sábado, 27 de outubro de 2007

O mistério das cousas



Há Metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber o que não sabem?
"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas,
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De que, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.


Alberto Caeiro


in Pessoa, F. (1981): Obra Poética, Rio de Janeiro: Ed. Aguilar, pp. 140-1.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Seis fragmentos-tese de teoria da modernidade





I.



Tratar, mesmo que simploriamente, de lançar interpretações sobre as configurações e matizes da tradição modernista brasileira é confrontar-se, em certo sentido, com o pré-requisito (quiçá heurístico?) da formação de um entre-lugar – condição (aporética) de possibilidade - para fixar essa análise. Ou melhor, entre-lugares.
Entre especificidades, localismos singulares e contextos de pretensões universalizatórias; entre a modernidade entendida como modernização (na acepção weberiana do termo; técnica, formal, burocrática, imbricada com a trajetória do capitalismo ocidental) - tão hegemônica nas paragens tupiniquins - e facetas polifônicas relacionadas ao conceito, operático ou demoníaco, do moderno em sentido amplo, principalmente no terreno estético (ou inestético
[1]); entre o museu-sarcófago-instituição da memória e a exaustão melancólica da amnésia[2]; entre processos e acontecimentos; entre sollen e sein, e entre ser e devir; entre territorialização e desterritorialização; entre Irineu Funes e Pierre Menard; entre o movimento e a vertigem; entre o moderno e o pós-moderno.
E, mesmo apresentando estes locais, nada os assegura contra os cortes apeleseanos (hosomi
[3]) de novas distinções e, consequentemente, proliferações. Se se distinguem topoi específicos isto é feito apenas para facilitar a análise, nunca estes se apresentarão de maneira peremptória, inabalável, salvo no refúgio generalizado de mitologemas e filosofemas biunívocos que presidiram em grande parte a estruturação da versão monumental de modernidade ocidental (v.g., oikos-pólis; público-privado; cidade-campo; humano-inumano; racional-irracional; falante-vivente; ... ad nauseam). Ficcionalização encarnada, coagulações impeditivas de devires, aqui combatida.
Cortes que convergem, em boa parte de seu fluxo, para lugares ontologicamente indiscerníveis, irredutivelmente híbridos, mestiços... irremediavelmente indecidíveis.


II.



À máquina nacionalista projetada da Europa oitocentista e toda ficção inerente ao princípio político de natividade aplicada nos séculos e séculos de antropogeografização do conceito de Estado-nação (o Volksgeist) - obscuros estilhaços ontológicos de tradição também herdada pelo modernismo monumental brasileiro - resta a tarefa de desativação a partir de uma crítica (constantemente autocrítica
[4]) descompromissada com origens (totalidades) e com identidades. Hibridismo e singularidades quaisquer. A teoria suja e a teoria arremessada na contingência pura.


III.



Um parangolé
[5] modernista. Teoria que assume o fluir da leveza dançante nietzscheana como ponto de chegada e ponto de partida de seu itinerário. Ou melhor, abole os pontos em deslocamentos imprevistos e inauditos, gingando malandramente as hierárquicas intransigências de sujeitos e objetos. Incolmatável vazio aceito. Visual e táctil e anestésica. Dadá é nada. Parangolé é nada.



IV.


Afirmar a pura contingência implica lançar-se frente a frente com um nada a ser nadificado. Fazer novo uso, profanar, o vazio da condição contemporânea. Deslocá-lo do dispositivo do espetáculo hipertrofiado que insiste em capturá-lo.




V.



À teoria da modernidade que procure realmente enfrentar as ambivalências e aporias que o mundo contemporâneo pós-democrático espetacularizado lança-lhe como enigmas, caberá como imperativo inserir-se em novas temporalidades, tornando inoperante a escatologia secularizada do tempo linear-progresivo-homogêneo-vazio (inerte entre o foi e o será, o não mais e o ainda não). Frente ao fim do tempo, restará contrapor o tempo do fim.

VI.



Metáforas do que nos resta. O Bartleby melvilleano e o Ulisses joyceano.

Só então uma potência que tanto pode a potência como a impotência é, então, a potência suprema. Se toda potência é simultaneamente potência de ser e potência de não ser , a passagem ao ato só pode acontecer transportando (Aristóteles diz “salvando”) no ato a própria potência de não ser. Isso significa necessariamente que, se é próprio de todo pianista tocar e não tocar, Glenn Gould é, no entanto, o único que pode não não tocar, e aplicando a sua potência não apenas ao ato, mas a sua própria impotência, toca, por assim dizer, com a sua potência de não tocar. Face à habilidade, que simplesmente nega e abandona a própria potência de não tocar, a mestria conserva e exerce no ato não a sua potência de tocar (é esta a posição da ironia, que afirma a superioridade da potência positiva sobre o ato), mas a de não tocar.
Em De Anima, Aristóteles anunciou sem meios-termos esta teoria, precisamente a propósito do tema supremo da metafísica. Se o pensamento fosse, de fato, apenas potência de pensar este ou aquele inteligível, então – argumenta Aristóteles – ele desapareceria desde logo no ato e ficaria necessariamente inferior ao próprio objeto; mas o pensamento é, na sua essência, potência pura, isto é, também potência de não pensar e, como tal, como intelecto possível ou material é comparado pelo filósofo a uma pequena tábua de escrever na qual nada está escrito (é a célebre imagem que os tradutores latinos nos restituem com a expressão tabula rasa, ainda que, como observavam os antigos comentadores, se devesse falar antes de rasum tabulae, isto é, da camada de cera que reveste a tábua e que o estilete risca.
É graças a esta potência de não pensar que o pensamento pode virar-se para si próprio (para a sua própria potência) e ser, no seu auge, pensamento do pensamento. Neste caso, o que ele pensa, no entanto, não é um objeto, um ser-em-ato, mas essa camada de cera, o rasum tabulae, que não é mais do que sua própria passividade a sua pura potência (de não pensar): na potência que se pensa a si própria, ação e paixão identificam-se e a tábua de escrever escreve-se por si ou, antes, escreve a sua própria passividade.
O ato perfeito da escrita não provém de uma potência de escrever, mas de uma impotência que se vira para si própria e, deste modo, realiza-se a si como ato puro (a que Aristóteles chama de intelecto agente). Por isso, na tradição árabe, o intelecto agente tem a forma de um anjo, cujo nome é Qalam, Penna, e cujo lugar é uma potência imperscrutável.

Bartleby, isto é, um escrivão que não deixa simplesmente de escrever, mas “prefere não”, é a figura extrema desse anjo, que não escreve outra coisa do que sua potência de não escrever.
[6]

Ulisses de Joyce. Leopold Bloom. Um dia de um homem como romance sincopado, frenético, no tamborilar nos limites da linguagem... os átimos, a não durabilidade e toda a narrativa para se imortalizar o fugaz, o comezinho dia de um homem qualquer. Irredutível singularidade. Bloom, apenas. Não estipula sua singularidade em relação a uma propriedade comum, apenas tal qual é
[8]. O dia de um homem qualquer, ser-tal com todos os seus predicados. Amabilidade. Molly. “Porque o amor nunca escolhe uma determinada propriedade do amado (o ser-louro, pequeno, terno, cocho), mas tão pouco prescinde dela em nome de algo insipidamente genérico (o amor universal): ele quer a coisa com todos os seus predicados, o seu ser tal qual é”[9].
Para Agamben, o Amável, a singularidade qualquer, nunca é inteligência de uma qualidade ou essência, ou diríamos, de uma totalidade, apenas uma “inteligência” de uma “inteligibilidade” (que se use tais palavras num sentido lato). A anamnese erótica de Platão, movimento que transforma o objeto não na direção de outro lugar, mas para seu próprio ter-lugar...
Um possível ter-lugar: o sempre-exílio no pensamento, pensamento-do-pensamento.
Contraponto a Menard e Funes: Bartleby.
Contraponto ao exilado - na provação entre o pecado e a redenção
[10] - Ulisses homérico ou dantesco (“prisioneiro gozoso de seus truques lógicos”[11]): o Ulisses qualquer de Joyce. Bloom.



“Tu, enquanto forjavas,
nas cidades do desterro,
naquele desterro que foi
teu detestado e escolhido instrumento,
a arma da tua arte,
construías teus labirintos,
infinitesimais e infinitos,
admiravelmente mesquinhos,
mais populosos que a história.”

Invocação a Joyce. Jorge Luis Borges (“Elogio da Sombra”)



Ilha de Nossa Senhora do Desterro - 1º semestre de 2006







[1] “Por inestética entendo uma relação da filosofia com a arte, que, colocando que arte é, por si mesma, produtora de verdades, não pretende de maneira alguma torná-la, para a filosofia, um objeto seu. Contra a especulação estética, a inestética descreve os efeitos estritamente intrafilosóficos produzidos pela existência independente de algumas obras de arte.” Epígrafe do Pequeno Manual de Inestética. (Tradução de Marina Appenzeller). São Paulo : Estação Liberdade, 2002.[2] “A cada instante, a medida do esquecimento e da ruína, o desperdício ontológico que portamos inscrito em nós mesmos excede largamente a piedade de nossas lembranças e de nossa consciência. Mas este caos informe daquilo que foi esquecido não é inerte nem eficaz – ao contrário, agita em nós com não menos força do que aquela da massa de lembranças conscientes, ainda que de modo diferente. Há uma força e uma operação do esquecido que não podem ser medidas em termos de memória consciente nem acumuladas como saber, mas cuja insistência determina o valor de todo saber e de toda consciência. O que o perdido exige não é ser lembrado e comemorado, mas permanecer em nós e entre nós enquanto esquecido, enquanto perdido – e somente nessa medida, enquanto inesquecível” Agamben, Giorgio. Il tempo che resta. Un commento alla Lettera ai Romani. Torino: Bollati Boringhieri, 2000. p. 24. (tradução de Vinícius Nicastro Honesko). “(...) la melancolía no sería tanto reaccíon regresiva ante la perdida del objeto de amor, sino la capacidad fantasmática de hacer aparecer como perdido um objeto inapropiable. (...) Recubriendo su objeto com los ornamento fúnebres del luto, la melancolía les confiere la fantasmagórica realidad de lo perdido; pero cuanto que ella es el luto por um objeto inapropiable, su estrategia abre um espacio a la existencia de lo irreal y delimita uma escena em la que el yo puede entrar em relación com ello e intentar uma apropriación com la que ninguna posesión podría parangonarse y a la que ninguna pérdida podría poner trampas”. Agamben, Giorgio. Estancias. La palabra y el fantasma en la cultura occidental. (Trad. Tomás Segovia). Pré-textos: Valencia, 2001.p 53. “Cansamo-nos de alguma coisa específica, particular, porém, o indefinido, o nada, nos exaure. L’epuisé provoca a náusea, conjunto de variáveis de uma situação dada que renuncia a todo significado a toda organização ou à hierarquização de metas e projetos, sem, no entanto, lançar-nos na simples indiferença. A exaustão produz a fissura, ou, em outras palavras, a distância, inseparável de si, do puro acontecimento, enquanto é a possibilidade, a chance que, pelo contrário, sustenta o acontecimento específico, ela denega o nada, mas, ao mesmo tempo, abole aquilo a que aspira”. Antelo, Raúl. Transgressão & Modernidade. Ponta Grossa: Ed. UEPG, 2001. p. 266.[3] “HOSOMI (o corte fino) Quer dizer ‘corpo estreito’. Fisicamente, designa a lâmina fina de um instrumento de corte, navalha, gilete, bisturi. Conota ‘figura de talha’, ‘agudez de corte’, resultado profundo obtido com o mínimo de matéria. Para os críticos japoneses, uma qualidade predominante nos haikais de Bashô. ‘Hosomi’: despojanddo até o limite. LEMINSKI, Paulo. Ventos ao vento. Rabiscos em direção a uma estética. In: Ensaios e anseios crípticos. (Organização e seleção Alice Ruiz e Áurea Leminski). Curitiba : Pólo editorial do Paraná : 1997. p. 86.[4] Devemos nos tornar impiedosos censores de nós mesmos, seguindo uma das teses (a décima quarta) sobre arte contemporânea de Badiou. “Convaincu de contrôler l’étendue entière du visible et de l’audible par les lois commerciales de la circulation et les lois démocratiques de la communication, l’Empire ne censure plus rien. S’abandonner à cette autorisation de jouir est ruine de tout art, comme de toute pensée. Nous devons être, impitoyablement, nos propres censeurs”.[5] Referência explícita à criação de Oiticica.[6] AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. (Tradução de Antônio Guerreiro). Lisboa : Editorial presença, 1993. p. 34-35.[8] Idem. p.11[9] Idem. p.12.[10] “(..) Un himno cristiano (el Salve Regina) llama a los hombres exsules filii Evae: en tanto que hijos de Eva, son exiliados in hac lacrimorum valle, y ruegan a la Virgem que les muetre el Salvador post hoc exsilium. Ésta es la recuperación o la substituión de cierto modelo judío del exilio (no el modelo cabalista, sino el modelo que comporta el regreso y la restauración final). Moralmente, el exilio es la prueba compreendida entra la falta ya la redención. Sin duda aquí, como en otras partes, el cristianismo ha helenizado al judaísmo. En el modelo griego, el exilio (si es que hay en verdad uno: quizá solo hay un elemento, un rasgo de su concepto moderno) es siempre el regreso, es el periplo de Ulises.” NANCY, Jean Luc. La existencia exiliada. (tradução de Juan Gabriel López Guix. In: Archipielago, nº 26-27, Barcelona, 1996. p. 36.[11] (...)
Foto Hélio Oiticica, 1964. "Nildo da Mangueira veste o Parangolé".

domingo, 21 de outubro de 2007

Baudelaire ou a Mercadoria Absoluta



A respeito da Exposição Universal de Paris de 1855 temos um testemunho excepcional. Baudelaire, que a visitou, deixou-nos as suas impressões em três artigos que apareceram, a breve distância de tempo um do outro, em dois jornais parisienses. É verdade que Baudelaire se limita a falar das belas artes e que seus artigos não são aparentemente diferentes das muitas crônicas escritas por ele para os Salons de 1845 e 1846; contudo, observando melhor, não haviam passado desapercebidas à sua prodigiosa sensibilidade a novidade e a importância do desafio que a mercadoria estava propondo para a obra de arte.

No primeiro artigo da série (que traz o título significativo De l´idée moderne du progrès appliquée aus beaux arts), descreve a sensação que o espetáculo de uma mercadoria exótica provoca em um visitante inteligente, além de mostrar-se consciente de que a mercadoria exige do espectador uma atenção de um novo tipo. "Que dirait un Winckelmann moderne" - pergunta-se ele - "en face d´un produt chinois, produit étrange, bizartre, contourné dans sa forme, intense par sa couleur, et quelque fois délicat jusqu´à l´évanouissement?" "Cependant" - responde ele - "c´est un échantillon de la beauté universelle; mais il faut, pour qu´il soit compris, que le critique, le sectateur opère en lui-même une transformation qui tient du mystère..."[1]. Não é por acaso que a idéia na qual se fundamenta o soneto sobre as Correspondances (que em geral é interpretado como a quintessência do exoterismo baudelairiano) tenha sido enunciada justamente no início do artigo sobre a Exposição Universal de 1855. Assim como Bosch, no limiar do capitalismo, havia tirado do espetáculo dos primeiros grandes mercados internacionais de Flandres os símbolos para ilustrar a sua concepção mística adamítica do Reino milenário, também Baudelaire, no início da segunda revolução industrial, tira da transfiguração da mercadoria presente na Exposição Universal a atmosfera emocional e os elementos simbólicos da sua poética. A grande novidade, que a Exposição já havia tornado evidente para um olhar atento como o seu, era que o mercado tinha deixado de ser um objeto inocente, cujo gozo e cujo sentido se esgotavam no seu uso prático, para carregar-se da inquietante ambigüidade a que Marx aludiria doze anos mais tarde, falando do seu "caráter fetichista", das suas "sutilezas metafísicas" e da suas "argúcias teológicas". Uma vez que a mercadoria tivesse libertado os objetos de uso da escravidão de serem úteis, a fronteira que separava desses últimos a obra de arte e que os artistas, a partir do Renascimento, tinham trabalhado incansavelmente para edificar, estabelecendo a supremacia da criação artyística sobre o "fazer" do artesão e do operário, tornar-se-ia extremamente precária.

Frente à féerie da Exposição, que começa a fazer convergir para a mercadoria o tipo de interesse tradicionalmente reservado à obra de arte, Baudelaire aceita o desafio e leva o combate diretamente para o próprio terreno da mercadoria. Conforme admitiu implicitamente ao falar do produto exótico como se fosse uma "amostra da beleza universal", ele aprova as novas características que a mercadorização imprime no objeto e está consciente do poder de atração que os mesmos deveriam exercer fatalmente sobre a obra de arte; mas, ao mesmo tempo, quer subtraí-los à tirania do econômico e à ideologia do progresso. A grandeza de Baudelaire diante da intromissão da mercadoria residiu no fato de ter respondido a essa intromissão, transformando em mercadoria e em fetiche a própria obra de arte. Ele separou, também na obra de arte, o valor de uso do valor de troca, a sua autoridade tradicional da sua autenticidade. A partir daí, tem-se a sua implacável polêmica contra toda interpretação utilitarista da obra de arte e a insistência com que proclama que a poesia não tem outro fim senão ela mesma. A partir daí também, a sua insistência no caráter inapreensível da experiência estética e a sua teorização do belo como epifania instantânea e impenetrável. A aura de uma intocabilidade gélida, que começa a partir desse momento a envolver a obra de arte, é o equivalente do caráter fetichista que o valor de troca imprime à mercadoria.

Mas o que confere à sua descoberta um caráter propriamente revolucionário é que Baudelaire não se limitou a reproduzir na obra de arte a cesura entre valor de uso e valor de troca, mas se propôs a cria uma mercadoria na qual a forma de valor se identificasse totalmente com o valor de uso, uma mercadoria, por assim dizer, absoluta, na qual o processo de fetichização fosse levado até o extremo de anular a própria realidade da mercadoria enquanto tal. Uma mercadoria em que valor de uso e valor de troca se anulariam mutuamente, e cujo valor residiria, por esse motivo, na inutilidade, e cujo uso, na sua intocabilidade, não é mais uma mercadoria: a mercadorização absoluta da obra de arte é também a abolição mais radical da mercadoria. A partir daí, tem-se a desenvoltura com que Baudelaire põe a experiência do choc no centro do próprio trabalho artístico. O choc é o potencial de estranhamento de que se carregam os objetos quando perdem a autoridade que deriva do seu valor de uso e que garante a sua inteligibilidade tradicional, a fim de assumirem a máscara enigmática da mercadoria. Baudelaire compreendeu que, se a arte quisesse sobreviver na civilização industrial, o artista deveria procurar reproduzir na sua obra a destruição do valor de uso e da inteligibilidade tradicional, que estava na raiz da experiência do choc: desta maneira, ele teria conseguido fazer da obra o próprio veículo do inapreensível e restaurar na própria inapreensibilidade um novo valor e uma nova autoridade. Isso significava, porém, que a arte deveria renunciar às garantias que lhe provinham da sua inserção em uma tradição, pela qual os artistas construíam os lugares e os objetos nos quais se realizava a incessante soldagem entre passado e presente, entre velho e novo, a fim de fazer da própria autonegação a sua única possibilidade de sobrevivência. Como Hegel já havia entendido, ao definir como um "nada que se auto-anula" as experiências mais avançadas dos poetas românticos, a autodissolução é o preço que a obra de arte deve pagar à modernidade. Por isso, Baudelaire parece atribuir ao poeta uma tarefa paradoxal: "celui qui ne sait pas saisir l´intangible" - escreve ele no ensaio sobre Poe - "n´est pas poète"; e define a experiência da criação como um duelo de morte "où l´artiste crie de frayer avant d´être vaincu".[2]

Foi sorte que o fundador da poesia moderna tenha sido um fetichista! Sem a sua paixão pelo vestuário e pela cabeleira feminina, pelas jóias e o maquillage (paixão expressa sem reticências no ensaio sobre Le peintre de la vie moderne e à qual esperava consagrar um minucioso catálogo do vestuário humano que nunca levou à execução), dificilmente Baudelaire teria podido sair vitorioso do seu confronto com a mercadoria. Sem a experiência pessoal da milagrosa capacidade do objeto-fetiche de tornar presente o ausente, através da sua própria negação, talvez ele não tivesse ousado atribuir à arte a tarefa mais ambiciosa que jamais um ser humano confiou a uma criação sua: a apropriação mesma da irrealidade.

[1] "O que diria um Winckelmann moderno" - pergunta-se ele - "frente a um produto chinês, produto estrangeiro, bizarro, contornado em sua forma, intenso por sua cor, e às vezes delicado a ponto de desvanecer? "Contudo" - responde ele - "é uma amostra da beleza universal; mas importa, para que ele seja compreendido, que o crítico, o espectador efetue nele mesmo uma transformação que tem algo de misterioso..."

[2] "Quem não sabe captar o intangível" - escreve ele no ensaio sobre Poe - "não é poeta"; e define a experiência da criação como um duelo de morte "no qual o artista grita de pavor antes de ser vencido".

(AGAMBEN, Giorgio. Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: UFMG, 2007. pp. 73-76. Tradução: Selvino Assmann)

domingo, 14 de outubro de 2007

Tese III



O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os insignificantes, tem em conta, fazendo isso, a seguinte verdade: nada daquilo que alguma vez aconteceu deve ser considerado como perdido para a história. Certamente só à humanidade redimida pertence plenamente o seu passado. Isto quer dizer que apenas para ela, em cada um dos seus momentos, o passado se tornou citável. Cada um dos instantes que ela viveu torna-se uma citation à l´ordre du jour - e esse dia é precisamente o último.


(BENJAMIN, Walter. Teses sobre a Filosofia da História. In: Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio D´Água, 1992. p. 158. Tradução: Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto.)

sábado, 13 de outubro de 2007

Sobre trapeiros, poetas e restos


Os poetas encontraram o lixo das sociedades nas ruas e no próprio lixo seu assunto heróico. Com isso, no tipo ilustre do poeta aparece a cópia de um tipo comum. Trespassam-no os traços do trapeiro que ocupou Baudelaire tão assiduamente. Um ano antes de “O Vinho dos Trapeiros”[Le Vin des chiffoniers – Fleurs du Mal] foi publicada uma descrição em prosa dessa figura: “Aqui temos um homem - ele tem de recolher os restos de um dia da capital. Tudo o que a grande cidade jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que quebrou, ele o cataloga, ele o coleciona. Compila os arquivos da devassidão, o cafarnaum da escória; ele procede a uma separação, a uma escolha inteligente; recolhe, com um avarento um tesouro, o lixo que, mastigado pela Deusa da Indústria, tornar-se-á objeto de utilidade ou de gozo.” Essa descrição é uma única metáfora ampliada do comportamento do poeta segundo o coração de Baudelaire. Trapeiro e poeta, os dejetos dizem respeito a ambos; solitários, ambos realizam seus negócios nas horas em que os burgueses se entregam ao sono; o próprio gesto é o mesmo em ambos. Nadar fala do pas saccadé [passo intermitente] de Baudelaire; é o passo do poeta que erra pela cidade procurando a presa das rimas; deve ser também o passo do trapeiro que, a todo instante, se detém no seu caminho para recolher o lixo em que tropeça.


BENJAMIN, Walter. Fragmento de Paris do Segundo Império. Extraído de Obras Escolhidas III. (Trad. de José Carlos Martins Barbosa com alterações de J. M. Gagnebin). São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 78-79.


Foto: Eugene Atget, “Ragpicker,” 1901, photograph, 8 3/4 x 7 1/8.

Tese XIV

A origem é o fim.
KARL KRAUS, Palavras em Verso, I.

A história é o objecto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogéneo e vazio, antes formando um tempo pleno de "agora". Assim, para Robespierre, a Roma antiga era um passado carregado de "agora", surgido do contínuo da história. A Revolução Francesa considerava-se um recomeço de Roma. Citava a antiga Roma exactamente como a moda cita um traje antigo. É ao percorrer a selva de outrora que a moda cheira o aroma daquilo que é actual. Ela é o salto de tigre no passado. Um tal salto não pode efectuar-se a não ser numa arena dirigida pela classe dirigente. Efectuando em pleno ar, o mesmo salto é o salto dialéctico, a revolução tal qual a concebeu Marx.

(BENJAMIN, Walter. Teses sobre a Filosofia da História. In: Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio D´Água, 1992. p. 167. Tradução: Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto.)

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Tese V

Paul Klee - Angelus Novus

O verdadeiro rosto da história afasta-se veloz. Só podemos reter o passado como uma imagem que no instante em que se deixa reconhecer lança um clarão que não voltrará a ver-se. "A verdade não nos escapará" - esta palavra de Gottfried Keller caracteriza com exactidão, na concepção da história que têm os historicistas, o ponto em que o materialismo histórico realiza o seu avanço através dessa imagem. Irrecuperável é, com efeito, toda a imagem do passado que corre o risco de desaparecer com cada instante presente que nela não se reconheceu. (A feliz notícia trazida pelo ofegante historiógrafo do passado sai de uma boca que, talvez no próprio instante em que se abre, fala já no vazio.)


(BENJAMIN, Walter. Teses sobre Filosofia da História. In. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio D´Água, 1992. Tradução: Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto)

Sebastian Melmoth Aphorisms


A pontualidade é o ladrão do tempo.

Folgar é um trabalho de cão. Mas nada tenho contra o trabalho, desde que não tenha uma finalidade específica.

Vivemos numa época que lê demais para ser sábia e acredita demais para ser bela.

As boas intenções foram a ruína do mundo. Os únicos que fizeram alguma coisa no mundo foram aqueles que não tinham intenção alguma.

A experiência não tem valor ético. Ela é apenas o nome que o homem dá a seus erros. Em regra os moralistas consideram-na como uma espécie de aviso, atribuindo-lhe uma certa eficácia ética, para a formação do caráter, e louvaram-na achando que ensinava ao homem o que ele devia ou não fazer. Mas a experiência não é uma força motora, como tampouco o é a consciência. Ela demonstra que o nosso futuro parecer-se-á como o nosso passado, e que aquilo que fizemos uma vez com horror, voltaremos a fazê-lo mil vezes com alegria.

Até as verdades podem ser demonstradas.

O artista jamais deseja demonstrar coisa alguma.

Não há livros morais e livros imorais. Há livros bem escritos e livros mal escritos, apenas isto.

Poucas pessoas têm força suficiente para resistir às absurdas pretensões da ortodoxia.

Não sei como aquele sujeito pode suportar a sociedade londrina. Trata-se de uma pessoa da qual não se pode esperar mais nada, pois tolera uma sociedade formada por nulidades pretensiosas que não dizem nada.

O sentido do dever se parece com uma doença horrível. Destrói os tecidos do pensamento como certas doenças destroem os tecidos do corpo. A catequese terá de assumir graves responsabilidades.

A infância é uma longa carreira de inocente espionagem, surpreendendo coisas que não se deveriam saber.

A maturidade é uma longa carreira de imprudências: a arte de conversar consiste justamente em dizer aquilo que não deveria ser dito.

Para ocultar sua própria ignorância as pessoas inventam regras e dão conselhos, assim como sorriem para esconder as lágrimas.

Só os filisteus tentam avaliar uma personalidade na medida vulgar da produção.

O caminho do paradoxo é o caminho da verdade. Para pôr à prova a realidade é preciso vê-la andar na corda bamba. Só quando as verdades tornam-se acrobatas podemos julgar o valor delas.

Na Inglaterra as pessoas se esforçam para serem espirituosas até no café da manhã. Isto é uma coisa francamente horrorosa. Só as pessoas enfadonhas podem ser espirituosas no café da manhã.

O fato de um homem imolar-se por uma idéia não prova de forma alguma que ela seja verdadeira.

A arte é sempre inútil.

A instrução é uma coisa muito bonita, mas vale a pena lembrar, de vez em quando, que nada daquilo que realmente interessa pode ser ensinado.




Extraídos de Oscar Wilde (1854-1900). Aforismos. (Tradução de Mario Fondelli). Curitiba: Pólo Editorial do Paraná, 1997.




sábado, 6 de outubro de 2007

Vãs são as palavras



Dizia um retórico do passado que sua profissão consistia em "fazer com que as coisas pequenas parecessem grandes e como tal se aceitassem." O que equivale a dizer um sapateiro fazendo sapatos grandes para pés pequenos. Em Esparta tê-lo-iam fustigado por exercer ofício tão mentiroso e enganador. E penso que foi sem espanto que Arquimedes, um de seus reis, ouviu esta resposta de Tucídides, a quem indagava qual o mais forte na luta: Péricles ou ele. "É difícil verificá-lo, porque quando o derrubo ele persuade os espectadores de que não caiu, e ganha." Os que maquilam as mulheres causam menor mal (porquanto pouco se perde com não as ver ao natural) do que os que têm por profissão abusar, não de nossos olhos, mas da nossa inteligência, abastardando e corrompendo a própria essência das coisas.

As repúblicas bem organizadas e administradas não deram muita importância aos oradores. Assim foi em Creta e na Lacedemônia. Aríston diz com sabedoria que a oratória é a ciência de persuadir o povo. Sócrates e Platão a definem como a arte de enganar e adular. E os que se erguem contra esta definição geral, comprovam-na em seus preceitos. Os maometanos proíbem-lhe o ensino às crianças, por inútil. E os atenienses, entre os quais ela fora tão apreciada, ordenaram a supressão de suas partes mais importantes e que mais atuam sobre os sentimentos: o exórdio e a conclusão, ao verificarem quanto lhes era prejudicial.

Trata-se de um instrumento muito adequado a excitar ou acalmar o populacho alvoroçado e que, como a medicina, só se aplica aos Estados enfermos. Naqueles em que o vulgo ou os ignorantes tiveram todo o poder, como em Atenas, Rodes e Roma, e onde a coisa pública sofreu contínua agitação, proliferaram os oradores. Em verdade não se vêem muitos personagens adquirir grande influência nessas repúblicas, sem ajuda da eloqüência. Para Pompeu, César, Crasso, Lúculo, Lêntulo, Metelo, foi ela o principal fator de sua grandeza e de seu poder. Auxiliou-os mais do que a sorte das armas, o que não aconteceria em tempos melhores. L. Volúmnio, falando em público a favor da eleição de A. Fábio e P. Décio, ao consulado, dizia: "São homens que se fizeram na gueraa, homens de ação pouco afeitos às justas oratórias, caracteres como devemos exigir dos que elevamos ao Consulado; os de espírito manhoso, eloqüentes e eruditos, são bons para os cargos que se exercem sem sair de Roma, cargos de pretores, por exemplo, encarregados de aplicar as leis." Foi quando os negócios andavam pior, quando a tempestade das guerras civis abalava a cidade, que a eloqüência floresceu em Roma; assim as ervas daninhas em um campo abandonado ou não roteado ainda crescem com mais vigor. Pode-se concluir daí que os governos dependentes de um monarca têm menos do que os outros necessidade de eloqüência, pois a tolice e a credulidade da maioria, impelindo-a a ser manejada e orientada pelo ouvido ao doce som daquela música, sem que possa pesar nem conhecer a verdade das coisas pela força da razão, não se encontram tão facilmente em um só homem, o qual é possível assegurar contra os efeitos de tal veneno, mediante uma boa educação e bons conselhos. Nem a Macedônia nem a Pérsia tiveram oradores famosos.

Uma palavra acerca de um italiano com o qual acabo de me entreter e que serviu junto ao falecido Cardeal Caraffa na qualidade de mestre de hotel, cargo que exerceu até a morte do prelado. Falamos de seu cargo e, a respeito da ciência gastronômica, deu-me ele verdadeira preleção com gravidade e atitude de professor como se desenvolvesse um ponto da teologia. Enumerou-me as diversas espécies de apetites: o que se tem em jejum; os que se experimentam depois do e terceiro pratos; os meios de os satisfazer simplesmente ou de os excitar; a técnica dos molhos, a princípio de um modo geral e em seguida pormenorizadamente, entrando na minúcia dos ingredientes e de seus efeitos; a variedade de saladas segundo a estação, as que devem ser servidas cozidas e as que devem ser servidas frias, a maneira de as apresentar agradavelmente. Entrou depois em considerações acerca da ordem com que convém servir os pratos: "pois não é coisa de pouco saber como cortar uma lebre ou trinchar um frango." E tudo isso ornamentado de belas palavras como as que se usam para falar de um governo, de um império, o que me lembrou este trecho de Terêncio: "Salgado demais! queimando demais! insosso! está bom! repita isso outra vez! Dou-lhes meus melhores conselhos, de acordo com o pouco que sei. Finalmente insisto, Demea, para que tenham por espelho sua baixela. E ensino-lhes tudo." Observe-se que os próprios gregos elogiaram, e muito, o banquete que lhes ofereceu Paulo Emílio de volta da Macedônia. Mas não me ocupo aqui de fatos e sim das palavras que se usam para os relatar.

Não sei se outros sentem o que sinto, mas quando ouço nossos arquitetos lançar estas palavras pretensiosas: pilares, arquitraves, cornijas, ordem coríntia ou ordem dórica, e outras de seu jargão, não posso impedir-me de pensar imediatamente no palácio de Apolídon e, por comparação, o que citam com tanta ênfase não me parece muito superior às mesquinhas peças da porta de minha cozinha. Quando ouvis falar de metonímia, metáfora, alegoria e outras expressões da gramática não vos parece que sejam locuções de uma língua rara e peregrina? Pois se aplicam muito simplesmente às formas de linguagem que vossa criada de quarto emprega na sua tagarelice. É erro semelhante aplicar aos cargos de nosso Estado político os pomposos títulos que usavam os romanos, pois não há nenhuma relação nem quanto às funções, nem no que concerne à autoridade e ao poder. E é erro igualmente, que nos censurará a posteridade, atribuir a quem bem entendemos - e não são dignos deles - esses gloriosos cognomes com que a antiguidade honrou um ou dois personagens apenas em sua longa seqüência de séculos. Platão foi chamado "divino" por universal consenso e sem que ninguém pensasse em contestar-lhe o título, e eis que os italianos, que no entanto se vangloriam, com alguma razão, de ter o espírito mais vivo e o juízo mais equilibrado do que os demais povos, acabam de gratificar o Aretino com igual apelito, esse Aretino que, salvo pelo falar empolado, marchetado de saídas em verdade espirituosas, porém demasiado requintadas e rebuscadas, nada tem a meu ver, afora a eloqüência, que o coloque acima dos autores comuns deste século e que o aproxime, ainda que de longe, daquele que os antigos divinizaram. Quanto ao epíteto "grande" a quantos princípes não concederam, que em nada ultrapassam os outros?


(MONTAIGNE. Ensaios. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984. pp. 144-145. Tradução: Sérgio Milliet)