quarta-feira, 30 de julho de 2014

Estudo sobre a memória II



A M.H.

Está próxima a margem onde daremos nosso último adeus. Uma poeta, nos devaneios da mente de uma sua personagem - inventada homem, grafada a lápis, engolida com muito vinho -, disse que "há sonhos que devem permanecer nas gavetas, nos cofres, trancados até nosso fim. e por isso passíveis de serem sonhados a vida inteira." Hoje, por aqui, outros sonhos despertaram monstros, tal qual Goya vislumbrara. Caminhamos juntos, com passos já titubeantes, para a margem. Porventura ficarei e partirás, só, sem lembranças e sonhos, apenas com o sorriso antes tão duro e hoje já domado por tudo o que sonhou pela vida. Mas a partida também é sempre uma constante, é parte integral de todos os "adeus" que pronunciamos sem cessar desde o nascimento. Certa vez, choramos uma distância, a de um mar absolutamente azul - que nem mesmo Mallarmé teria pensado tão azul como nós, naquele dia, acabamos por pensá-lo -, que me jogava aos lugares por onde nossos passados corriam loquazes. E muitas são as vozes que hoje, por mais que impere a vontade de silêncio, ainda soam em cozinhas aquecidas por fogões a lenha, em meio ao cheiro da brasa que preparava os banquetes de outrora. E nada é capaz de detê-las, nenhum adeus, nenhum rio. A margem está próxima, mas, antes da partida, abro a gaveta dos sonhos para que os sonhemos juntos uma, duas, três, não importa quantas vezes.

Imagem: El Greco. Menino soprando brasa para acender uma vela. 1570-72. Museo Nazionale di Capodimonte, Napoli.

domingo, 27 de julho de 2014

Lendo um mundo



A M.G.L.

Mal completava uma semana de vida e, cruzando o Atlântico, vinham-me vozes da vida futura de uma portuguesa, talvez pesarosa por conta de alguma saudade:

"Hoje, passada a madrugada, continuei o dia com a minha parte mais sombria; soltaram-se-me as minhas recordações, presentes, passadas e futuras, e não encontrava caminho linear entre elas.

Não só importa escrever sucessivamente, mas saber quem me sucederá numa constelação de sentidos.

O que é a descendência?

A seiva sobe e desce numa árvore, estende-se pelos ramos, e é regulada pelas estações; eu e a árvore dispomo-nos uma para a outra, num lugar por nomear. Este lugar não tem significação de dicionário, não transmigrou para nenhum livro.

Agora o sol, o solo, a solo, encadeiam-me nas palavras  

Esta madrugada aproximei-me da certeza de que o texto era um ser."

Um ser distante, o texto, é a própria presença do impossível de ser apreendido e devorado pelo tempo. Sem mais lugares às sentenças definitivas, mesmo as plantas, inertes, são o puro movimento de sua seiva. Nascido, num tempo nascido, deixava meus ouvidos à espera dessas palavras perdidas das recordações presentes, passadas e futuras da poeta. Fazer sentido, como costuravam no céu as constelações os homens de outras épocas, desnuda o bebê de outrora sob imenso mar cinza que se abre, num domingo qualquer, sobre sua cabeça. Tudo o que respira, tudo o que vê e toca não é senão o grande texto do mundo à espera de leitura. "Mi nombre es alguien y no importa quién (...) He testimoniado el mundo: he confesado la extrañeza del mundo", diria Borges lido por Nancy lido pelos dedos que tocam este poema, e que, portanto, tocam parte de um mundo solto tal qual seiva que desce e sobe, num lugar sem nome. E as notas tocadas com tanta força, encadeadas no mundo imaginado por Bach, são também parte deste mundo e de todos os outros, criados ou por criar. Nenhuma imagem se carrega na descendência: há, isto sim, uma grande festa nos mundos (passados, presentes, futuros: todas abstrações) ainda a serem lidos por alguém, não importa quem.  

Imagem: Paul Gauguin. Adão e Eva. Casal tahitiano caminhando. 1900.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Estudo sobre a memória



Atrás das várias vozes
muitas vezes soçobram
alguns marginais algozes.

Das coisas todas lindas
sabia o poeta matreiro
não serem senão findas.

De que vale a dança
essa ilusão do passado
de uma triste criança?

Se toda memória contém
mais que algozes e danças
tristeza infinita que convém.


Imagem: Goya. Não havia remédio. 1797-8.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Estudo sobre um sorriso



Uma vida sem poesia é uma vida sem vida, meu amor.
Por que vais para o rio cujas margens não mais podes conhecer?
Habitas ainda as águas desse desterro?
Inóspito mundo onde a vida se confunde com esse rio,
onde pousas tua cabeça perdida em desvarios
chorando à espera de uma vida que vem.
Demasiado perdida, posto que encontrada,
a última lágrima de teus olhos parou ao lado de teu sorriso.
Jamais me esquecerei que isso ainda podia dizer,
jamais me esquecerei.
E já não sei o que amo: se uma língua perdida
ou teu pranto, o mesmo que sonda meus poemas.
Por que cruzas o rio onde já não podes me dizer, querida?
Nele não enxergo mais tua lágrima
e tudo soa vazio, insuportavelmente vazio.
Percebo tua vida indo embora
cruzando margens intratáveis,
nessas águas em que não conheço nem tuas lágrimas
nem teu sorriso. 

Imagem: Giovanni A. Boltraffio. Retrato de uma senhora como Santa Lúcia. 1500. Museu Thyssen-Bornemisza, Madrid.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

À destinatária impossível



Para minha destinatária impossível.

Querida, mal acordo e me deparo, mexendo em meus papeis, com uma nota cuja caligrafia desconheço. Talvez essa letra redonda, aparada e precisa possa ser sua. Fico intrigado com o acaso da sua possível escritura, aliás, que fala sobre o acaso. Certa vez, talvez antes mesmo da sua existência, lhe enviei um poema cujos três primeiros versos agora repito:

La tierra giró para acercarnos,
giró sobre sí misma y en nosostros,
hasta juntarnos por fin en este sueño

O sonho em que nos juntamos terminou junto com a descoberta da sua nota, porventura uma pequena carta a mim remetida num dos disparates guiados pelo seu olhar profundo. O giro da terra borrou minhas memórias concretas, ainda pintadas na parede do quarto onde nos guardávamos tal qual dementes perdidos na terra dos desejos. Pode ser que esta carta seja ridícula, como fala um outro imaginário e impossível, Álvaro de Campos, mas, ainda assim, também impossível de não ser escrita. Aliás, o sonho em que nos juntamos depois do giro da terra foi o mesmo que colocou fim a sonhos anteriores, escritos em outras cartas, mapeados por outros aventureiros, e não passamos disso. Não há salvação para quem caiu no jogo da escritura, querida. E assim lembro do Bolaño, que você talvez nunca leu, quando, perto do leito de morte, ao responder a pergunta "O mundo tem remédio?", disse: "o mundo está vivo, e nada vivo tem remédio, e essa é nossa sorte." Nossa sorte, o irremediável, está distante, está sempre em fuga, como por vezes estive de você (mas não é essa a experiência amorosa que os provençais perceberam? Todo amor não é sempre amor de lonh, como cantava Jaufré Rudel? - Iratz e dolens m'en partirai / S'eu no vei cest'amor de lonh). Acho que começo a divagar sobre a sorte do meu dia, querida (sorte encontrada naquelas letras redondas que suponho serem suas), e disso não mais quero lhe falar. Por outro lado, não poderia, depois de tanto tempo sem lhe escrever, terminar esta carta como quem se dá por exausto. Não! Aliás, nem mesmo a termino. Apenas a deixo a você como uma nota, cuja caligrafia talvez você desconheça, falando, mais uma vez, sobre o acaso, sobre o giro que a terra deu para nos aproximar mas que, hoje, talvez seja o giro de um amor distante...

Do seu remetente impossível.

p.s.: mando também um poema em que ressoam timbres de outras cartas que poderia lhe escrever.

domingo, 6 de julho de 2014

Fragmentos para dominar o silêncio


I
As forças da linguagem são as damas solitárias, desoladas, que cantam através de minha voz que escuto ao longe. E longe, na negra arena, jaz uma criança densa de música ancestral. Onde a verdadeira morte? Quis iluminar-me à luz de minha falta de luz. Os ramos morrem na memória. A jazente aninha-se em mim com sua máscara de loba. A que não pôde mais e implorou chamas e ardemos.

II
Quando da casa da linguagem se vai o telhado e as palavras não se protegem, eu falo.
As damas de vermelho se perderam dentro de suas máscaras e mesmo assim regressarão para soluçar entre flores.
Não é muda a morte. Escuto o canto dos enlutados selar as feridas do silêncio. Escuto teu dulcíssimo pranto florescer meu silêncio cinza.

III
A morte restituiu ao silêncio seu prestígio sedutor. E eu não direi meu poema e eu hei de dizê-lo. Mesmo se o poema (aqui, agora) não tem sentido, não tem destino.


Alejandra Pizarnik. Fragmentos para dominar el silencio. In.: Poesía Completa. Edición a cargo de Ana Becciu. Buenos Aires: Lumen, 2011. p. 223. (Trad.: Vinícius N. Honesko)

sábado, 5 de julho de 2014

Poema em prosa II



A R.A.

À parte todos os sonhos do mundo, a lucidez, como que a me colocar no ponto em que a morte poderia chegar insuspeitada, inebria a visão. Soam os sinos do tempo, e Nietzsche, perdido no olhar do animal - quase sem lembrança e feliz -, grita o esquecimento. Álvaro de Campos, só quero morder um pedaço de chocolate e, com a mesma verdade com que o fez aquela moça, afundar-me no que há de mais metafísico na existência: o esquecimento - ou, de fato, tudo talvez não seja senão a consequência de estar indisposto. As horas desfilam para mim como essas manequins sem vida, repletas das matérias do consumo (mais uma vez, a metafísica vulgar, esperada, desejada). Folheio o livro sobre a discrição heroica e toda matéria, tudo em que toco, respira meu corpo que evapora. Por que não volto ao chocolate? Olho para o mar e, tal qual o poeta de que mais gosto, fico esperando notícias de mim mesmo. Mas, hoje, nesta espera - e enquanto escrevo cartas jamais enviadas -, talvez não me sobre nada mais do que este chocolate que começa a derreter no meu bolso há pouco cheio de memória.

Imagem: Eustache Le Sueur. As Musas. Clio, Euterpe e Tália. 1652-55. Museu do Louvre, Paris.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Poema sismógrafo


 A J.

Das costas de um vulcão
escorrem lágrimas quentes
depois de cada suspiro do mundo.

Acordo com uma foto
da lua quase cheia,
mas plena na voz que me alerta.

Do sonho, vêm os suspiros,
da noite, a saudade,
do tempo, a ausência

soprada pelas entranhas do mundo
e que, com deliciosa calma,
pousa a cabeça em meu ombro

para uma noite de sono depois do amor.
Às costas do vulcão,
desejando apenas o suspiro que

afaga meu rosto,
versos (diversos) inadvertidos
à procura de seus olhos.

Imagem: Tintoretto. Vênus, Marte e Vulcão (detalhe). 1551. Alte Pinakothek, Munique