágeis nervos

tamborilar nasintaxe
aspirar o pestilentoespectro
chafurdar no conceptus
E lançar-se ao etéreo de um concreto

Mas ai, evaporam-se-me as reminiscências!
Presto cultos pagãos ao deus Acaso,
E a Fortuna lança-me, com que constância!, nas cômicas encruzilhadas
Do Minotauro que matou Teseu[1]

Ariadne foi minha puta na última esquina
Gastei com ela o vintém ganho no coup de des
Jogado mallamercadoramente em algum cassino barato desse labirinto
(quiçá pelo próprio diabo de paletó de pelica)
Ces’t une sazon en enfer, la vie...

Naufrago e usufruo da lotus letárgica
Com o sátiro Ulisses lotófago
(Porcos nos espreitam por todos os lados
amarrados no mastro de uma nau)

conta-me históriashistéricas odisséicas
de sereias que o mataram de rir
e de Sancho que Pança, seu fiel apóstolo,
que o ajudou de Ítaca a se evadir.

Vis nigromantes o impeliram à segunda fuga
Além das homéricas cavalarias da ilíada
Das quais também oniricamente pugnou


Enquanto escuto cubro-me nos fios da teia de Penélope
mesmo rotos, puídos, sujos
Sorrateiramente o furtei de seu rend-vouz.
Molhada mortalha de lágrimas ao tempo
(De uma memorável futura caftina)

Usá-la-ei como sudário
Para embalar o porco-amigo-morto de Ulisses

Empanturrópiou-se.

E será justamente a travessia do Dom Lotófago Mor
Logo o matarei com minha escrita automática.
Está carregada, destravada:

Odisseu, Overdose.


jnf. 5.05.07




[1] descaso do acaso? descasco.
caso conandoyleano: cascos minotáuricos
réu confesso: bovino in veritas.

Fuga do irrisório



A escatologia contemporânea enoja-me.
Malfadados, rumo ao fracasso!!!
À putrefação cômica do seu estado presente!!!
Ao diálogo cósmico atemporal com o vazio que preenche o nada
Risonhos cadáveres exumados prenhes de certezas, avante!
As pernas que agora se movem sabem-se já imobilizadas
Catalogadas no vasto mostruário impassível das verdades eternas...

"As almas tímidas sempre vêem monstros pela frente, seja lá o nome que tenham, hipogrifos ou hitlerianos. O maior pavor humano é o da expansão da consciência. Toda a parte assustadora, hedionda da mitologia deriva desse medo. 'Vivamos em paz e harmonia!', suplica o medíocre. Mas a lei do universo determina que a paz e a harmonia só podem ser conquistadas pela luta íntima. O medíocre não quer pagar o preço desse tipo de paz e harmonia; quer encontrá-la já pronta, feito terno confeccionado em série na fábrica." (Henry Miller. A hora dos assassinos)

Saber-se cooptado pela mediocridade é o grande motivo de glória deste mundo do ocaso...

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Instantâneos do etéreo-concreto - Eugene Atget









"No entanto, o decisivo na fotografia continua sendo a relação entre o fotógrafo e sua técnica. Camile Recht caracteriza essa relação com uma bela imagem. 'O violinista precisa primeiro produzir o som, procurá-lo, achá-lo com a rapidez do relâmpago, ao passo que o pianista bate nas teclas, e o som explode. O instrumento está à disposição do pintor, como do fotógrafo. O desenho e o colorido do pintor correspondem à sonoridade do violinista; como pianista, o fotógrafo precisa lidar com um instrumento sujeito a leis limitativas, que não pesam tão rigorosamente sobre o violinista. Nenhum Padewski jamais alcançará a glória de um Paganini, nem exercerá, como ele, o mesmo fascínio mágico.' Mas existe um Busoni da fotografia, para conservar a mesma metáfora: Atget. Ambos eram virtuoses e ao mesmo tempo precursores. Têm um modo incomparável de abrir-se às coisas, com o máximo de precisão. Mesmo em seus traços existe uma semelhança. Atget foi um ator que retirou máscara, descontente com sua profissão, e tentou, igualmente, desmascarar a realidade. Viveu em Paris, pobre e desconhecido, desfazia-se de suas fotografias, doando-as a amadores tão excêntricos como ele, e morreu a pouco tempo, deixando uma obra de mais de quatro mil imagens. (...) Os publicistas contemporâneos 'nada sabiam sobre aquele homem que passava a maior parte do tempo percorrendo os ateliês, com suas fotos, vendendo-as por alguns cêntimos, muitas vezes ao mesmo preço que aqueles cartões-postais que, em torno de 1900, representavam belas paisagens urbanas envoltas em numa noite azulada, com uma lua retocada. Ele atingiu o pólo da suprema maestria, mas na amarga modéstia de um grande artista, que sempre viveu na sombra, deixou de plantar ali seu pavilhão. Por isso, muitos julgam ter descoberto aquele pólo, que Atget já alcançara antes deles.' Com efeito: as fotos parisienses de Atget são as precurssoras da fotografia surrealista, a vanguarda do único destacamento verdadeiramente expressivo que o surrealismo conseguiu pôr em marcha."


Walter Benjamin. Pequena história da fotografia (1931). In: Obras escolhidas I (tradução Sérgio P. Rouanet). São Paulo: Brasiliense, 1994.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Francoparlantes


















Contracultura canábica
Ovelhas vermelhas da família
sessenta e oito no maio
69 no meio
Éramos Gennet’ais!
ripongas estudantes de cinesofia
e guerrilheiros de all-star
líamos Debord
e nos ufanávamos
antimperilistas, anarquistas ou socialistas
trotkistas, maoistas, leninistas
Guevaras.
Situacionistas.

Hoje pagamos condomínio
E cumprimos prazos.

O ex-trangeiro
















L'Etranger

"Qui aimes-tu le mieux,homme énigmatique,dis? ton père,ta mère, ta soeur ou ton frère?
-Je n'ai ni père,ni mère,ni soeur,ni frère.
-Tes amis?
-Vous vous servez là d'une parole dont le sens m'est resté jusqu'à ce jour inconnu.
-Ta atrie?
-J'ignore sous quelle latitude elle est située.
-La beauté?
-Je l'aimerais volontiers,déesse et immortelle.
-L'or?
-Je le hais comme vous haïssez Dieu.
-Eh!qu'aimes-tu donc,extraordinaire étranger?
-J'aime les nuages...les nuages qui passent...là-bas...là-bas...les merveilleux nuages!".

Charles Baudelaire [Petits poèmes en prose - Le spleen de Paris]

HOMÉRICO


Retornar à Ítaca de pensamentos audazes
Em sagas metafísicas e carnais
Sem fugir das sereias,
Nem do ópio lotófago.


Ab OVO... estraçalhada casca


É um início alucinatório. Com febre na madrugada. Subterrâneos.

Poetagens, cronopiagens, flanagens, derivas, delírios. Exaustão e amnésia. Instalação surrealista. Sussurealista...

A forma é conteúdo e o conteúdo é forma. Sem disjunções e paternidades.

Merdas e suores e vomitadas, deririun tremens Da lógica. Flanai-vos e multiplicai-vos. Sede múltiplos. Indômitomesticaveis.