domingo, 11 de dezembro de 2016

Pequeno parágrafo sobre a geometria II


Onde desagua o rio Eufrates? Talvez à soleira do primeiro grande poema divino. Naquele tempo, dizia-se que deus havia combinado as palavras e, esquadro em mãos, riscou em seu corpo a passagem dos grandes rios. Fizeram-se, assim, todas as coisas: dos dados lançados por um poeta vindouro ao fogo nas mãos de algum homem das cavernas. E aquele tempo se fez presença do mundo, e o mundo tornou-se o corpo de deus e a vida dos homens, e não havia mais sentido no corpo divino do que nas palavras com as quais procuramos, desde então, o encontro das águas. Seguimos sujos na caça da língua que supomos pôde um dia ser dita enquanto alguém navegava o grande Eufrates. E tudo não passou de um poema lido antes de dormir e de uma voz portuguesa a dizer: "Mas um poema só é toda a vida de um homem e tenho por manobra de diversão revelar a outrem uma coisa não menos íntima do que a mais íntima peça de roupa." 

Imagem: Kasimir Malevich. O homem correndo. 1933. Georges Pompidou, Paris.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Salvo os homens e os cães


Durante a primavera de 1987, frequentei o último curso de Deleuze, em Saint-Denis, e jamais me esquecerei o quanto de generosidade e liberdade aquela voz me trouxe. Vinte anos antes, ao longo de um verão para mim extremamente decisivo, seguia o seminário de Heidegger. Um abismo separa esses dois filósofos, sem dúvida os maiores de nosso século. Os dois pensaram com uma coragem extrema a existência, a partir da facticidade, e o homem enquanto o ser que é apenas seus modos de ser. Mas a tonalidade fundamental de Heidegger é a de uma angústia dolorosa e quase metálica, na qual toda propriedade e todo instante se contraem e tornam-se tarefa a ser realizada. Nada, ao contrário, exprime melhor a tonalidade fundamental de Deleuze do que a sensação que ele gostava de denominar com uma palavra inglesa: self-enjoyment. No dia 17 de março, segundo minhas notas, para explicar esse conceito, ele começou expondo a teoria plotiniana da contemplação. "Todo ser contempla", dizia citando livremente de memória, sim, todo ser é uma contemplação, mesmo os animais, mesmo as plantas (salvo os homens e os cães, acrescentou, que são animais tristes, sem alegria). Vocês dirão que eu estou brincando, que é uma piada. Sim, mas mesmo as piadas são contemplações... Tudo contempla, a flor e a vaca contemplam mais do que o filósofo. E, ao contemplar, elas se enchem de si mesmas e se alegram. O que elas contemplam? Contemplam seus próprios pressupostos [réquisits*]. A pedra contempla o silício e o calcário, a vaca contempla o carbono, o nitrogênio e os sais. Isso é o self-enjoyment. Não é o pequeno prazer de ser si mesmo, o egoísmo, é essa contração dos elementos, essa contemplação dos próprios pressupostos que produz alegria, a ingênua confiança de que isso vai durar, sem a qual não seria possível viver, pois o coração pararia. Nós somos pequenas alegrias: ser contente consigo [être content de soi] é encontrar em si mesmo a força para resistir à abominação. 
Aqui minhas notas param e é assim que vejo minhas lembranças de Gilles Deleuze. A grande filosofia deste século taciturno, que havia começado pela angústia e termina na alegria.

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* Réquisits exprime a ideia de algo que é indispensável para um fim preciso. Nesse sentido, alguns dicionários também trazem como sinônimos: exigência, necessidade, aspiração  

Giorgio Agamben. Sauf les hommes et les chiens. Publicado originalmente em 07/11/1995, isto é, três dias após a morte de Deleuze, no semanário Libération Disponível em: http://next.liberation.fr/culture/1995/11/07/sauf-les-hommes-et-les-chiens_150475 (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)  

Imagem: Gilles Deleuze em Saint-Léonard de Noblat, em 1994.