tag:blogger.com,1999:blog-58464676645596251602024-03-12T20:52:44.323-03:00FLANAGENSUnknownnoreply@blogger.comBlogger760125tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-92199078588238968282023-09-11T08:56:00.004-03:002023-09-11T08:56:42.434-03:00Violência e esperança no último espetáculo - de Giorgio Agamben<p style="text-align: center;"><i></i></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><i><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEghRz2r-mU4gNfAfEDuwBefqqiKoHE6Awx6JsaImf2Y4F_0lToGA3lcNZ8bKJA7u-Opadi3EJxbsJRu8rP52HRLU6MstwxSVrOPwNoGhrP9lD_AITYEff8YTcnf58m-A39Z0m7iPQkR712H_GpZMf7RYU7au_hhEBvv_5FepkiS5TEiLhUn3tuIKres7YBn/s976/tiananmen.webp" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="549" data-original-width="976" height="180" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEghRz2r-mU4gNfAfEDuwBefqqiKoHE6Awx6JsaImf2Y4F_0lToGA3lcNZ8bKJA7u-Opadi3EJxbsJRu8rP52HRLU6MstwxSVrOPwNoGhrP9lD_AITYEff8YTcnf58m-A39Z0m7iPQkR712H_GpZMf7RYU7au_hhEBvv_5FepkiS5TEiLhUn3tuIKres7YBn/s320/tiananmen.webp" width="320" /></a></i></div><i><br /> </i><p></p><p style="text-align: right;"><i> Giorgio Agamben</i>
</p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Em novembro de 1967, quando Guy Debord
publicou <i>A sociedade do espetáculo, </i>a transformação da política e de
toda a vida social numa fantasmagoria espetacular ainda não havia atingido a
figura extrema que hoje se tornou para nós perfeitamente familiar. Por isso é ainda
mais notável a implacável lucidez de seu diagnóstico.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">“O capitalismo, em sua forma última –
assim ele argumenta, radicalizando a análise marxiana do caráter de fetiche da
mercadoria, naqueles anos tolamente desconsiderada – apresenta-se como uma
imensa acumulação de espetáculos, na qual tudo o que era diretamente vivido se
distanciou numa representação”. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Todavia, o espetáculo não coincide simplesmente
com a esfera das imagens ou com aquilo que hoje chamamos de mídia: ele é “uma
relação social entre pessoas, mediada através das imagens”, a expropriação e a
alienação da própria sociabilidade humana. Ou melhor, com uma fórmula lapidar:
“o espetáculo é o capital num tal grau de acumulação que se torna imagem”.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Por isso mesmo, no entanto, o
espetáculo é apenas a pura forma da separação: onde o mundo real se transformou
numa imagem e as imagens se tornam reais, a potência prática do homem se
destaca de si mesma e se apresenta como um mundo em si. É na figura desse mundo
separado e organizado por meio das <i>mídias, </i>que nas formas do Estado e da
economia se compenetram, que a economia mercantil acede a um estatuto de
soberania absoluta e irresponsável sobre a vida social.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Depois de ter falsificado o conjunto
da produção, ela agora pode manipular a percepção coletiva e tomar posse da
memória e da comunicação social para transformá-las numa única mercadoria
espetacular, na qual tudo pode ser colocado em discussão, exceto o próprio
espetáculo, que, em si, diz apenas: “aquilo que aparece é bom, e o que é bom
aparece”. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Em maio de 1988, Debord publicou um <i>Comentário
à sociedade do espetáculo, </i>que acrescenta desenvolvimentos importantes às
suas análises precedentes. Se antes ele havia distinguido duas formas de sociedade
espetacular – a concentrada, que tinha seu modelo na Rússia stalinista e na
Alemanha nazista; e a difusa, correspondente aos Estados Unidos e às
democracias ocidentais –, agora ele mostra que, nos vinte anos subsequentes,
impôs-se em escala planetária um terceiro modelo, para o qual Itália e França
serviram como laboratório, definido por ele de “espetáculo integrado”.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>“O espetáculo integrado se manifesta
ao mesmo tempo no estado concentrado e no estado difuso e, a partir dessa
frutífera unificação, conseguiu empregar ao máximo uma e outra qualidade. Mas
seu modo de aplicação se transformou. Considerando-se o aspecto concentrado, o
centro dirigido agora se tornou oculto: nele não se situa mais nem um início
reconhecido nem uma clara ideologia. Considerando-se o aspecto difuso, o
influxo do espetáculo jamais havia determinado a tal ponto a quase totalidade
dos comportamentos e dos objetos da produção social. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>O sentido último do espetáculo
integrado é, com efeito, que ele se integrou na própria realidade à medida que
dela falava: e que a reconstrói assim como dela fala, de modo que esta não está
mais diante dele como algo estranho. Quando o espectador era concentrado, a
maior parte da sociedade periférica lhe escapava: quando era difuso, dele
escapava uma pequena parte; hoje, mais nada. O espetáculo se misturou a toda
realidade permeando-a. Como era previsível em teoria, a experiência prática da
realização desenfreada da vontade da razão mercantil mostra, rapidamente e sem
exceções, que o tornar-se-mundo da falsificação era também um
tornar-se-falsificação do mundo. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Excetuando-se uma herança ainda
consistente, mas destinada a se reduzir cada vez mais, de livros e edifícios
antigos que, de resto, são cada vez mais frequentemente selecionados e
colocados em perspectiva de acordo com a conveniência do espetáculo, não existe
mais nada, na cultura e no mundo, que não tenha sido transformado e declinado
segundo os meios e os interesses da indústria moderna”</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>É difícil, para nós que vivemos os
últimos vinte anos da história italiana, não subscrever essas análises. Isso
pois é certo que, como parece sugerir Debord, a Itália foi o laboratório em
que, enquanto o terrorismo formava o espetáculo de cobertura que monopolizava
toda atenção, foi tentada e efetuada a passagem das democracias ocidentais para
a última fase de seu desenvolvimento histórico. Jamais – nem mesmo nos anos
1950, quando os estados europeus, eliminados o fascismo e o nazismo,
dedicaram-se com zelo a prosseguir sua obra de outro modo – uma tão grande
massa de falsificação se concentrou num tempo tão breve em todos os aspectos da
vida social. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>No espaço de poucos anos,
ideologias, confissões religiosas, sindicatos, partidos políticos, jornais,
dentre os quais existiam diferenças sensíveis e que representavam tradições
opostas, entraram em acordo, como que seguindo as instruções de um modelo
invisível, para repetir com as mesmas palavras o mesmo discurso sobre os
mesmíssimos temas. E jamais, em algum regime totalitário, o discurso público
foi tão homogêneo e, essencialmente, consentido como na Itália desses últimos
anos, onde tudo se discutiu desde que não se pensasse em nada; e jamais, em
nenhuma ditadura, os intelectuais, reduzidos com boa vontade ao papel de
espectadores dos especialistas, foram mais solícitos em sua tarefa de obter
consenso e tranquilizar por meio de ideias confusas. Isso pois, se o estado
espetacular é o estágio extremo na evolução da forma Estado, em direção à qual,
quase como que levados por uma força fatal, parecem se mover hoje todos os
estados do mundo, o espetáculo, no sentido estrito de circulação midiática da
informação, serve para impossibilitar que os problemas decisivos sejam
colocados de modo claro e que os cidadãos disponham dos elementos para se
formar uma opinião não contraditória sobre eles.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Nesse sentido, os livros de Debord
constituem uma das poucas descrições de nosso tempo à altura do problema: e,
num registro de todo diverso, a única análise que possa ser comparada, em rigor
e novidade, àquela que, exatamente quarenta anos antes, Heidegger havia conduzido
nos parágrafos 25-38 de <i>Ser e tempo. </i>Só que a dimensão que Heidegger
chamava de “impropriedade”, <i>Uneigentlichkeit, </i>não convive mais
simplesmente com o ser-próprio, <i>Eigentlich, </i>do homem, mas, tornada autônoma,
substituiu inteiramente este, tornando-o impossível.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Assim, o “espetáculo” de Debord pode
ser aproximado, sem se forçar muito, à fase extrema do desenvolvimento da técnica
que Heidegger chama de <i>Gestell, </i>e sobre a qual diz ser o maior perigo e,
ao mesmo tempo, o pressentimento da apropriação última do homem.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Se isso é verdade, de que maneira hoje
o pensamento pode acolher a herança de Debord? Dado que é claro que o espetáculo
é a linguagem, a própria comunicatividade ou o ser linguístico do homem. Isso
significa que a análise marxiana deve ser integrada no sentido que o
capitalismo – ou, caso se queira em outros termos, o processo que hoje domina a
história mundial – não era voltado apenas à expropriação da atividade
produtiva, mas também e sobretudo à alienação da própria linguagem, da própria
natureza linguística ou comunicativa do homem, daquele <i>Logos </i>no qual um
fragmento de Heráclito identifica o “Comum”. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>A forma máxima dessa expropriação do
Comum é o espetáculo, isto é, a política que nós vivemos. Isso significa também
que, no espetáculo, é nossa própria natureza linguística que em nós é
invertida. Por isso – justamente porque a ser expropriada é a possibilidade de
um bem comum – a violência do espetáculo é tão devastadora; mas, pela mesma razão,
o espetáculo, em cuja forma a humanidade parece estar cegamente indo ao
encontro da própria destruição, contém também uma possibilidade positiva
extrema, que a humanidade de forma alguma deve deixar escapar.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>O estado espetacular, com efeito e
apesar de tudo, permanece um estado que, como todo estado, funda-se, como
mostrou Badiou, não na relação social, da qual seria expressão, mas em sua
dissolução, que proíbe. Em última instância, o estado pode reconhecer qualquer
reivindicação de identidade, até mesmo (e a história das relações entre estado
e terrorismo em nosso tempo é uma eloquente confirmação disso) a de uma
identidade estatal em seu próprio interior. Mas que das singularidades se façam
comunidades sem reivindicação de uma identidade, que humanos co-pertençam sem
uma representável condição de pertencimento – o fato de serem italianos, operários,
católicos, terroristas – é algo que o estado não pode de maneira alguma tolerar.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Ainda assim, é o próprio estado
espetacular, enquanto nulifica e esvazia de conteúdo toda identidade real, a
produzir massivamente em seu seio singularidades que não são mais
caracterizadas por nenhuma identidade social nem por qualquer real condição de
pertencimento: singularidades verdadeiramente <i>quaisquer. </i></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Isso pois é certo que a sociedade em
que nos foi dado viver é também aquela em que todas as identidades sociais se
dissolveram, na qual tudo aquilo que por séculos constituiu a verdade e a
mentira das gerações que se sucederam sobre a terra já perdeu qualquer significado.
Na pequena burguesia planetária, em cuja forma o espetáculo realizou de forma
paradoxal o projeto marxiano de uma sociedade sem classes, as diversas
identidades que marcaram a tragicomédia da história universal estão expostas e
são acolhidas numa fantasmagórica vacuidade.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Por isso, se é lícito avançar uma
profecia sobre a política que vem, esta não será mais a luta pela conquista ou
o controle do estado por parte de novos ou velhos sujeitos sociais, mas a luta
entre o estado e o não-estado (a humanidade), disjunção incolmatável das
singularidades quaisquer e da organização estatal.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Isso não tem nada a ver com a
simples reivindicação do social contra o estado, que por muito tempo foi o
motivo comum de movimentos de contestação em nosso tempo. As singularidades
quaisquer numa sociedade espetacular não podem formar uma <i>societas, </i>porque
não dispõem de nenhuma identidade para fazer valer, de nenhuma ligação social
para fazer reconhecer. Tanto mais implacável é o contraste com um estado que
nulifica todos os conteúdos reais, mas para o qual um ser que fosse radicalmente
privado de qualquer identidade representável seria, apesar de todas as declarações
vazias sobre a sacralidade da vida e sobre os direitos do homem, simplesmente
inexistente. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Essa é a lição que um olhar menos
desatento poderia ter retirado dos fatos de Tiananmen. O que mais espanta, de
fato, nas manifestações do maio chinês é a relativa ausência de conteúdos
determinados e de reivindicações. Democracia e liberdade são noções demasiado
genéricas para constituir um objeto real de conflito, e a única demanda concreta,
a reabilitação de Hu Yao Bang, foi prontamente acolhida. Ainda mais inexplicável
se mostra a violência da reação estatal.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>É provável, todavia, que a desproporção
tenha sido apenas aparente e que os dirigentes chineses tenham agido, de seu
ponto de vista, com perfeita lucidez. Em Tienanmen o estado encontrou-se diante
daquilo que não pode nem quer ser representado e que, todavia, apresenta-se
como uma comunidade e uma vida comum. E isso independentemente do fato de que
aqueles que se encontram na praça fossem efetivamente conscientes disso. Que o
irrepresentável exista e faça comunidade sem pressupostos nem condições de
pertencimento (como uma multiplicidade inconsistente, nos termos de Cantor) é
precisamente a ameaça com a qual o estado não está disposto a sofrer.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>A singularidade qualquer, que quer
apropriar-se do pertencimento mesmo, de seu próprio ser na linguagem, e que,
por isso, declina toda identidade e toda condição de pertencimento, é o novo
protagonista, não subjetivo nem socialmente consistente, da política que vem.
Onde quer que essas singularidades se manifestem pacificamente seu ser comum, aí
haverá uma Tiananmen e, cedo ou tarde, apareceram os canhões.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Quanto a nós, o que quer que aconteça,
podemos apenas repetir com Debord as palavras de Marx a Ruge: “Certamente não
se pode dizer que eu tenha em muita estima a presente época; mas se não me desespero
nela é porque sua situação desesperada me enche de esperança”. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 11.0pt;">Giorgio Agamben, <i>Violenza e speranza nell’ultimo
spettacolo, </i>in. Giorgio Agamben <i>et. al, I Situazionisti, </i>Roma,
Manifestolibri, 1991, pp. 11-17.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 11.0pt;">Trad.: Vinícius N. Honesko <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 11.0pt;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 11.0pt;"><span style="mso-spacerun: yes;">Imagem: Praça da Paz Celestial (Tiananmen), junho de 1989. <br /></span></span></p>
<p><style>@font-face
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Tratava-se, para a filósofa judia-alemã há quinze anos refugiada em Nova York, de se interrogar sobre o vazio entre passado e futuro que havia sido produzido na cultura do Ocidente, isto é, sobre a ruptura já irrevogável da continuidade de qualquer tradição. É por isso que o prefácio ao livro se abre com o aforisma de René Char <i>Notre héritage n’est précédé d’aucun testament.</i> Ou seja, o que estava em questão era o problema histórico crucial da recepção de uma herança que não é mais, de modo algum, possível de transmitir. Cerca de vinte anos antes, Ernst Bloch, em exílio em Zurique, havia publicado, sob o título A herança de nosso tempo, uma reflexão sobre a herança que ele buscava recuperar vasculhando nos subterrâneos e nos depósitos da cultura burguesa já em desintegração (“a época está em putrefação e ao mesmo tempo está parindo” é a insígnia que abre o prefácio do livro). É possível que o problema de uma herança inacessível ou praticável apenas através de caminhos difíceis e aberturas meio escondidas que os dois autores, cada um a seu modo, suscitam, não seja de todo obsoleto, aliás, pode nos dizer respeito de modo íntimo – tão intimo que às vezes parecemos nos esquecer dele. Também nós fazemos experiência de um vazio e de uma ruptura entre passado e futuro, também nós, numa cultura em agonia, temos que procurar se não uma dor do parto, ao menos algo como uma parcela de bem que sobreviveu ao esfacelamento. <br /><br />Uma busca preliminar sobre esse conceito deliciosamente jurídico – a herança – que, como com frequência acontece em nossa cultura, se expande além de seus limites disciplinares até envolver o próprio destino do Ocidente, não será, portanto, inútil. Como os estudos de um grande historiador do direito – Yan Thomas – mostram com clareza, a função da herança é a de assegurar a <i>continuatio dominii</i>, isto é, a continuidade da propriedade dos bens que passam do morto ao vivo. Todos os dispositivos que o direito concebe para suprir o vazio que corre o risco de ser produzido com a morte do proprietário não têm outro objetivo senão garantir, sem interrupções, a sucessão na propriedade. <br /><br />Assim, talvez a herança não seja o termo correto para pensar o problema que tanto Arendt quanto Bloch tinham em mente. Dado que na tradição espiritual de um povo algo como uma propriedade simplesmente não tem sentido, nesse âmbito uma herança como <i>continuatio dominii</i> não existe nem pode de forma alguma nos interessar. Aceder ao passado, conversar com os mortos só é possível ao se quebrar a continuidade da propriedade, e é no intervalo entre passado e futuro que todo indivíduo deve necessariamente se situar. Não somos herdeiros de nada e de lugar nenhum recebemos herança, e é só sob tal condição que podemos relançar a conversa com o passado e com os mortos. Com efeito, o bem é, por definição, adespótico e inapropriável, e a obstinada tentativa de agarrar a propriedade da tradição é o que define o poder por nós refutado em todos os âmbitos, tanto na política quanto na poesia, na filosofia como na religião, nas escolas como nos templos e tribunais. <br /></div><br /></div><div style="text-align: right;"> 31 de julho de 2023. <br /></div></div><div style="text-align: left;"><br /> <span style="font-size: x-small;"><br /><br />Giorgio Agamben, <i>L’eredità del nostro tempo</i>, disponível em: <a href="https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-l-u2019eredit-4-el-nostro-tempo?fbclid=IwAR2DZaV3G3OYN9WJdQikE5fgAS38B5fXEg2b8wklvfrL0M09r9YPi3HvEmo">https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-l-u2019eredit-4-el-nostro-tempo?fbclid=IwAR2DZaV3G3OYN9WJdQikE5fgAS38B5fXEg2b8wklvfrL0M09r9YPi3HvEmo</a> Trad.: Vinícius N. Honesko.<br /><br />Imagem: Tiziano Veccelio. <i>Três idades do homem. </i>1513, National Gallery of Edingurgh, Escócia.</span><p style="text-align: left;"><style>@font-face
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{page:WordSection1;}</style></p></div>Khôrahttp://www.blogger.com/profile/06654908722644519478noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-41561732076988940782023-08-31T15:43:00.003-03:002023-09-08T09:15:37.219-03:00O escritor é como um ladrão de luzes – Giorgio Agamben<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEigwzRMyycMmN4gknw8gktdTkglouJpibjhMV4msTR9QV6tNZ2lhmq6E-xKN-AapRU-oVhhiBp2UqRPk4wPiNHx6IinL4KtOCxsZGaWgJpb9vcDMhiYB687GZb5azYq4nDD47ORsHE58PSGoH6FHQFdis0Zj5KpQ2AfdZxPhIv-5pMQbO_rRdyVrvJZaRxJ/s1007/morante.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="719" data-original-width="1007" height="228" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEigwzRMyycMmN4gknw8gktdTkglouJpibjhMV4msTR9QV6tNZ2lhmq6E-xKN-AapRU-oVhhiBp2UqRPk4wPiNHx6IinL4KtOCxsZGaWgJpb9vcDMhiYB687GZb5azYq4nDD47ORsHE58PSGoH6FHQFdis0Zj5KpQ2AfdZxPhIv-5pMQbO_rRdyVrvJZaRxJ/s320/morante.jpg" width="320" /></a></div><br />
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Não sei se a arte tem um objetivo, mas
acredito que sua grandeza depende da ligação que ela assume com a realidade. A
cegueira da consciência convencional faz com que a vida escorra para fora da
vida e acabe por substituir o real pelo filtro do uso. Van Gogh, em uma das
cartas a Théo, escreve que com frequência os homens vivem prisioneiros “dans je
ne sais quelle cage horrible, horrible, três horrible”<span style="font-size: xx-small;"><a href="#_ftn1" name="_ftnref1" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua", serif;">[1]</span></span></span></span></a>.</span>
É desde essa cela que a arte nos deve salvar, e se não o faz, se não se coloca
diante da realidade de modo absolutamente autêntico, mesmo que seja guiada por
uma inteligência excepcional, essa inteligência jamais será daquela espécie que
Dostoiévski definia como primária, e a obra que dela surgirá não será uma obra
de arte. Continua Van Gogh em sua carta: “Sais-tu ce qui fait disparaître la
prison? </span><span lang="EN-US" style="font-family: "Book Antiqua",serif; mso-ansi-language: EN-US;">C’est toute affection profonde, sérieuse. </span><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Être amis, être frères, aimer...”<span style="font-size: xx-small;"><a href="#_ftn2" name="_ftnref2" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua", serif;">[2]</span></span></span></span></a></span>
Há um poema de Elsa Morante no qual se exprime um conceito análogo: “Só quem
ama conhece... Só a quem ama o Diverso ilumina seus esplendores”. Mas a arte faz
algo mais do que o amor, não se limita a descobrir a realidade, mas penetra
mais profundamente nela.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Não é sem razões que, devendo falar de
um livro de Elsa Morante, fizemos essas considerações. Elsa Morante é, talvez,
em nosso século, a escritora que mais teve consciência dessa tarefa suprema da
arte, e que a ela se manteve constantemente fiel mesmo passando pelo desespero
mais profundo, quando a vida chegou fatalmente a encontrar “o risco mortal da
consciência”. Os contos que compõe essa coletânea (exceto os três últimos, dentre
os quais <i>O xale andaluz, </i>que dá título ao volume) foram escritos antes
de 1948, ano em que saiu <i>Mentira e sortilégio. </i>Mas não acreditem, por
isso, que <i>O xale andaluz </i>apresenta uma Morante menor. Não existe uma Morante
menor, ao menos nos volumes que ela publicou: operas menores certamente não são
esses contos, assim como não o eram os poemas de <i>Álibi, </i>aos quais a crítica
não prestou suficiente atenção. A profissão de fé que se lê em <i>Aventura </i>“Para
ti, meu santo capricho, rosto divino, sem armas e sem bússola parti... Para amores
difíceis eu nasci” jamais foi desmentida nem faltou a consciência da missão da
arte. Existem, no <i>Xale andaluz, </i>dois contos (o primeiro, <i>O ladrão de
luzes, </i>e o penúltimo, <i>Dona Amália</i>) que são como os dois polos
extremos do mundo de Morante, as duas faces de sua fé. Há algo de profundamente
poético na imagem de Jusvin, o guardião do templo que é encarregado de manter
acesas as lamparinas dedicadas aos mortos e que uma noite decide apagá-las para
lucrar no preço do óleo. “Uma noite, ele tinha acabado de entrar quando vi as
luzes uma por uma se apagar; e ele saiu, cauteloso, com seu apagador, deixando
atrás de si uma imensa escuridão”. Jusvin é o obscuro símbolo do artista e do
homem moderno; como Jusvin, o artista moderno é um ladrão de luzes, seu delito é
o preço que ele deve pagar à “imensa escuridão” que envolve a humanidade. Se
Jusvin é a tragédia da arte e da morte, Dona Amália é, pelo contrário, o esplendor
da arte e da vida. Seu segredo está nisto: “que ela, diferentemente das pessoas
comuns, nunca adquiria, em relação aos aspectos (mesmo os mais costumeiros) da
vida, o hábito do qual nascem a indiferença e o tédio”. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">É para esse ideal que tende o desejo
do homem, e, quando não pode atingi-lo, ele é similar ao Dom Miguel que, tendo
perdido Dona Amália, se retira num castelo e morre de melancolia: “se não podia
gozar de suas riquezas junto dela, todas elas lhe pareciam areias do deserto”. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Mas Dona Amália e o ladrão de luzes são
também duas distintas imagens da vida, da qual a primeira decai e eternamente
renasce da segunda nos acontecimentos da existência individual. E os contos de
Elsa Morante, como seus romances, são contos de educação (educação do homem para
si mesmo, para a vida e para a morte). Mas Andrea Campese, que passa por experiências
infantis e viris, é algo mais do que uma representação da mudança de visão que
se segue à saída da infância. Não é, talvez, também a mãe, Giuditta, que
renuncia a uma miragem para aceitar seu novo e mais real destino? A
correspondente mudança de Andrea aparece sobretudo como um dos mais poéticos símbolos
(e, por isso, com frequência sua história vai além de seus eventos
particulares) da condição humana na literatura contemporânea, a imagem do Eu
envolto no véu de Maia diante de um mundo de fantasmas e de aparências:</span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10pt; line-height: 150%;">Um
triste, arrogante herói</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10pt; line-height: 150%;">Envolvido
por um xale andaluz</span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10pt; line-height: 150%;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Resta dizer algo do estilo de Elsa
Morante, aquele estilo que, creio, se mostra como um mistério extraordinário
para aqueles que não conseguem amá-lo. Seu realismo é como que animado por um íntimo
processo de metamorfoses num abissal irrealismo sem fundo. Talvez a melhor
definição de seu estilo tenha sido dada pela própria autora, quando escreveu na
dedicatória de <i>Mentira e sortilégio: </i>“a agulha é fervilhante, a tela é
fumaça”. Chama a atenção a precisão com que são descritos lugares e objetos; e,
todavia, aqueles lugares e objetos não são o protocolo do real, mas a fundação
de uma nova realidade. Falou-se do sentido do demoníaco de Elsa Morante: mas eu
acredito que seria preciso falar com mais propriedade de sentido da
demonicidade. A percepção da vida das coisas, do demônio que está nelas, é também
a característica do fabular, um termo de comparação que vem espontaneamente ao
ler esses contos (pensemos em <i>A avó </i>e em <i>O jogo secreto, </i>e no próprio
<i>xale andaluz</i>). Mas o segredo do estilo de Elsa Morante está em sua relação
com o mundo, que é demasiado complexa para este breve comentário, mas que
certamente lembra a definição que Spinoza deu da benevolência como amor nascido
da piedade e piedade nascida do amor.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Foi dito acima que Jusvin e Dona Amália
são os dois símbolos extremos da condição do artista e do homem moderno. Mas
num outro conto aproxima-se de uma figura que é de algum modo intermediária
entre as duas e que talvez exprima a verdadeira mensagem de Elsa Morante. Em <i>Soldado
siciliano, </i>enquanto a protagonista descansa numa cabana onde encontrou
hospitalidade para a noite, de repente entra um soldado. Ele tem em mãos uma lâmpada
de mineiro e a protagonista os faz observar “que iria acordar a todos com sua
luz cegante”. O relato que ele faz em dialeto siciliano se abre com as palavras:
“meu nome é Gabriele”. O que ele busca é “ser atingido, um dia ou outro”. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Não é fácil esquecer da aparição desse
soldado que vaga pelo mundo com uma lanterna de mineiro, esperando a morte. É
uma imagem estranhamente irmã e ao mesmo tempo antitética àquela de Andrea
Campese, que corre de noite em direção do estábulo envolvido pelo xale andaluz.
Diante desse dom de consciência de Elsa Morante, vêm espontaneamente aos lábios
as palavras de um de seus poemas: </span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10pt; line-height: 150%;">Tudo
o que te pertence, ou que de ti provém,</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10pt; line-height: 150%;">é cheio
de uma graça fabulosa. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10pt; line-height: 150%;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10pt; line-height: 150%;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10pt; line-height: 150%;">Giorgio
Agamben, <i>Lo scrittore è come um ladro di lumi, </i>originalmente publicado no
jornal “Paese sera”, em 10 de janeiro de 1964. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko
</span></p>
<div style="mso-element: footnote-list;"><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<div id="ftn1" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref1" name="_ftn1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[1]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> N.T.: <i>em não sei qual jaula horrível,
horrível, muito horrível.</i></span></p>
</div>
<div id="ftn2" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref2" name="_ftn2" style="mso-footnote-id: ftn2;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[2]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> N.T.: <i>Você sabe o que faz a prisão
desaparecer? É toda afecção profunda, séria. Ser amigos, ser irmãos, amar...</i></span></p>
</div>
</div>
<p><style>@font-face
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<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Garamond",serif; font-size: 13.0pt;">Havia no centro da Europa regiões que foram
apagadas pela carta geográfica. Uma destas – não é a única – é a Galícia, que hoje
coincide em boa parte com o território onde há mais de um ano se combate uma lamentável
guerra. Até o fim da Primeira Guerra Mundial, a Galícia era a província mais
distante do Império Austro-húngaro, nos confins com a Rússia. Com a dissolução
do império Habsburgo, os vencedores, certamente não menos iníquos do que os
vencidos, entregaram-na à renascida Polônia, como a Bucovina, que com ela fazia
fronteira, fora também caprichosamente anexada à Romênia. Os confins, a cada
vez redesenhados com lápis e borracha nos mapas geográficos pelos poderosos, saem
do tempo em que são encontrados, mas é provável que a Galícia não voltará a
reaparecer nos inventários da política europeia. Muito mais do que a
cartografia, o que nos importa é o mundo que naquela região existia – isto é,
os humanos que no <i>Königreich Galizien und Lodomerien </i>(esse era o nome
oficial da província) respiravam, amavam, ganhavam a vida, choravam, tinham
esperanças e morriam. Pelas estradas de Lemberg, Tarnopol, Przemysl, Brody (pátria
de Joseph Roth), Rzeszow, Kolomea caminhava um conjunto variado de rutenos
(assim então eram chamados os ucranianos), poloneses, judeus (em algumas
cidades quase a metade da população), romenos, ciganos, hutsuls (que entre 1918
e 1919 constituíram uma república independente de breve duração). Cada uma
dessas cidades tinha um nome diferente, a depender da língua dos habitantes que
nelas conviviam, em cada uma delas as igrejas católicas das esquinas se
transformavam em sinagogas e estas, por sua vez, em igrejas ortodoxas e igrejas
católicas orientais. Não era uma região rica, aliás, os funcionários da Kakânia
a consideravam a mais pobre e atrasada do império; era, todavia, justamente
pela pluralidade de suas etnias, culturalmente viva e generosa, com teatros,
jornais, escolas e universidades em várias línguas e um florescimento de
escritores e músicos que temos ainda que aprender a conhecer. É esse mundo que,
de um dia a outro, foi política e juridicamente aniquilado em 1919, e a é essa
multiforme e intrincada realidade que a ocupação nazista (1941-1944) e depois a
soviética algumas décadas depois deram o golpe de misericórdia. Mas ainda antes
de se tornar parte do Império Austro-húngaro, a terra que levava o nome de</span><span style="font-family: "Garamond",serif; font-size: 13.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri;">
Haly</span><span style="color: black; font-family: "Garamond",serif; font-size: 13.0pt; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-font-kerning: 0pt; mso-ligatures: none;">č</span><span style="font-family: "Garamond",serif; font-size: 13.0pt;"> ou Galícia (segundo alguns,
de origem celta, como a Galícia espanhola), e que no fim do medievo estava sob
o domínio húngaro com o nome de principado de Galícia e Volínia, de quando em
quando era contestada pelos cossacos, russos e poloneses, até que a grã-duquesa
Maria Teresa da Áustria se aproveitou da primeira divisão da Polônia, em 1772,
para anexá-lo a seu império. Em 1922, o território foi anexado pela União Soviética,
com o nome de República socialista soviética ucraniana, da qual se separou em
1991 abreviando o próprio nome como República Ucraniana. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Garamond",serif; font-size: 13.0pt;">É tempo de deixar de crer nos nomes e nos confins
marcados nos mapas e de se perguntar sobretudo sobre o que aconteceu, o que
aconteceu daquele mundo e daquelas formas de vida que acabamos de evocar. Como
sobrevivem – se sobrevivem – além dos infames registros das burocracias estatais?
E a guerra agora em curso não é, mais uma vez, o fruto do esquecimento daquelas
formas de vida e a odiosa e letal consequência daqueles registros e daqueles nomes?
</span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: "Garamond",serif; font-size: 13.0pt;"> </span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="color: black; font-family: "Garamond",serif; font-size: 13.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-font-kerning: 0pt; mso-ligatures: none;">Giorgio
Agamben,</span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="color: black; font-family: "Garamond",serif; font-size: 13.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-font-kerning: 0pt; mso-ligatures: none;">24
de abril de 2023.</span></p><p class="MsoNormal"><span style="color: black; font-family: "Garamond",serif; font-size: 13.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR; mso-font-kerning: 0pt; mso-ligatures: none;"> </span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-size: x-small;"><span style="color: black; font-family: "Garamond", serif;">Original
disponível em: <a href="https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-guerra-galizia">https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-guerra-galizia</a>
</span></span></p><span style="font-size: x-small;">
</span><p class="MsoNormal"><span style="font-size: x-small;"><span style="color: black; font-family: "Garamond", serif;">Tradução:
Vinícius Nicastro Honesko</span></span><span style="font-family: "Garamond",serif; font-size: 13.0pt;"></span></p>
<p><style>@font-face
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{page:WordSection1;}</style></p>Khôrahttp://www.blogger.com/profile/06654908722644519478noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-229251570532270292022-11-22T08:51:00.004-03:002023-09-01T07:07:22.206-03:00Jesi, o mito vivido em estado de vigília - Andrea Cavalletti<div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEjEh88gmhNYiLbn1LGuoHE7egv7DLCYnVfGOZJVwHBijLjvyS2dnJh4sZIuXY8UAJGQLeV7tRo8fkhe4SxgqP1WxBtjLV9I_5n6fyArelkQBAoURfMWdwG6si-fs6CGpdnTJ5vtvN0MwmPWW7XgwAV_9xQQSZpUe2Jk6XTZl7aaIMEkYllSoVV1-gtegA" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="1200" data-original-width="790" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEjEh88gmhNYiLbn1LGuoHE7egv7DLCYnVfGOZJVwHBijLjvyS2dnJh4sZIuXY8UAJGQLeV7tRo8fkhe4SxgqP1WxBtjLV9I_5n6fyArelkQBAoURfMWdwG6si-fs6CGpdnTJ5vtvN0MwmPWW7XgwAV_9xQQSZpUe2Jk6XTZl7aaIMEkYllSoVV1-gtegA" width="158" /></a></div><div style="text-align: right;"><br /></div><div style="text-align: right;"><i>Andrea Cavalletti </i><br /></div><div style="text-align: left;"><br /> <br /><br /></div><div style="text-align: justify;">“Tudo isso é para mim, hoje, o significado da palavra mito. Uma máquina que serve para muitas coisas, ou, ao menos, é o presumido coração misterioso desta, o suposto motor imóvel e invisível de uma máquina que serve para muitas coisas, para o bem e para o mal. É memória, relação com o passado (...); e arqueologia, e pensamentos que gritam nos quadros da escola, e que, então, levam a se tornar mestres para provocar também nos outros as sensações do grito. E é violência, mito do poder; e, portanto, é suspeita que jamais pode ser apagada diante de evocações de mitos encarregados de uma função específica; a (...) de consagrar as formas de um presente que quer ser coincidência com um ‘eterno presente’.” Furio Jesi escrevia essas palavras em 1976, num de seus livros mais densos e bonitos, <i>Esoterismo e linguagem mitológica. Estudos sobre Rainer Marie Rilke</i>, que agora volta às livrarias em nova edição revista (apesar de um evidente erro de digitação) publicada pela editora Quodlibet em homenagem aos quarenta anos da morte do grande estudioso. De fato, foi em 17 de junho de 1980 que Jesi perdeu a vida, com apenas trinta e nove anos, em razão de um vazamento de gás carbônico em seu apartamento, em Gênova, onde ensinava Literatura alemã depois de ser nomeado por conta de sua evidente fama e de um período na Universidade de Palermo. <br /><br /><b>Em Hamburgo com Sigfried Giedion </b><br /><br />Muito tempo antes, em 18 de novembro de 1958, Sigfried Giedion havia enviado à Avenida Rainha Margherita, em Turim – onde Furio, órfão do judeu Bruno, vivia com a mãe Vanna Chirone – uma carta (inédita) que começava com estas palavras: “Caro dr. Jesi, lembro com grande prazer de nossa breve conversa em Hamburgo”. Naqueles dias, o célebre historiador da Arquitetura havia falado de Jesi ao Diretor Associado da Fundação Rockefeller, John D. Marshall, e fará isso novamente lembrando, um par de meses depois, o quanto tinha ficado “impressionado por seu saber e instinto para as relações no congresso [internacional] de pré-história de Hamburgo de 1958”. É claro que o jovem que havia esboçado, num dia de fim de agosto, suas teses inovadoras sobre as instituições pré-históricas do culto e da magia não era, e nunca será, “doutor”: depois de ter publicado, em 1956, um artigo no renomado “Journal of Near Eastern Studies”, Jesi havia abandonado o liceu para seguir em Hildesheim e Bruxelas os próprios estudos de egiptologia. Tinha então fundado a revista “Archivio internazionale di Etnografia e Preistoria”, apresentando no primeiro número seu ensaio sobre as <i>Conexões arquetípicas </i>(1958), que pode ser definido como o núcleo de sua especulação subsequente, e até mesmo do mais completo e famoso “modelo cognoscitivo”, a máquina mitológica: amadureciam aqui as leituras da “coleção violeta” de Cesare Pavese e Ernesto De Martino, em particular das <i>Raízes históricas do conto maravilhoso</i>, de Propp, da<i> História da civilização africana</i>, de Leo Frobenius, e, sobretudo, dos<i> Prolegômenos ao estudo científico da mitologia</i>, de Jung e Kerényi, volumes que Jesi tinha levado consigo e sobre os quais tinha refletido no ano anterior, durante uma estada para pesquisa sobre o neoplatonismo e a religiosidade greco-ortodoxa no monastério da Gran Meteora. Operando, contra Jung, um genial deslocamento das “figuras orgânicas” dos arquétipos às constantes das relações compositivas da linguagem mitológica, ele revelava assim seu traço mais típico: o <i>instinct for relationships</i>, citado por Giedion, e sempre animado pela desconfiança em relação a qualquer hipóstase extra histórica e, assim, pronta para lançar sobre a história e a vida – portanto, como mito e violência do poder – o véu de sua imóvel eternidade. Se o precoce germanista que discorria sobre Mann com Barbara Allason iniciava naqueles anos o incansável confronto com a tradução das <i>Elegias de Duíno,</i> o adolescente egiptólogo revelava um caráter decididamente de mitólogo. Será Kerényi a lhe indicar o caminho e, ao definir os <i>Prolegômenos</i> como uma criatura centáurica, a distanciá-lo de tal modo de Jung que mesmo as “conexões arquetípicas”, julgadas “com a vocação moralista dos 16, 17 anos (...) ‘valores’ gnosiológicos”, para ele se mostrarão como “uma espécie de indecência emocional”. E será o mesmo magister, agora já conhecido e com quem se encontrou em Turim em 1965, a se tornar objeto, a contragosto, da mesma atitude crítica (e, ao mesmo tempo, rigorosamente autocrítica). Kerényi, com efeito, havia distinguido o mito tecnicizado para fins políticos do mito “genuíno”, ao qual chamara, com as palavras de Goethe, de fenômeno originário (<i>Urphänomen</i>). Jesi, pelo contrário, reconhecerá a origem mesma como produto de uma elaboração e aproximará de novo Kerényi de Jung afastando qualquer concepção marcada pelos sufixos <i>Ur-</i> ou <i>arché-</i>: não só o mito falso e fabricado para as massas, mas a própria presunção de uma relação privilegiada do poeta ou do exegeta com o “mito genuíno” e a palavra “verdadeira” equivalia, para ele, a uma apologética legitimação do poder que exclui a maioria da fonte do conhecimento. <br /><br />Inspirado também por Martin Buber, Jesi não podia conceber uma autêntica relação com o mito que não fosse vivido “em estado de vigília” como experiência de verdade coletiva, isto é, que não implicasse a destruição consciente dos limites da cultura dominante, dos sistemas de poder que isolam os videntes e os mestres da massa dos sonâmbulos. Assim, se em 1967 havia encaminhado para publicação o fundamental <i>Alemanha secreta</i>, depois do Maio francês, quando a publicação de <i>Literatura e mito</i> provocava o rompimento, ao mesmo tempo teórico e político, com Kerényi, ele começa a escrever <i>Spartakus. Simbologia da revolta</i><a href="#_ftn1">[1]</a>, um cruzamento febril entre crônica e análise mitológica, montagem brechtiana e, ao mesmo tempo, um tipo de <i>Finnegans Wake</i> suspenso entre Nietzsche, Bakunin e <i>Tambores na noite.</i> A relação com o mito para ele já era uma relação com o atualmente incognoscível, mantido por meio das técnicas da paródia (como no “romance de vampiros”, <i>A última noite</i>) ou do estranhamento, e a pesquisa se tornava estudo das próprias modalidades de não conhecimento, ou melhor, tornava-se, a partir de 1972, com o esplêndido<i> Leitura do “Bateau ivre” de Rimbaud </i>(agora publicado em <i>O tempo de festa</i><a href="#_ftn2">[2]</a>), análise do funcionamento da máquina mitológica, dispositivo que alude ao mito, seu centro escondido e experiência presumida, dando em troca disso as narrativas, os testemunhos legíveis na superfície da história. Um ensaio atual como <i>A acusação de sangue </i>(1973, Bollati Boringhieri 2007) se perguntava, nesse sentido, sobre a produção mitológica antissemita, animada – como no caso dos <i>Protocolos dos sábios de Sião</i> – por documentos que se mostram perigosamente verossímeis porque sua autenticidade permanece inverificável. <br /><br /><b>Vértices estilísticos na forma-ensaio </b><br /><br />Elaborada em diálogo com amigos e correspondentes como Dumèzil, Starobinski, Scholem, a riquíssima produção jesiana circulava, no intervalo de poucos anos, das monografias sobre <i>Kierkegaard</i> e <i>Bachofen</i> (Bollati Boringhieri) a <i>Mitologias ao redor do iluminismo,</i> a <i>A linguagem das pedras</i> (Rizzoli 1978) ou a <i>Materiais mitológicos,</i> publicado em 1979 com <i>Cultura de direita</i><a href="#_ftn3">[3]</a>, e tocava vértices estilísticos e compositivos que a situam dentre os maiores exemplos da forma-ensaio contemporânea. Central se tornava, por fim, o tema simpateticamente benjaminiano da tradução, estudada no signo do mito da “pura língua” (um volume conclusivo dos Estudos sobre Rainer Marie Rilke, deveria ter indagado os problemas da traducibilidade e da duplicidade das linguagens). <br /><br />Em cada um desses livros resplandece para nós o intenso e inesperado raio que afetou Giedion. “Autor como produtor”, crítico da cultura de elite e do analfabetismo de massa, Jesi não deixa de ensinar permanecendo como oposto do divulgador: se justamente quem quer ser “mais comunicativo” sobe de fato num pedestal indevido, dele se pode dizer o que escreveu sobre Scholem: “o indivíduo sapientíssimo, cuja sabedoria é inteiramente vivida, pode aparecer a si e aos outros como portador de uma coroa especial. Mas (...) valem aqui algumas palavras de Goethe: (...) <i>Ainda assim, justamente por isso, eu era apenas um homem como os outros</i>”. <br /><br /> <br /> <span style="font-size: x-small;"><br /><br /><a href="#_ftnref1">[1]</a> Cf. trad. para o português: Furio Jesi. Spartakus. Simbologia da revolta. São Paulo: N-1, 2018, trad. Vinícius N. Honesko <br /> <br /><a href="#_ftnref2">[2]</a> Cf. trad. para o português: Furio Jesi. “Leitura do ‘bateau ivre’ de Rimbaud”, in. Outra Travessia, n. 19 (2015), Florianópolis, UFSC, pp. 61-76, trad. Fernando Scheibe e Vinícius N. Honesko <br /> <br /><a href="#_ftnref3">[3]</a> Cf. trad. para o português: Furio Jesi. Cultura de Direita, Belo Horizonte: Âyiné, 2022, trad. Davi Pessoa. </span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;"> </span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;">Publicado em <i>Il manifesto, 14/06/2020. </i>Tradução: Vinícius Nicastro Honesko </span><br /><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhU8U3N75wkTs7vye3iYeIVujwfwgSp-sPMVnU_IqxR_Nr46ftglzf0PDK_BsLhJ0Jw2pqPAYtpp5hyK5khqsoXa9Ap-WvcFajjX_C8Th1_7XbnnLzjYcXFzVbHVre_kqrpaeJsOKUR7fru2ua38GSEklkHzrrF5JHY8yEWmVoeGASKYyuaFxjBo3kK_g/s1200/Jesi_Furio_Web.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><br /></a></div><br /><br />Khôrahttp://www.blogger.com/profile/06654908722644519478noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-61911383657989181402022-09-02T02:59:00.009-03:002022-11-23T17:44:29.381-03:00 Caixa de bóia <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgK533Mt5E7X7GaeriZ5OT0Bt3SNdxQO2M4FylzHJ5CZDum_gLZ1ksHCbg2Fe1KFtX0gsCYgIH_qL_BxaZoVkylg4VR4t51v1G4LwDlOxMishm62c9pKwyJ0NIejF9VOaKiuZOczOP36KH-N25NPvXvtFlJRUd_HqPhS0CWCb_m4_piIbP9uxgsXsiZ/s505/Imagem1.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="284" data-original-width="505" height="211" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgK533Mt5E7X7GaeriZ5OT0Bt3SNdxQO2M4FylzHJ5CZDum_gLZ1ksHCbg2Fe1KFtX0gsCYgIH_qL_BxaZoVkylg4VR4t51v1G4LwDlOxMishm62c9pKwyJ0NIejF9VOaKiuZOczOP36KH-N25NPvXvtFlJRUd_HqPhS0CWCb_m4_piIbP9uxgsXsiZ/w375-h211/Imagem1.jpg" width="375" /></a></div><br /><p><br /></p><p style="text-align: justify;"><i>"O pensamento é ainda na criança, enquanto é criança, um estado de brincadeira. E o estado de brincadeira é sempre, na criança, um estado de graça”.</i> José Bergamin. A decadência do analfabetismo. </p><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;">Enquanto sonha com a família do comercial de margarina, com uma esposa que ainda não apareceu em sua história, filhos, talvez gatos e cães soltos no quintal, ele não escreve: trabalha com materiais de escrita, prepara suas aulas, deixa, ou melhor, esconde em um canto da memória sua origem e sua condição de marginal. Escrever e se aventurar eram sinônimos em sua vida, uma paixão consumia a outra, a escrita e o tremor da contingência, um estado infantil de graça em plena maturidade. Mas o tempo de casamentos - desfeitos - e quarentenas cibernetizadas levaram-no à lassidão e à poupança (econômica e existencial). <i>Poupar-se para o melhores anos vindouros, poupar-se para quando a pessoa certa entrasse em sua vida, poupar-se para uma velhice saudável</i>. Os tempos de digladiagem - digladiar e vadiar - haviam se encerrado e, com eles, a fissura da escrita. Menos um poeta inexpressivo em um nicho também inexpressivo, menos um marginal para ser caçado pela polícia ou pelos fascistas, entidades que há muito se indiferenciaram. A escrita fora substituída pelo cálculo e a vida pela espera, alistamento voluntário e febril às hostes dos servos da escatologia do futuro. </p><p style="text-align: justify;">Porém, quando o demônio da meia noite e da carnificina bate-lhe à porta na forma do absurdo, ele, só e agoniado, lembra-se, e esta lembrança rápida e viva o salva. Sua <i>madeleine</i> é uma caixa de bóias, sim, a caixa de comidas, dessas que os caminhoneiros usam na lateral das carrocerias dos caminhões. Essas caixas, onde também estão alguns mantimentos, pratos e canecas esmaltadas, talheres e a velha faca de borracheiro.</p><p style="text-align: justify;"> ***</p><p style="text-align: justify;"><i>Sim, Reinaldo Moraes, não só as frases de caminhão podem nos salvar de desilusões amorosas ou existenciais, o acolhimento no meu caso veio da lembrança de uma cozinha portátil, que talvez expresse a minha condição inescapável no mundo, aquela da qual quero fugir - ou esconder - mas sempre retorno, a do exilado, sem lugar próprio, sem casa, condenado a errar. Aquele que instala - não constrói - acolhimentos provisórios durante a travessia, em lugares para os quais talvez nunca mais volte e provavelmente nunca mais serão por ele lembrados. Uma imagem de juventude que relampeja no momento crítico e perigoso de minha deserção.</i> </p><p style="text-align: justify;">*** </p><p style="text-align: justify;"><i>Era o maior entroncamento rodoferroviário do sul do país, lugar de muitas oficinas de caminhão e autopeças, casarios decaídos no centro antigo, arenitos e ventos, pois só com ventos incessantes as rochas do entorno adquiriram as formações mais inusitadas, sendo populares as que se assemelhavam a grande objetos cotidianos, como uma taça, o símbolo geológico da cidade. Passei a morar em um bairro do entorno, eram meus anos de faculdade, vivendo sozinho fora da casa em que passara minha infância. A cidade era uma rota necessária no trabalho de meu pai, caminhoneiro, que transportava material reciclado – cargas altas de papel velho – para São Paulo. Foi em meu novo bairro que ele abriu uma conta de bar na única rua próxima em que ele podia parar o caminhão, um casarão que durante as manhãs servia um café adoçado com pão, preparado por uma senhora atenciosa, mas à noite, e meu pai não sabia deste detalhe, virava um bar mal afamado, frequentado pelas pessoas que não podiam pagar o preço das doses de pinga vendidas mais ao centro. Foi ali que começou minha fama marginal, pois costumava levar colegas da faculdade, pessoas nascidas em famílias de classe média, para o único lugar que naqueles anos me deu crédito, um risca-facas perigoso da Avenida Souza Naves. </i></p><p style="text-align: justify;"><i>Quando estava muito cansado meu pai pedia para acompanhá-lo na viagem. Eu então deixava das modorrentas aulas de direito romano para atravessar a Régis Bittencourt, à época a Rodovia da Morte, com o Mercedes 1313, azul marinho, de propriedade do Sr. Albari, um senhorzinho com barriga d'agua, relógio e bijuterias douradas no pulso, que sofria com um filho dependente químico. O detalhe é que não dormíamos. </i></p><p style="text-align: justify;"><i>A lembrança que guardo comigo: um desjejum tomado à beira da rodovia, com o sol nascendo, a caixa de bóia aberta com as fumaças do café preto e de um virado de feijão. A noite e o dia eram contíguos, o mundo era vasto e o 1313 era uma nau.</i></p><p style="text-align: justify;"><i>***</i></p><p style="text-align: justify;"><i>Voltar para a cidade dos arenitos, à rotina regrada e solar de um estudante de direito, ao lado de pessoas engomadas, todas em busca de seriedade e posições no Estado, sabendo que meu pai ainda continuaria a estrada de retorno, deixava-me muito angustiado. Foi nessa época que começou minha evasão, que provavelmente durará enquanto eu estiver vivo. </i></p><p style="text-align: justify;"><i>Também havia os livros velhos retirados da carga e vendidos nos sebos da cidade para eu conseguir ter alguns trocados, além do escambo pelos títulos que realmente eu queria ler. Minha relação com os livros no início da vida adulta foi a do desvio de carga, da interceptação ilegal, da troca clandestina. Mas, acima de tudo, do salvamento de brochuras antes de virarem uma pasta homogênea na fábrica de papel. Minha primeira biblioteca foi construída com o lixo. </i></p><p style="text-align: justify;"><i>Mas é quase manhã em minha memória. É o entorno de uma cidade, naqueles arrabaldes em que a rotina da roça sobrevive nas franjas urbanas. Há uma mata e um brejo ao fundo, há coaxar de sapos e ainda persistem vagalumes, sim, mesmo ao amanhecer e perto da rodovia, eles não sumiram de todo.</i></p><p style="text-align: justify;"><i>*** </i></p><p style="text-align: justify;"><i>Meu nome vem da estrada. Passar por várias cidades e possuir um nome comum nos anos 80, como João da Silva, era arriscar-se a ser levado para uma delegacia e ter de provar aos tiras que você, forasteiro, não era a mesma pessoa de um homônimo que ali descumpriu a lei, algo que não raro acontecia com meu pai, que também possui um nome comum, alguém que em um único dia poderia atravessar vários estados da federação, em tempos de sistemas estaduais independentes de identificação e quando a internet era algo impensável (os mapas amarelos serviam como GPS, assim como as cartas náuticas dos antigos). Ter um nome como Francisco Barbosa poderia significar prisões indesejáveis, além da suspeita constante que pesava sobre alguém sem origem nobre, calças furadas e tênis chinesinho, assistente de caminhoneiro. Um nome diferente significava não apenas diferenciação forçada, mas acima de tudo proteção contra confusões. Disso, desde o início, minha mãe me salvou. Do bullying entre meus pares, termo que não conhecia à época, defendia-me com socos e pontapés. </i></p><p style="text-align: justify;"><i>*** </i></p><p style="text-align: justify;"><i>O 1313 é só uma lembrança, meu pai não tem mais idade para atravessar a antiga Estrada da Morte sem dormir, é um trecho que faço hoje com a Mad Max (meu imaginário veículo pós-apocalíptico, apenas uma estilização pop para um ferro velho ambulante), descansando nos lugares que restam de nossas antigas paradas. Uma rodovia interestadual brasileira é uma rota forasteira e perigosa de passagem, mas para quem nela vive há sempre os lugares de abrigo, tão familiares quanto uma casa conhecida, onde se pode tomar um banho, descansar, permanecer. Tais lugares pouco a pouco estão desaparecendo, os antigos donos ou estão muito idosos ou já faleceram, transferindo a filhos que vendem estes antigos comércios para grandes franquias e conglomerados, onde não é possível permanecer sem fazer as honras obrigatórias ao capitalismo imperial de nosso tempo: consumir. Força motriz da uniformidade atroz que assola o mundo, cada vez mais disseminada. O Japonês da Serra do cafezal, da parmegiana em plena madrugada, famosa no trecho, que superava as parmegianas que vim depois a conhecer em São Paulo, com toda a poesia de um comércio japonês especialista em parmegianas, este restaurante, tão caro às minhas memórias de estrada, foi comprado pela rede Graal e transformado em uma loja de conveniência. </i></p><p style="text-align: justify;"><i>Não se pode edulcorar a forma capitalista que quase destruiu o corpo de meu pai, por anos atravessando insone milhares de quilômetros para levar material a ser reciclado, que virou novos utensílios hoje certamente já descartados. Esse capitalismo infernal não foi derrotado, foi conquistado e federado por forças de acumulação ainda mais predatórias e absolutas, sem lugar para arrabaldes ou marginais, sem lugar para improvisos e evasões. Mas um 1313, um Jacaré ou um Fenemê ainda trafegam como mamutes de uma era extinta, com suas caixas de boia. Ao lado do parque temático monstruoso, na estrada de terra, escondidos dos guardas, as tendas ciganas ou um circo mambembe teimam em aparecer, um bar antigo e uma sintonia camarada sobrevivem. Uma chama de vida, mesmo que de um vaga-lume perdido em um jardim cercado por casas e minifúndios, ainda alumia e insiste. </i> </p><p style="text-align: justify;">***</p><p style="text-align: justify;">Sim, era um escritor otimista e crédulo das insistências. Não sabia o que lhe esperava. Pasolini estava certo. Não só os vagalumes desapareceram de sua vida, e não convém criar metáforas distópicas com as faíscas dos cachimbos da minicraco instalada no quarteirão. Assim como os caminhoneiros lumpen de sua infância, mestres da improvisação, dos ilegalismos e do destemor, tornaram-se tão fascistas quanto a polícia militar que os perseguia. </p><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;">jonnefer francisco barbosa 2/9/22 </p><div><br /></div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-52206348157715917162022-08-05T14:13:00.001-03:002022-08-07T16:13:27.986-03:00Anjos e demônios - Giorgio Agamben<div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh5xEF5yilReFMnHBpy-VmYOrnwY4553PrKVxO6WLrwHb2bdKZI-C1aXDnKBUlqCAkw9HYlE2N3XRZw0Ii7DS0VbsMb1Kkte6iC8h_1ftozXCD0ihi4qKEAQcIuFaNcF72l_a8mbGEnnWyFnI3au_DjCzkBClY9Mq_iv-gwWtxFdwT0HcsK-WzbXYL1_A/s1075/21centre.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1075" data-original-width="820" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh5xEF5yilReFMnHBpy-VmYOrnwY4553PrKVxO6WLrwHb2bdKZI-C1aXDnKBUlqCAkw9HYlE2N3XRZw0Ii7DS0VbsMb1Kkte6iC8h_1ftozXCD0ihi4qKEAQcIuFaNcF72l_a8mbGEnnWyFnI3au_DjCzkBClY9Mq_iv-gwWtxFdwT0HcsK-WzbXYL1_A/s320/21centre.jpg" width="244" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div><br /></div><div style="text-align: justify;">Os discursos que com tanta frequência hoje escutamos sobre o fim da história e o início de uma época pós-humana e pós-histórica se esquecem do simples fato de que o homem está sempre no ato de se tornar humano e, portanto, também de deixar de sê-lo e, por assim dizer, de morrer ao humano. A reivindicação de uma animalidade alcançada ou de uma humanidade realizada do homem no fim da história não dá conta dessa constitutiva incompletude do ser humano. <br /><br />Considerações similares também valem para os discursos sobre a morte de Deus. Assim como o homem está sempre no ato de se tornar humano e de deixar de sê-lo, também o tornar-se divino de Deus está sempre em curso e jamais é cumprido de uma vez por todas. Nesse sentido é que deve ser compreendida a frase de Pascal sobre Cristo em agonia no fim dos tempos. Em agonia – isto é, segundo o étimo, em luta ou em conflito com a própria divindade, por isso, jamais morto, mas sempre, por assim dizer, moribundo para si mesmo. O único sentido da história humana está nessa incessante agonia e os palavrórios sobre o fim da história parecem ignorar o fato – ainda que evidente – de que a história está sempre no ato de acabar. <br /><br />Daí a insistência do último Hölderlin sobre os semideuses e sobre as figuras quase divinas ou mais que humanas. A história é feita por seres já e ainda não divinos, já e ainda não humanos: isto é, há uma “semi-história” assim como existem semideuses e quase humanos. Por isso, as únicas chaves para interpretar a história são a angelologia e a demonologia, que vêm nela – como haviam feito os Padres e o próprio Paulo, quando chama de anjos (ou demônios) as potências e os governos deste mundo – uma luta sem trégua entre menos que deuses e mais – ou menos – que homens. E se podemos dizer algo sobre nossa condição presente é que nos últimos dois anos vimos com inaudita clareza os demônios operando ferozmente na história e os endomoniados seguindo-os de forma cega em sua vã tentativa de enxotar para sempre os anjos – aqueles anjos que, de resto, antes de sua infinita queda na história, eles próprios eram. </div><div style="text-align: justify;"> </div><div style="text-align: justify;"> </div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;">04 de agosto de 2022</div><div style="text-align: justify;"> </div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;">Original disponível em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-angeli-e-demoni?fbclid=IwAR0i-O4YTBXh2iZJlAWG22EjSTSpNJQGmY2FNn_5E_7Ncwq1Dqm9_7SeUwQ</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;"> </span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;">Tradução: Vinícius Nicastro Honesko </span><br /></div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;"><br /><br /></div>Khôrahttp://www.blogger.com/profile/06654908722644519478noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-82221258326121023342022-07-19T15:48:00.003-03:002022-07-19T15:48:34.590-03:00Sobre o direito de resistência - Giorgio Agamben<div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhB3F4fWLb4H4S6ifc0IEJXhX9_lEZkHyLOeDI3n_-Oekh9Px20tBOuCe5v0DCOLflJm1Y9EuWlGuEpbRVCOaZzB_5m6v4e479lpVxzlcn5iKL541921iYFJy12i5FwJsHr-FWjmrajAAImY5AAJwZVMsUr0w7jHW94BGiOtSU5V1NNnO_TeeebovH1Kg/s1000/monumento%20partigiano.jpg"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhB3F4fWLb4H4S6ifc0IEJXhX9_lEZkHyLOeDI3n_-Oekh9Px20tBOuCe5v0DCOLflJm1Y9EuWlGuEpbRVCOaZzB_5m6v4e479lpVxzlcn5iKL541921iYFJy12i5FwJsHr-FWjmrajAAImY5AAJwZVMsUr0w7jHW94BGiOtSU5V1NNnO_TeeebovH1Kg/s320/monumento%20partigiano.jpg" /></a><br /></div><div style="text-align: left;"> <br /><div style="text-align: right;"><br /></div></div><div style="text-align: right;"><i>Giorgio Agamben</i> <br /></div><div> <br /></div><div style="text-align: left;"><div style="text-align: justify;">Procurarei partilhar com vocês algumas reflexões sobre a resistência e sobre a guerra civil. Não estou aqui lembrando a vocês de que um direito de resistência existe já no mundo antigo – que conhece uma tradição de elogios do tiranicídio – e na idade média. Tomás compendiou a posição da teologia escolástica no princípio segundo o qual o regime tirânico, enquanto substitui o bem comum pelo interesse de uma parte, não pode ser iustum. A resistência – Tomás diz a pertubatio – contra esse regime não é, por isso, uma <i>seditio</i>. <br /><br />É óbvio que a matéria comporta necessariamente um nível de ambiguidade quanto à definição do caráter tirânico de determinado regime, do qual dão testemunho as cautelas de Bartolo, que em seu <i>Tratado sobre os guelfos e gibelinos</i>, distingue um tirano <i>ex defectu tituli </i>de um tirano <i>ex parte exercitti</i>, mas depois tem dificuldades em identificar uma <i>iusta causa resistendi</i>. <br /><br />Essa ambiguidade reaparece nas discussões de 1947 sobre a inscrição de um direito de resistência na constituição italiana. Dossetti havia proposto, como vocês sabem, que no texto figurasse um artigo assim: “A resistência individual e coletiva aos atos do poder público que violam as liberdades fundamentais e os direitos garantidos por esta constituição é um direito e um dever dos cidadãos”. O texto, que havia sido sustentado também por Aldo Moro, não foi incluído, e Meuccio Ruini, que presidia a chamada Comissão dos 75 que iria devia preparar o texto da constituição – e que, alguns anos depois, como presidente do Senado, iria distinguir-se pelo como com o qual procurou impedir a discussão parlamentar sobre a assim chamada lei-golpe –, preferiu adiar a decisão para o voto da assembleia, que ele sabia que seria negativo. <br /><br />Não se pode negar, todavia, que as hesitações e objeções dos juristas – dentre os quais Costantino Mortati – não tinham argumentos, quando apontavam que não se pode regular juridicamente a relação entre direito positivo e revolução. É o problema que, a propósito da figura do <i>partigiano</i>, tão importante na modernidade, Schmitt definia como o problema da “regulamentação do irregular”. É curioso que os juristas falassem de relação entre direito positivo e “revolução”: teria sido mais correto falar de “guerra civil”. Como traçar, com efeito, um limite entre direito de resistência e guerra civil? Não seria talvez a guerra civil o êxito inevitável de um direito de resistência seriamente compreendido? <br /><br />A hipótese que pretendo hoje lhes apresentar é a de que nesse modo de colocar o problema da resistência se deixa escapar o essencial, ou seja, uma mudança radical que diz respeito à própria natureza do estado moderno – isto é, por assim dizer, pós-napoleônico. Não se pode falar de resistência se não se refletir antes sobre essa transformação. <br /><br />O direito público europeu é essencialmente um direito de guerra. O estado moderno se define não só, em geral, por meio de seu monopólio da violência, mas, de modo mais concreto, por meio de seu monopólio do <i>jus belli.</i> A este direito o estado não pode renunciar, mesmo com o custo, como vemos hoje, de se inventar novas formas de guerra. O <i>jus belli</i> não é apenas o direito de fazer e conduzir guerras, mas também o de regular juridicamente a conduta de guerra. Ele distinguia assim entre o estado de guerra e o estado de paz, entre o inimigo público e o delinquente, entre a população civil e o exército combatente, entre o soldado e o partigiano. <br /><br />Agora, sabemos que justamente essas características essenciais do <i>jus belli</i> já há tempos acabaram, e minha hipótese é que isso implica uma mudança muito essencial na natureza do estado. Já ao longo da Segunda Guerra Mundial a distinção entre população civil e exército combatente foi progressivamente sendo obliterada. Um indicativo disso é que as convenções de Genebra de 1949 reconhecem um estatuto jurídico à população que participa da guerra sem pertencer ao exército regular, com a condição, porém, de que fosse possível identificar comandantes, que as armas fossem exibidas e houvesse alguma marca visível. <br /><br />Mais uma vez, essas disposições não me interessam enquanto levam a um reconhecimento do direito de resistência – de resto, como vocês viram, muito limitado: um <i>partigiano</i> que exibe as armas não é um <i>partigiano</i>, é um <i>partigiano</i> inconsciente –, mas porque implicam uma transformação do próprio estado enquanto detentor do <i>jus belli.</i> Como vimos e continuamos a ver, o estado, que do ponto de vista estritamente jurídico já ingressou de forma estável no estado de exceção, não abole o <i>jus belli</i>, mas perde <i>ipso facto</i> a possibilidade de distinguir entre guerra regular e guerra civil. Hoje, temos diante de nós um estado que conduz uma espécie de guerra civil planetária, a qual não pode de modo algum reconhecer como tal. <br /><br />Resistência e guerra civil são portanto rubricadas como atos de terrorismo e aqui não será inoportuno lembrar que a primeira aparição do terrorismo no pós-guerra foi obra de um general do exército francês, Raoul Salan, comandante supremo das forças armadas francesas na Argélia, que havia criado, em 1961, a OAS, que significa: <i>Organisation armée secrète</i>. Reflitam sobre a fórmula “exército secreto”: o exército regular se torna irregular, o soldado se confundo com o terrorista. <br /><br />Parece-me evidente que diante desse estado não se pode falar de um “direito de resistência”, eventualmente codificável na constituição ou que pode ser obtido a partir desta. E isso ao menos por duas razões: a primeira, é que a guerra civil não pode ser regulada, como o estado por sua vez está procurando fazer por meio de uma série indefinida de decretos, que alteraram de cima a baixo o princípio de estabilidade da lei. Temos diante de nós um estado que conduz e procura codificar uma forma camuflada de guerra civil. A segunda, que constitui para mim uma tese irrenunciável, é que nas condições presentes a resistência não pode ser uma atividade separada: ela só pode se tornar uma forma de vida. Haverá verdadeiramente resistência apenas se e quando cada um souber extrair dessa tese as consequências que lhe dizem respeito. <br /><br /><br /><br /><span style="font-size: x-small;">Texto originalmente publicado em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-sul-diritto-di-resistenza<br /><br />Tradução: Vinícius Nicastro Honesko<br /><br />Foto: Monumento ao partigiano, em Bergamo. </span><br /><br /></div> </div>Khôrahttp://www.blogger.com/profile/06654908722644519478noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-91318701132930884422022-03-25T16:36:00.000-03:002022-03-25T16:36:17.344-03:00[Quase um testamento] - trechos (Pier Paolo Pasolini)<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgbHCnONIlOPDQm5bMdDNXow_EIwBiqVNnU3sjvYig-yUqe7vBeugC8znCASLzL1udKqxyVCrbEzPqvZgcBnm6A-cjEhBLeaDiUNh6eEDkjvzrY87thRaljcY2fozwm7z0_FsHXc3nM6uogvYnZOWzSAiy_O2qanpCqGvG12VOn0uytbJ5-sTNAW7v3LQ/s697/Paso%20gramsci.webp" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="697" data-original-width="474" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgbHCnONIlOPDQm5bMdDNXow_EIwBiqVNnU3sjvYig-yUqe7vBeugC8znCASLzL1udKqxyVCrbEzPqvZgcBnm6A-cjEhBLeaDiUNh6eEDkjvzrY87thRaljcY2fozwm7z0_FsHXc3nM6uogvYnZOWzSAiy_O2qanpCqGvG12VOn0uytbJ5-sTNAW7v3LQ/s320/Paso%20gramsci.webp" width="218" /></a></div><br />
<p></p><p class="MsoNormal"><b>Temas religiosos</b></p>
<p class="MsoNormal"> </p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Sou um marxista que escolhe temas
religiosos. Que legal! Agora existe também um monopólio sobre a religião? Eis a
conclusão de quarenta anos de propaganda horrenda e de macarthismo! Muitos dos
homens mais profundamente religiosos deste século são comunistas. Penso, por
exemplo, em Gramsci (o fundador do PCI). Eles lutaram pelo puro altruísmo e
deram a sua vida apenas um alto ideal (que podemos definir, sem mais, acético),
pelo qual desafiaram a prisão, torturas e a morte. Compreenda-se que quando digo
religioso não pretendo dizer crente numa religião confessional.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Os comunistas são, com efeito
(quase todos), laicos e positivistas. Mas eles herdaram o laicismo e o
positivismo da civilização burguesa (a grande civilização burguesa que fez a
revolução liberal antes, e, depois, a revolução industrial). Só que, depois, no burguês,
o laicismo e positivismo permaneceram como tais (patrimônio, todavia, de uma <i style="mso-bidi-font-style: normal;">elite </i>burguesa), enquanto o nacionalismo
e o imperialismo, nascidos como consequência direta do capitalismo, levaram o
burguês médio, muito rapidamente, às velhas posições clericais: a cultivar uma
religião de puro interesse, hipócrita, estatal e até mesmo feroz (veja-se o
clero czarista e franquista). Portanto, quando muito, a pergunta legítima de fato
não é “pode um comunista ser religioso?”, mas, antes, “pode um burguês ser
religioso?”.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> </p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><b>Creio em Deus?</b></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> </p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Sempre, desde os quatorze anos, me defini como não crente. Nos últimos meses, pela primeira vez concebi, de algum
modo, uma ideia, mesmo que imanentista e científica, de Deus.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Como cheguei a ela é algo muito
curioso. Sempre me interessei por problemas linguísticos, ainda que no campo
estritamente italianístico, e na Itália acabo considerado como um linguista
interessante, mesmo que mal informado e estranho. Recentemente, me apaixonei
pelas pesquisas linguísticas sobre o cinema. E, é natural, não podia deixar de
recorrer à semiologia, ciência para a qual os sistemas de signos são infinitos
e não apenas linguísticos.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Cheguei à conclusão de que o “cinema”,
ao reproduzir tal ciência, faz uma perfeita descrição semiológica da realidade;
e de que o sistema de signos do cinema é, na prática, o mesmo sistema de signos
da realidade. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Portanto, a realidade é uma
linguagem! </i>É preciso fazer a semiologia da realidade mais do que a do
cinema! Mas se a realidade <i style="mso-bidi-font-style: normal;">fala, </i>quem
é que fala e com quem fala? A realidade fala com si mesma: é um sistema de
signos por meio do qual a realidade fala com a realidade. Tudo isso não é
spinoziano? Essa ideia da realidade não se assemelha à de Deus?</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> </p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><b>Golpes de Estado</b></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> </p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Tanto a tentativa de golpe de estado
na Itália de 1964 quanto a de golpe, bem sucedida, na Grécia são acontecimentos no âmbito
da OTAN. Na Itália, teve início um processo contra os jornalistas do “Espresso”
que denunciaram à opinião pública alguns dos responsáveis pela tentativa de golpe
de Estado. A investigação parlamentar, no entanto, foi parada pelo partido católico
(democrata cristão) com o apoio dos socialistas. Evidentemente, não se quer
chegar à responsabilidade internacional.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Nós, intelectuais (nesse acontecimento
muito grave), brilhamos por nossa ausência. É verdade que nos jantares, nos
bares, falamos a torto e a direito contra a classe política dirigente, contra a
burguesia italiana que a exprime, e, em geral, contra este pequeno, marginal,
provinciano, indiferente e miserável país que é a Itália. Mas, e nós? O que
fazemos? Talvez somos melhores? O que é que nos faz ser ausentes e mudos? O
medo? A prudência? A desconfiança? A preguiça? A ignorância? Sim, tudo isso. </p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> </p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;">Trecho de <i>[Quasi un testamento], </i>publicado em Pier Paolo Pasolini, <i>Saggi sulla politica e sulla società, </i>org. de Walter Sitti e Silvia De Laude, Milão, Mondadori, 1999, pp. 866-869. Originalmente, <i>[Quasi un testamento] </i>foi fruto de uma série de encontros entre Pasolini e o jornalista inglês Peter Dragadze. O texto foi publicado em 17/11/1975 em "Gente". Trad.: Vinícius N. Honesko </span><br /></p>
<p><style>@font-face
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<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Quando o professor Prini anunciou o tema
desta minha intervenção difundiu-se na sala uma reação que nos velhos
relatórios parlamentares era indicada com a palavra <i style="mso-bidi-font-style: normal;">sensacional. </i>Dentre outras coisas, para muitos deve ter parecido que
num congresso sobre as perspectivas do mundo de amanhã seria ao menos
impertinente (no duplo sentido: não pertinente e descaradamente provocador)
pedir a palavra para lembrar aos participantes de que <i style="mso-bidi-font-style: normal;">amanhã </i>o mundo, enquanto mundo cultural humano, pode acabar e que
uma resposta qualquer ao como o mundo poderá e deverá ser <i style="mso-bidi-font-style: normal;">amanhã </i>comporta uma resposta preliminar: se <i style="mso-bidi-font-style: normal;">amanhã </i>haverá um mundo e se hoje não há o risco de que pelo menos
certas forças conspiram para seu fim. Outros dentre os participantes poderiam mesmo
pensar que a simples proposição de um problema do gênero é algo ligeiramente arguto,
no sentido napolitano do termo, e que chamar a atenção para tal possibilidade
extrema tem como único efeito deprimir os ânimos com sinistras evocações e
induzir aos comportamentos defensivos, entre o sério e o irreverente, que
constituem as esconjurações utilizadas nessas circunstâncias. No entanto, devo
convidar os presentes à superação dessas reações imediatas, assegurando-lhes ao
mesmo tempo que minha intervenção não tem nenhuma intenção de deprimir os
ânimos, mas simplesmente de trazer uma contribuição, ainda que modesta, à justa
proposição de um problema que, justamente, se ignorado ou ligeiramente deixado
de lado pode comportar soluções catastróficas negativas para toda a humanidade.
</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">No fundo, como problema preliminar em
relação ao do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">mundo de amanhã </i>está a
relação homem-mundo, na forma como essa se configura na moderna consciência
cultural. Creio que essa relação se articula em dois momentos distintos e
ligados, acerca dos quais o mundo contemporâneo mostra ter uma sensibilidade
particularmente aguda. Por um lado, o mundo, isto é, a sociedade dos homens
atravessada pelos valores humanos e operável segundo tais valores, não <i style="mso-bidi-font-style: normal;">deve </i>acabar, mesmo se – e, aliás,
justamente porque – os indivíduos singulares fruem de uma existência finita;
por outro lado, o mundo <i style="mso-bidi-font-style: normal;">pode </i>acabar,
e não tanto no sentido natural de uma catástrofe cósmica que pode destruir ou
tornar inabitável o planeta Terra, mas no sentido de que a civilização humana
pode auto-aniquilar-se, perder o sentido dos valores intersubjetivos da vida
humana, e empregar as mesmas potências de domínio técnico da natureza segundo
uma modalidade que, por excelência, é privada de sentido, isto é, para
aniquilar a própria possibilidade da cultura. Se tivesse que especificar nossa
época em seu caráter fundamental, diria que ela vive, talvez como jamais
aconteceu na história, na dramática consciência desse <i style="mso-bidi-font-style: normal;">deve </i>e daquele <i style="mso-bidi-font-style: normal;">pode: </i>na
alternativa entre o mundo que <i style="mso-bidi-font-style: normal;">deve </i>continuar
mas que <i style="mso-bidi-font-style: normal;">pode </i>acabar, entre a vida que
<i style="mso-bidi-font-style: normal;">deve </i>ter um sentido mas que <i style="mso-bidi-font-style: normal;">pode </i>também perdê-lo para sempre, e de
que o homem, apenas o homem, carrega toda a responsabilidade desse <i style="mso-bidi-font-style: normal;">deve </i>e desse <i style="mso-bidi-font-style: normal;">pode, </i>não sendo garantido por nenhum plano da história universal
operante, independentemente das decisões reais do homem em sociedade. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Sem dúvida, na consciência cultural de
nossa época a relação entre o que poderíamos chamar de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ethos da transcendência da vida nos valores intersubjetivos </i>e
aquilo que, pelo contrário, representa a ruína desse <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ethos </i>com a correlativa perda de sentido e de operacionalidade do
mundo, apresenta uma grande variedade de concretas manifestações que uma
pesquisa sistemática deveria colocar em evidência e submeter ao juízo. A
manifestação extrema, na qual o risco se revela da forma mais radical, adquire
aspectos nitidamente psicopatológicos, como por exemplo na <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Weltuntergangserlebnis </i>esquizofrênica; mas mesmo sem chegar a esses
casos limites, nuances mórbidas do gênero mostram-se copiosas na ruína das
linguagens artísticas, assim como em certas correntes existencialistas e em
certas modalidades do costume. Quando Heidegger em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Sein und Zeit </i>teoriza o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Geworfenheit</i><span style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-size: xx-small;"><a href="#_ftn1" name="_ftnref1" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span><span class="MsoFootnoteReference"><b><span style="font-family: "Book Antiqua", serif;">[1]</span></b></span></span></span></a></span></span><i style="mso-bidi-font-style: normal;">
</i>do ser-aí; quando Sartre em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">La nausée
</i>ilustra o mundo indigesto aprofundando-se no nada; quando David Herbert
Lawrence lamenta que perdemos o sol, os planetas e o Senhor com as sete
estrelas da Ursa recebendo, por outro lado, o “pobre, achatado e mesquinho
mundo da ciência e da técnica”; quando Moravia em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">La noia </i>descreve “a doença dos objetos”, vemos nessas expressões
culturais, ainda que tão diversas, uma <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Stimmung
</i>comum, a assinalação de um mesmo risco radical, isto é, a possibilidade de
um mundo que se arruína quando se arruína o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ethos
</i>cultural que o condiciona e o sustenta. Por outro lado, expressões
culturais tão heterogêneas como o instinto de morte de Freud e o ocaso do
ocidente de Spengler parecem acenar na mesma direção.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Não é improvável que uma tão aguda
consciência cultural do fim do mundo na época moderna tenha se alimentado
também da possibilidade da guerra nuclear ou dos terrificantes episódios de
genocídio dos campos nazistas. Mas já o fato de que tivemos necessidade dos
200.000 de Hiroshima ou dos 6.000.000 de judeus mortos nos campos de extermínio
nos indica quão profundas são as raízes de nossa crise. De fato, deveria ser o
suficiente imaginar apenas um rosto humano que carrega os signos da violência e
da ofensa sofrida por outro humano para colocar em movimento, em quem observa aquele
rosto, a dramática tensão do mundo que <i style="mso-bidi-font-style: normal;">pode
</i>mas não <i style="mso-bidi-font-style: normal;">deve </i>acabar. Que os
rostos perdidos por culpa humana sejam 200.000 ou 6.000.000 não acrescenta nada
ao escândalo daquele único rosto, e não é preciso mais do que aquele único
rosto para questionar o mundo e para mobilizar o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ethos </i>cultural humano que sempre é chamado a tornar mais habitável
e mais familiar o planeta Terra para cada um e para todos. Mas, à parte
Hiroshima e os campos de concentração, existem outros aspectos de nosso mundo
moderno que tornaram particularmente aguda nossa sensibilidade em relação ao
risco do fim. As rapidíssimas transformações nos gêneros de vida introduzidas
pela difusão do progresso técnico, as correntes migratórias do campo à cidade,
de regiões subdesenvolvidas a regiões industriais, o salto repentino de
economias mais ou menos atrasadas ou mesmo de sociedades tribais a economias e
sociedades agora inseridas no mundo ocidental levaram à crise um grande número
de pátrias culturais tradicionais sem que, no entanto, a integração na nova
pátria cultural tivesse tido tempo de amadurecer. Os rápidos processos de
transição, as lacerações e os vazios que tais processos comportam, a perda de
modelos culturais numa situação em que não podem mais ser utilizados aqueles
familiares induzem a crises graves e repropõem, da maneira mais dramática, os
problemas elementares da relação com o mundo. Apenas nesse quadro conseguimos
compreender, por exemplo, as reflexões de um operário francês como Navel, que
em seus <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Parcours </i>expõe, de modo
autobiográfico, a passagem de sua origem camponesa à condição operária
exprimindo, ademais, de maneira recorrente, a reconquista do mundo e do próprio
corpo que a vida de uma fábrica moderna colocava em causa de forma radical. De
noite, o operário Navel volta a seu quarto e prepara para si a janta, e eis que
se surpreende no ato de abrir a porta do armário e pegar o saleiro para
temperar a comida.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-left: 1.0cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 11.0pt; line-height: 150%;">A
mão, sensível às percepções decorrentes da madeira do armário, do ferro do
puxador, do vidro do saleiro e da pitada de sal, me maravilha: eu me espantava
por encontrar tamanho tesouro de conhecimentos na simples pele dos dedos.
Procurava viver completamente acordado, sempre consciente do momento, da coisa,
do gesto. O adulto vive dormindo em suas rotinas. É sempre bom aprender sobre a
vida, e, de repente, eu estava apreendendo sobre a árvore verde pelo contato
direto. Não há senão a vida, sobre a qual nos perguntamos se vale a pena ser
vivida. Enquanto a mão segurava sua pitada de sal em cristais diminutos, sabia
que ela era similar àquela de todas as mulheres da terra quando fazem o gesto
de abrir o saleiro para salgar a comida, o gesto que eu via minha mãe fazer; e
eu dialogava com ela na fugacidade do sonho: “Eu salgo minha comida, minha mão
é a tua, e tu não estás morta”. Mas além de minha mãe, eu estava em relação com
todos os mortos, com todas as presenças que tinham me dado uma mão como esta,
similar às outras. O homem vive com suas mãos. A minha tinha pertencido a uma
geração de servos. Com frequência eu tinha preenchido sua solidão no fornilho
quente de um cachimbo, depois de um dia trabalhando com o machado nas florestas
cobertas de neve. A vida é o que se toca, e as mesmas sensações induzem aos
mesmos sonhos. Lenhadores, vinicultores, camponeses ao me darem suas mãos
tinham me dado também aquilo que havia passado por suas cabeças, pouco importa
se tivessem sido ruivas ou loiras.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Certa vez, percorrendo uma estrada da
Calábria, acabei perguntando a um velho pastor algumas indicações sobre uma
encruzilhada que estava procurando e, dado que suas informações eram pouco
claras, propus que ele me acompanhasse no carro até a encruzilhada em questão,
para depois trazê-lo de volta ao lugar onde havíamos nos encontrado. O velho
pastor aceitou com extrema desconfiança meu convite e, durante o percurso,
olhava com crescente agitação pela janela, como que procurando alguma coisa
muito importante. De repente gritou: “Onde está o campanário de Marcellinara?
Não o vejo mais!”. Efetivamente, o campanário daquela vila havia desaparecido no
horizonte e, com isso, o mundo familiar e o espaço doméstico desse arcaico
pastor havia sido profundamente alterado, ele que, com esse desaparecimento,
experimentava angustiosamente o desabamento de sua pequeníssima pátria cultura,
com sua habitual paisagem que servia de cenário cotidiano a seus deslocamentos
com o rebanho. Assim, não foi possível ir adiante na companhia de nosso pastor,
e foi necessário levá-lo de volta ao ponto de partida, onde saudou com alegria
o reaparecimento do campanário sumido. Esse é um exemplo extremo, e quase
caricatural, da ligação com uma pátria cultural como condição de
operacionalidade do mundo; mas essa ligação é bem conhecida do estudioso das
civilizações e é particularmente evidente nas civilizações arcaicas.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">O que pode acontecer quando numa
situação colonial determinada corrente migratória muda repentinamente de
habitat e passa de condições tribais de vida a uma civilização de tipo
industrial já foi várias vezes apontado. Aqui, lembrarei do caso do qual se
ocupou o etnólogo Jean Rouch em Accra, na Costa do Ouro, quando ainda havia o
regime colonial britânico; um caso particularmente interessante, documentado,
dentre outros, também por um documentário do próprio Rouch, que foi projetado
alguns anos atrás no festival internacional do filme etnológico de Florença.
Trata-se de uma corrente migratória dos negros Bambara do médio Níger – onde
viviam da pesca e da agricultura – para as muito mais civilizadas regiões da
costa. Os Bambara eram atraídos pelos fabulosos ganhos esperados na nascente
sociedade industrial da costa onde, de fato, encontraram condições materiais de
vida certamente muito melhores do que aquelas de sua pátria tribal. Exceto que
na nova localidade se verificou um duplo fato: por um lado, todo o dispositivo
cultural do qual dispunham os emigrantes na pátria para enfrentar os momentos
críticos de suas vidas como agricultores e pescadores, isto é, seu panteão,
seus ritos, suas cerimônias, não eram mais utilizáveis na nova localidade,
ligados como eram a um habitat então abandonado, a momentos críticos que tinham
perdido seu sentido e a relações tribais agora em dissolução; por outro lado,
os Bambara eram acometidos por uma grave série de episódios traumatizantes em
suas vidas de emigrados. O governador inglês, o exército, a polícia, a
burocracia, os carros, os trens etc. constituíam um conjunto de elementos que
eles não conseguiam inserir em nenhum horizonte cultural e que representavam o
resultado terminal de um processo histórico ao qual eles permaneciam substancialmente
estranhos. Nessa situação, muito rapidamente foram verificadas na comunidade
Bambara de Accra uma série de desordens psíquicas muito graves, caracterizadas
pela insurgência de impulsos inconscientes que não podiam ser nem controlados
nem sublimados em determinados horizontes culturais. A comunidade em Accra foi
assim afetada por uma verdadeira epidemia de desordens psíquicas, que alarmou
as autoridades, ainda mais porque médicos e psiquiatras não conseguiam intervir
de maneira eficaz na situação, que escapava aos quadros nosológicos da medicina
e da psiquiatria europeias. Por sua vez, quem conseguiu resolver a situação foi
um bambara, homem de grande experiência e que tinha maiores capacidades do que
os outros emigrantes. Este tomou alguns elementos do velho dispositivo cultural
– por exemplo, o altar cônico no centro de um descampado – modificando-os em
função da nova situação. Dividiu assim o altar tradicional em várias seções, a
mais alta delas hospedava o governador como nova divindade do panteão industrial
e colonial, e depois, um de cada vez, o médico, o chefe da polícia, a mulher do
médico etc.. Na base do altar cônico, que representava em certo sentido uma
imagem mítica da situação colonial, estava o lugar das ofertas sacrificiais.
Mas o que tornava particularmente interessante essa readaptação da religião
tribal à nova situação eram os ritos e as cerimônias. Os bambaras, mantendo os
velhos ritos de possessão característicos de sua tradição mágico-religiosa,
deixavam-se então possuir pelas divindades do novo panteão. Assim, ao longo das
cerimônias celebradas junto ao altar, eles eram possuídos pelo espírito do
governador inglês, ou pelo chefe da polícia, ou pelo maquinista das ferrovias e
usavam como fórmulas litúrgicas as fórmulas burocráticas que constituíam outro
elemento traumatizante de sua nova vida na cidade. Desse modo, os traumas e os
conflitos acumulados cotidianamente, e que antes explodiam em verdadeiras
desordens psíquicas, agora eram levados a fluir à ordem ritual da possessão e
recebiam um horizonte nas figurações míticas definidas. Assim, o novo
dispositivo cultural pôde absorver uma função de reequilíbrio e reintegração, e
as desordens psíquicas encontraram sua mais apropriada modalidade de controle. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Esse episódio singular estimula algumas
observações. Sem dúvida, a ciência e a técnica do ocidente, nascidas de um <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ethos </i>cultural particular que é fruto de
uma longa história, constituem valores não apenas universais, mas
universalizáveis. Todavia, são valores universalizáveis na medida em que entram
com um ritmo crescente no processo de socialização e na medida em que a ciência
e a técnica desenvolvem inteiramente o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ethos
</i>adequado ao tipo de humanismo integral e de integral democracia que,
certamente, ciência e técnica encerram, ao menos potencialmente. A tal
propósito, não deve ser esquecido que um longo caminho ainda resta a ser
percorrido, e que como há uma magia negra há também um modo de compreender a
ciência como tecnicismo moralmente indiferente e, portanto, compatível, por
exemplo, com o segredo atômico e com a guerra nuclear. O problema central do
mundo de hoje se mostra, assim, na fundação de um novo <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ethos </i>cultural não mais adequado ao campanário de Marcellinara, mas
a todo o planeta Terra, que agora os astronautas contemplam das solidões
cósmicas e que está, de fato, se tornando, ainda que por meio de contradições e
resistências, nossa pátria cultural fundamentalmente unitária, com toda a
riqueza de suas memórias e de suas perspectivas. Na medida em que esse novo <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ethos </i>se tornará realmente operante e
unificador, recolhendo numa consciente ecumenicidade de valores comuns a
originária dispersão e divisão das gentes e das culturas, o mundo que <i style="mso-bidi-font-style: normal;">não deve </i>acabar sairá vitorioso da
recorrente tentação do mundo que <i style="mso-bidi-font-style: normal;">pode </i>acabar,
e o fim de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">um mundo </i>não significará o
fim <i style="mso-bidi-font-style: normal;">do mundo, </i>mas, simplesmente, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">o mundo de amanhã. </i><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10.5pt; line-height: 150%;">Originalmente
publicado em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Il mondo di domani, </i>organizado
por Pietro Prini, Roma, Edizioni Abete, 1964. Encontro sobre o tema <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O mundo de amanhã, </i>organizado pelo
instituto de filosofia da Universidade de Perúgia. Republicado em Ernesto de
Martino, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Oltre Eboli. Ter saggi. </i>Org.
por Stefano de Matteis, Roma, Edizioni e/o, 2021, pp. 83-93.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10.5pt; line-height: 150%;">Dentre
as outras intervenções, estão: Robert Junk (em defesa da fantasia social);
Gabriel Marcel (o sagrado na idade da técnica); Guido Calogero (o futuro e o
eterno); Paul Ricoeur (perguntas à filosofia de amanhã); Octave Mannoni
(perspectivas psicanalíticas); Umberto Eco (pesquisa interdisciplinar); Giulio
Carlo Argan (o futuro das artes); Carlo Bo (literatura de amanhã); Arnold
Gehlen (cristalização cultural). </span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10.5pt; line-height: 150%;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10.5pt; line-height: 150%;">Trad.:
Vinícius Nicastro Honesko. </span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10.5pt; line-height: 150%;">Imagem: Campanário de Marcellinara <br /></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10.5pt; line-height: 150%;"> </span></p>
<div style="mso-element: footnote-list;"><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<div id="ftn1" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref1" name="_ftn1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 10.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[1]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> Grosso modo, o ser-lançado ao mundo
[N.T.] </span></p>
</div>
</div>
<p><style>@font-face
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</p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><i> </i></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><i><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEivW0sHod57Pf0LmebgBw-F1ksvnjUlPupA_gNyhAfmh4o5lPK5SPXmMyzmwubt-Hm96nbLaZatPMwUhXw40T-5X3m70l5rOJnVPW603hE8vYHiH2RxauwHrDE89HXMQoVkCROqsUlZgZYa72tyVIJw6KcA6NaCbinQE2EYh3fpchwTSTdGzmRNNFhiRw=s800" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="450" data-original-width="800" height="180" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEivW0sHod57Pf0LmebgBw-F1ksvnjUlPupA_gNyhAfmh4o5lPK5SPXmMyzmwubt-Hm96nbLaZatPMwUhXw40T-5X3m70l5rOJnVPW603hE8vYHiH2RxauwHrDE89HXMQoVkCROqsUlZgZYa72tyVIJw6KcA6NaCbinQE2EYh3fpchwTSTdGzmRNNFhiRw=s320" width="320" /></a></i></div><i><br /></i><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: right;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><i> </i></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: right;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><i>Franco "Bifo" Berardi </i><br /></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> </span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><i><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> </span><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Ucrânia, agonia do Ocidente & cia:
o que acontece é uma geopolítica da psicose.</span></i>
</p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><br /></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Aniquilar</span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Anéantir,
</span></i><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">o último livro de
Houellebecq, é um volume de setencentas páginas, mas a metade seria o
suficiente. Não é o melhor de seus livros, mas a mais desesperada representação,
ao mesmo tempo resignada e raivosa, do declínio da raça dominante.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">França profunda: uma família se reúne ao
redor do velho pai de 80 anos que sofreu um derrame. Como interminável do velho
patriarca que trabalhava para o serviço secreto. O filho Paul, que também
trabalha para o serviço secreto, mas também para o Ministério da Economia,
descobre ter um câncer terminal durante o coma interminável do pai. O outro
filho, Aurélien, irmão de Paul, se suicida, incapaz de enfrentar uma vida na
qual sempre se sentiu derrotado. Resta a filha, Cécile, católica integralista,
mulher de um cartorário fascistóide que perdeu o trabalho mas que encontrou
outro nos ambientes da direita lepenista.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">A doença terminal é o tema desse romance
medíocre: a agonia da civilização ocidental.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Não é um belo espetáculo, porque a
mente branca não se resigna ao inelutável. A reação dos velhos brancos agonizantes
é trágica. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">O cenário em que essa agonia se desenrola
é a França de hoje, culturalmente devastada por quarenta anos de agressividade
liberal, um país espectral no qual a luta política se desenvolve no quadro mefístico
de nacionalismo agressivo, racismo branco, rancor islâmico e integralismo
economicista.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Mas o cenário também é o mundo pós-global,
ameaçado pelo delírio senil da cultura dominadora mas em declínio: branca,
cristã, imperialista.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> </span></b></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Guerra
/ Agonia / Suicídio</span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Na fronteira oriental da Europa dois
velhos brancos jogam uma partida na qual nenhum dos dois pode retroceder.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">O velho branco americano voltou de sua
derrota mais humilhante e trágica. Pior do que Saigon, Kabul permanece no
imaginário global como a marca do caos mental da raça dominadora.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">O velho branco russo sabe que seu
poder se funda numa promessa nacionalista: trata-se de vingar a honra violada
da Santa Mãe Rússia.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Quem dá um passo atrás, perde tudo.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Que Putin seja um nazista é algo óbvio
desde quando terminou a guerra na Chechênia com o extermínio. Mas era um
nazista muito bem quisto pelo presidente americano que, olhando-o nos olhos,
disse ter entendido que era sincero. Muito bem quisto também pelos bancos
ingleses, que estão cheios dos rublos rapinados pelos amigos de Putin depois do
desmantelamento das estruturas públicas herdadas da União Soviética. Os hierarcas
russos e os anglo-americanos eram amigos caríssimos quando se tratava de
destruir a civilização social, a herança do movimento operário e comunista.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Mas a amizade entre assassinos não
dura. De fato, para que serviria a OTAN se de fato a paz tivesse sido
instaurada? E como acabariam os imensos lucros das empresas que produzem armas
de destruição em massa?</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">A expansão da OTAN servia para renovar
uma hostilidade à qual o capitalismo não podia renunciar.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Não existe uma explicação racional
para a guerra ucraniana, porque ela é o momento culminante de uma crise psicótica
do cérebro branco. Que racionalidade tem a expansão da OTAN que fornece armas
aos nazistas poloneses, bálticos e ucranianos contra o nazismo russo? Por outro
lado, Biden obtém o resultado mais temido pelos estrategistas americanos: levou
Rússia e China a um abraço que há cinquenta anos Nixon havia conseguido romper.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Portanto, para nos orientarmos na
guerra iminente não necessitamos de geopolítica, mas de psicopatologia: talvez
necessitemos de uma geopolítica da psicose.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">De fato, está em jogo o declínio político,
econômico, demográfico e, por fim, psíquico da civilização branca, que não pode
aceitar a perspectiva do exaurimento e prefere a destruição total, o suicídio,
em vez da lenta extinção do domínio branco.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> </span></b></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Ocidente
/ Futuro / Declínio </span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">A guerra ucraniana inaugura uma histérica
corrida aos armamentos, uma consolidação das fronteiras, um estado de violência
crescente: demonstrações de força que, na realidade, são a marca do caos senil
em que caiu o Ocidente.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Em 23 de fevereiro de 2022, quando as
tropas russas já tinham entrado em Donbass, Trump, ex-presidente e candidato à
próxima presidência, julga ser Putin um gênio do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">peacekeeping. </i>Sugere que os Estados Unidos deveriam mandar um exército
similar à fronteira com o México.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Tentemos compreender o que quer dizer
o obsceno Trump. Qual o núcleo de verdade de seu delírio? O que está em questão
é o próprio conceito de Ocidente.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Mas quem é o Ocidente?</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Se para a palavra “Ocidente” damos uma
definição geográfica, então a Rússia dele não faz parte. Mas se pensamos o núcleo
antropológico e histórico dessa palavra, então a Rússia é mais Ocidente do que qualquer
outro ocidente.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">O Ocidente é a terra do declínio. Mas é
também a terra da obsessão pelo futuro. E as duas coisas são uma só, uma vez
que para os organismos sujeitos à segunda lei da termodinâmica, como são os corpos
individuais e sociais, futuro quer dizer declínio.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Assim, estamos unidos no futurismo e
no declínio, isto é, no delírio de onipotência e na desesperada impotência, nós,
ocidentais do Oeste, e os ocidentais da desmesurada pátria russa. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Trump tem o mérito de dizer isso sem tantos
rodeios: nossos inimigos não são os russos, mas os povos do sul do mundo, que
exploramos por séculos e agora pretendem dividir as riquezas do planeta conosco,
e querem imigrar para nossas terras. Nosso inimigo é a China, que humilhamos, a
África, que depredamos. Não a branquíssima Rússia que faz parte do Grande
Ocidente.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">A lógica trompista se funda na supremacia
da raça branca da qual a Rússia é o posto mais avançado e extremo.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">A lógica de Biden, pelo contrário, é a
defesa do mundo livre, que, claro, seria o seu, nascido de um genocídio, da
deportação de milhões de escravos e fundado no ineliminável racismo sistêmico.
Biden rompe o Grande Ocidente em prol de um Pequeno Ocidente sem Rússia, destinado
a se despedaçar e a envolver em seu suicídio todo o planeta.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Tentemos definir o Ocidente como
esfera de uma raça dominadora obcecada pelo futuro. O tempo tende a um impulso
expansivo: o crescimento econômico, a acumulação, o capitalismo. Justamente
essa obsessão pelo futuro alimenta a máquina do domínio: investimento de
presente concreto (de prazer, de relaxamento muscular) em abstrato valor
futuro.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Talvez poderíamos dizer, reformulando
um pouco os fundamentos da análise marxiana do valor, que o valor de troca é
justamente essa acumulação do presente (o concreto) em formas abstratas (como o
dinheiro) que podem ser trocadas amanhã.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Essa fixação pelo futuro por nada é
uma modalidade cognitiva natural do humano: grande parte das culturas humanas são
fundadas numa percepção cíclica do tempo ou na dilatação insuperável do presente.
</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">O Futurismo é a passagem para a plena
autoconsciência, também estética, das culturas da expansão. Mas os futurismos são
diversos e em alguma medida divergentes. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">A obsessão pelo futuro tem implicações
diversas na esfera teológico-utópica, própria da cultura russa, e na esfera técnico-econômica,
própria da cultura euroamericana.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">O Cosmismo de Fedorov e o Futurismo de
Maiakovski têm um sopro escatológico que falta tanto no fanatismo tecnocrático
marinettiano quanto em seus epígonos americanos como Elon Musk. Talvez seja por
isso que cabe à Rússia terminar a história do Ocidente, e aqui estamos nós.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">O
nazismo está por toda parte</span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Depois do limiar pandêmico, o novo
panorama é a guerra que opõe o nazismo ao nazismo. Gunther Anders havia pressentido,
em seus escritos dos anos 1960, que a carga niilista do nazismo de fato não
havia sido exaurida com a derrota de Hitler, e que voltaria à cena do mundo em
razão do agigantamento da potência técnica que provoca um sentimento de humilhação
da vontade humana, reduzida à impotência.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Agora vemos que o nazismo reemerge
como forma psicopolítica do corpo demente da raça branca, que reage
raivosamente a seu irrefreável declínio. O caos viral criou as condições de
formação de uma infraestrutura biopolítica global, mas também acentuou, até o pânico,
a percepção de ingovernabilidade da proliferação caótica da matéria que perde a
ordem, que se desintegra e morre. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">O Ocidente obliterou a morte porque não
é compatível com a obsessão pelo futuro. Obliterou a senescência porque não é
compatível com a expansão. Mas agora o envelhecimento (demográfico, cultural e
também econômico) das culturas dominadoras do norte do mundo se apresenta como
um espectro que a cultura branca não pode nem mesmo pensar, imagina então se
poderia aceitar.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Eis, portanto, o cérebro branco (tanto
o de Biden e quanto o de Putin) entrando numa crise furiosa de demência senil.
O mais desenfreado de todos, Donald Trump, diz uma verdade que ninguém quer
escutar: Putin é nosso melhor amigo. Certamente é um assassino racista, mas nós
não somos menos. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Biden representa a raiva impotente que
têm os velhos quando se dão conta do declínio das forças físicas, da energia psíquica
e da eficácia mental. Agora, o exaurimento está em fase avançada, a extinção é
a única perspectiva tranquilizadora.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Poderá a humanidade salvar-se da violência
exterminadora do cérebro demente da civilização ocidental – russa, europeia e
americana – em agonia?</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">De qualquer forma que evolua a invasão
da Ucrânia – que se torne uma ocupação estável do território (improvável) ou que
se conclua com uma retirada das tropas russas depois de ter destruído o aparato
militar que os euroamericanos forneceram a Kiev (provável) –, o conflito não
pode ser resolvido com a derrota de um ou de outro dos dois velhos patriarcas.
Nenhum deles pode concordar em desistir antes de ter vencido. Por isso, essa
invasão parece abrir uma fase de guerra tendencialmente mundial (e
tendencialmente nuclear).</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">A questão que por ora se mostra sem
resposta é relativa ao mundo não ocidental, que por alguns séculos sofreu a
arrogância, a violência e a exploração de europeus, russos e, por fim,
americanos.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Na guerra suicida que o Ocidente desatou
contra o Outro Ocidente as primeiras vítimas são aqueles que sofreram as
consequências do delírio dos dois ocidentes, aqueles que não queriam nenhuma
guerra, mas devem sofrer seus efeitos.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">A guerra final contra a humanidade
começou.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">A única coisa que podemos fazer é
desertar, transformar coletivamente o medo em pensamento, e nos resignar com o
inevitável, porque só assim, nos contratempos, pode acontecer o imprevisível: a
paz, o prazer, a vida. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"><span style="mso-spacerun: yes;"><span style="font-size: x-small;">Franco "Bifo" Berardi, <i>Guerra & demenza (senile), </i>trad.: Vinícius N. Honesko. Originalmente publicado em: https://not.neroeditions.com/guerra-demenza-senile/ </span><br /></span></span></p>
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Agamben</span></i></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">O último texto ao qual Michel Foucault
teve tempo de dar a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">imprimatur </i>se
chama: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">La vie: l’expérience et la
Science. </i>Foi publicado na “Revue de Metaphysique et de Morale” de
janeiro-março de 1985, mas havia sido enviado à revista em abril de 1984,
poucos dias antes da morte do autor. Trata-se de um texto concebido por
Foucault como uma homenagem máxima a seu mestre, Georges Canguilhem. A razão
pela qual escolhi esse texto é que nele, curiosamente, Foucault – que havia começado
se inspirando no novo vitalismo de Bichat, em sua definição da vida como “o
conjunto de funções que resistem à morte” – acaba por ver na vida o âmbito
próprio do erro. “A vida – escreve – produz com o homem um vivente que jamais
se encontra completamente em seu lugar, que está votado a errar e a falhar”. É
possível ver nesse diagnóstico sombrio um eco da crise que Foucault diz ter
atravessado depois de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">La volonté de
savoir. </i>Acredito, todavia, que aí está em jogo algo completamente diferente
de uma simples crise de pessimismo; algo como uma nova experiência que obriga
Foucault a reformular de forma radical a relação do sujeito com a verdade, ou
seja, um tema especificamente foucaultiano. Retirando o sujeito do terreno do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">cogito, </i>esse texto o coloca no terreno
da <i style="mso-bidi-font-style: normal;">vida – </i>mas de uma ‘vida’
compreendida como o lugar próprio do erro. “Não será talvez preciso reformular
desde o início a teoria do sujeito – escreve Foucault –, uma dado que a
consciência, em vez de se abrir à verdade do mundo, enraíza-se nos ‘erros’ da
vida?”. O que pode ser uma consciência que não tem mais como correlato a
verdade da abertura a um mundo, mas apenas a vida e sua errância? Como pensar
um sujeito a partir não de uma relação com a verdade, mas de uma relação com o
erro?</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Ainda Badiou, um dos filósofos
franceses mais interessantes da geração seguinte à de Foucault, pensa o sujeito
a partir de um encontro contingente com a verdade e deixa de lado o vivente
como “o animal da espécie humana”, o qual serve de suporte para esse encontro.
Foucault, pelo contrário, parece, sinalizar para uma dimensão em que o decisivo
não é mais a relação com a verdade, mas com o erro. Para Foucault, não se trata
de um simples ajuste epistemológico, mas de um deslocamento da teoria da
consciência para um terreno absolutamente inexplorado.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Gostaria de analisar outro texto –
cronologicamente muito distante desse de Foucault – que provém da filosofia
medieval e de um âmbito de problemas muito conhecido dos medievalistas, mas que
me parece merecer uma atenção ulterior, uma vez que poderia nos dar, por assim
dizer, um novo paradigma por meio do qual observar o problema da verdade.
Trata-se das <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Questiones Disputatae de
Esse Intellegibili, </i>de Guglielmo di Alnwick, escrito mais ou menos no
início do século XIV. Um tratado, como diz o título, sobre o Ser Inteligível,
isto é, que se interroga sobre o estatuto ontológico do inteligível.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">A primeira <i style="mso-bidi-font-style: normal;">quaestio </i>soa assim: “se o ser representado e conhecido de uma coisa
for idêntico <i style="mso-bidi-font-style: normal;">realiter </i>à forma que o
representa e ao ato de conhecimento” (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Ultrum
esse repraesentatum obiecti repraesentati sit idem realiter cum forma
repraesentante et utrum esse cognitum obiecti cogniti sit idem realiter cum
actu cognoscendi</i>). Isto é: o ser inteligível, a intelegibilidade de uma
coisa, ou melhor, a verdade ou a ilatência de uma coisa, é algo diverso ou não
da coisa e do ato de conhecimento? Guglielmo começa se referindo à opinião dos
modernos – como os chama – segundo os quais o ser representado de uma coisa é
uma <i style="mso-bidi-font-style: normal;">entitas </i>distinta da forma representante,
o ser conhecido de algo é uma entidade distinta do conhecimento. O ser
inteligível se apresenta como uma entidade realmente distinta do conhecimento e
da forma cognoscente. Então, Guglielmo prossegue articulando a diferença
scotista, muito aguda, entre ser <i style="mso-bidi-font-style: normal;">real </i>(a
coisa, enquanto existe por si) e ser <i style="mso-bidi-font-style: normal;">intencional,
</i>ou inteligível, que compete à coisa enquanto representada, e é distinto do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">esse rationis, </i>a coisa enquanto é
conhecida com o intelecto. Segundo alguns, diz Guglielmo, a distinção <i style="mso-bidi-font-style: normal;">intencional </i>não é a mesma que uma
distinção <i style="mso-bidi-font-style: normal;">real. </i>Isto é, uma coisa
pode ser distinta intencionalmente, sem que isso implique uma distinção de
realidade.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Na segunda questão, Guglielmo continua
se perguntando se o ser inteligível, que convém <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ab aeterno </i>à criatura, seja ou não idêntico <i style="mso-bidi-font-style: normal;">realiter </i>a Deus (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Ultrum esse
intellegibile conveniens creature ab aeterno sit idem realiter cum Deo</i>). Ou
seja, se a inteligibilidade de toda coisa, de toda criatura, seja idêntica ou
não a Deus. Guglielmo responde positivamente: “Afirmo que o ser inteligível da
criatura é <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ab aeterno </i>idêntico
realmente a Deus”. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Aqui, para mim, não importa tanto a
posição particular de Guglielmo de Alnwick. Antes, me importa de fato apontar
para aquilo que chamarei de a aporia do ser intencional ou da verdade. Uma
aporia em sentido técnico – porque dá lugar a um indecidível. Uma aporia que
Meister Eckhart exprime perfeitamente deste modo: “Se a forma ou a espécie por
meio da qual uma coisa é vista ou conhecida fosse diferente da própria coisa,
não poderíamos conhecê-la por meio dela. Mas se, pelo contrário, fosse
totalmente indistinta da coisa, então seria inútil para o conhecimento”. Assim,
se aquilo por meio de que conhecemos algo fosse idêntico à coisa ou totalmente
distinto dela, em ambos os casos, diz Eckhart, não poderia nos servir para o
conhecimento. Seria inútil ou impediria o conhecimento.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">A aporia está aqui: a verdade, a
ilatência, ou a inteligibilidade de uma coisa, não pode ser nem<i style="mso-bidi-font-style: normal;"> outra coisa </i>nem <i style="mso-bidi-font-style: normal;">a coisa mesma. </i>Isto é, o que está em questão é justamente o
estatuto <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ontológico </i>da verdade. A
verdade da coisa não pode ser nem idêntica à coisa nem outra coisa.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Essa aporia atravessa toda a cultura
medieval, entre os séculos XIII e XIV. Assim, por exemplo, nem mesmo a poesia
de amor dos stilnovistas e de Dante pode ser compreendida sem acertar as contas
com ela. Porque aqui o problema se coloca em relação ao estatuto da imagem,
que, como “espécie sensível” e depois como “espécie inteligível”, constitui o
verdadeiro objeto de amor. Também nesse caso a pergunta ressoa: a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">imago </i>é uma coisa diferente do ser de
que é imagem ou é idêntica a ele? Outro problema que fascina os medievais é o
da “substância separada” – se é possível o conhecimento das substâncias
separadas. As substâncias separadas são puras inteligências separadas da
matéria – portanto, das puras inteligibilidades. Também aí, caso se responda
que é possível conhecê-las, quer dizer que é possível conhecer uma pura verdade
indiscernível da coisa.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Por que razão parei numa questão
“aparentemente” <i style="mso-bidi-font-style: normal;">técnica </i>da filosofia
medieval? Certamente não é apenas em razão da extraordinária perspicácia desses
escolásticos tardios, de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">illi qui student
in Scoto. </i>Então, por quê? Pois me parece que o que aqui está em questão é, nada
mais nada menos, a possibilidade de uma separação entre a verdade e a cognoscibilidade.
No sentido de que a relação intencional não se dá entre um sujeito e um objeto,
mas entre um ser e sua inteligibilidade, sua verdade. Aqui aparece a
superioridade desses “intencionistas” medievais – como se costuma chamá-los –
sobre os modernos. Nesse caso, a intencionalidade não é uma relação entre um
sujeito cognoscente e um objeto conhecido, mas, por assim dizer, é uma tensão
interna, uma <i style="mso-bidi-font-style: normal;">intus tensio, </i>do ser.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">A
verdade, isto é, a inteligibilidade, tem um estatuto ontológico e não cognitivo
– </span></i><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">como, por outro
lado, nós, modernos, estamos habituados a pensar. Ou melhor: a relação
cognitiva aí é quebrada por meio da própria inteligibilidade, da própria
cognoscibilidade; uma vez que aquilo que não tem lugar na relação cognitiva
entre sujeito e objeto é justamente essa cognoscibilidade, essa
intencionalidade, o ser inteligível.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Acontece aí algo similar ao que
Fiedler e Klee fazem quando jogam a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">visibilidade
</i>contra a visão. Klee diz que o objetivo do pintor é <i style="mso-bidi-font-style: normal;">tornar visível – </i>não ‘fazer ver’. A <i style="mso-bidi-font-style: normal;">visibilidade </i>é utilizada contra a ‘visão’, contra a representação
tradicional da visão como relação entre um sujeito que vê e um objeto visto.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Também em outro campo, o das análises
linguísticas mais recentes, tende-se cada vez mais a colocar em dúvida a noção
tradicional segundo a qual uma palavra funcionaria como indicador de um
sentido, de acordo com a relação significante/significado. O que, pelo
contrário, se vê na palavra – retomando a noção estoica de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">lekton – </i>é algo como uma pura <i style="mso-bidi-font-style: normal;">dizibilidade.
</i>Também aqui se joga a dizibilidade contra o ‘dito’.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">O que para mim era importante
sublinhar – e que constitui uma das tarefas da filosofia – é que em todos esses
casos a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">verdade </i>é tolhida do âmbito
cognitivo e restituída à <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ontologia. </i>É
natural que, enquanto formulo essa tarefa, acabo me dando conta de ter
simplesmente repetido o que meus amigos franceses chamam de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">une banalité de base. </i>De fato, não é
essa a contribuição filosófica específica de Heidegger? Melhor dizendo, Heidegger
não fez justamente isso – deslocar o conceito de verdade, concebida como <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Lichtung </i>e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Aletheia, </i>da esfera cognitiva à do ser? Restituir a verdade à
ontologia não era a intenção mais própria de Heidegger?</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Entretanto, não foi observado que em
Heidegger esse deslocamento tinha um codicilo – que se encontra expresso na
conferência sobre “A essência da verdade”. O codicilo é que, se isso é verdade,
então a verdade entra necessariamente numa errância, tem a ver, em sua
constituição, com a esfera da não-verdade e do erro. Essa é justamente uma das
teses fundamentais da conferência. Já no <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Crátilo
</i>um nexo entre verdade e errância pode ser encontrado. Platão aí inventa a
etimologia <i style="mso-bidi-font-style: normal;">alé-theia, </i>errância
divina, e vê nessa errância a possibilidade de um movimento, de um “transporte
divino” do ser. Heidegger, por sua vez, a formula mais ou menos assim: a
errância (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Irre</i>) não é algo em que o
homem cai por acaso, ele desde sempre se move na errância, a qual, como <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Um-wahreit, </i>não-verdade, pertence à
própria essência da verdade e é inseparável da abertura do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Dasein. </i>Isso implica uma mudança decisiva da pergunta sobre a
verdade, que vai da verdade como correição e adequação à verdade como cobertura
e erro. Mas o que é uma verdade compreendida como errância? Somos capazes de
pensar a verdade integralmente como uma “errância divina”? E ainda: o que é uma
filosofia que não se orienta mais pela verdade como certeza e conhecimento, mas
a partir de uma relação com o ser que agora é de errância?</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Assim, reencontramos as perguntas de
Foucault das quais partimos. Aquilo em que devemos pensar, a tarefa que essa
conexão entre verdade e errância nos apresenta é, sobretudo, um estatuto não
cognitivo da verdade. Trata-se de uma tarefa que, para nós, modernos, por certo
não é simples. Como pensar, com efeito, um estatuto não cognitivo da verdade?
Algo – para repetir a expressão de um filósofo por quem tenho muita estima –
como uma ‘contemplação sem conhecimento’, um pensamento privado de
características cognitivas. Estamos dispostos a nos arriscar num pensamento que
tenha deposto as pretensões cognitivas que a ele com frequência atribuímos? </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;">Mais do que responder a essas
perguntas, limito-me a propor uma epígrafe para uma possível pesquisa futura.
Uma epígrafe que gostaria de retirar de uma enigmática passagem da Sétima
Carta, na qual Platão escreve: “É necessário aprender ao mesmo tempo o falso e
o verdadeiro de todo o ser”. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Cai to
pseudos ama cai alethes tes holes ousias </i>(344b, 1-2). <i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></i><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> </span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 11pt; line-height: 150%;">A
presente intervenção foi apresentada na Jornada dedicada à questão
da <i style="mso-bidi-font-style: normal;">verdade </i>organizada por ocasião da
inauguração da Seção de Veneza do Instituto Italiano para os Estudos
Filosófico, em 1º de fevereiro de 1997. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 11pt; line-height: 150%;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 11pt; line-height: 150%;">Giorgio
Agamben, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Verità come erranza </i>in.: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Paradosso – rivista di Filosofia, </i>n. 2-3,
org. de Massimo Donà, Padova, Il Poligrafo 1998, pp. 13-17.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 11pt; line-height: 150%;">Tradução:
Vinícius Nicastro Honesko</span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 11pt; line-height: 150%;"> </span></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua",serif; font-size: 11pt; line-height: 150%;">Imagem: Paul Klee, <i>Morte e Fogo,</i> 1940. </span></p>
<p><style>@font-face
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De fato, estamos convencidos de que apenas hoje a obra de Illich tenha alcançado aquilo que Walter Benjamin chamava de "a hora da legibilidades". Illich não aparece mais, como no momento de sua primeira recepção nos anos 70, como o genial iconoclasta que submeteu a uma crítica implacável as principais instituições do Ocidente. O que está em questão em sua crítica da modernidade não é nada mais nada menos do que um novo olhar para a humanidade do homem - sob a condição de especificar que, aqui, por "humanidade" não se compreende tanto uma natureza biológica ou culturalmente pressuposta quanto sobretudo as práticas imemoriais por meio das quais os homens e as mulheres tornam a vida possivel para si, isto é, aquela dimensão que Illich chama "convivialidade". Problema filosófico - isto é, ético e político - por excelência, se a filosofia é antes de tudo memória da antropogênese, ou seja, do incessante e jamais realizado tornar-se humano do vivente homem. </p><p style="text-align: justify;">Se, nessa perspectiva, Illich representa a reaparição intempestiva na modernidade de um exercício radical da <i>krisis, </i>de uma chamada em juízo sem atenuantes da cultura ocidental, essa <i>krisis </i>e esse juízo são tão mais radicais à medida que provêm de uma de suas componentes essenciais: a tradição cristã. Os textos recolhidos neste primeiro volume dão testemunho de um período - entre 1951 e 1971 - que coincide com a formação de Illich no interior dessa tradição. São também os anos de seu empenho pastoral como sacerdote, primeiro como vice-pároco da Igreja da Encarnação, em Nova Iorque, e depois como vice-reitor da Universidade Católica de Porto Rico, da participação no concílio Vaticano II em Roma e da fundação, em Cuernavaca, do Centro intercultural de documentação. Uma vez que Illich age aí como sacerdote dentro da Igreja, forte é a tentação de distinguir o autor desses textos do Illich que em 15 de março de 1969, abandonando "os privilégios e os poderes que lhe foram conferidos pela Igreja", renunciará para sempre ao exercício público do sacerdócio e começará uma atividade de escritor e conferencista que fará dele, em poucos anos, uma figura conhecida e discutida em todo o mundo. No entanto, basta ler com cuidado os textos aqui reunidos para se dar conta de que entre o Illich dentro da Igreja e aquele fora (ou à margem) da Igreja não é possível marcar nenhuma fratura.</p><p style="text-align: justify;">Os textos editados e inéditos aqui publicados - incluída a preciosa dissertação sobre o pensamento historiográfico de Arnold J. Toynbee - de fato mostram que a conceitualidade do Illich crítico da modernidade e arqueólogo da convivialidade nasce como um desenvolvimento radical e coerente de categorias teológicas e filosófica já presentes no pensamento do sacerdote. Não supreende, portanto, que a categoria em todos os sentidos decisiva do pensamento do jovem Illich seja justamente o conceito escatológico de reino, que sempre foi reconhecido como o conteúdo central da pregação de Jesus e que, todavia, foi progressivamente desaparecendo do vocabulário e da prática pastoral da Igreja.</p><p style="text-align: justify;">Nessa perspectiva, todo o pensamento de Illich se mostra como um pensamento do reino, de sua especial presença entre nós, já realizada e, todavia, ainda por vir. A incompletude que está aí em questão não é de ordem temporal, não implica uma sucessão cronológica nem um cumprimento a se realizar no futuro. Completude e incompletude estão ambas contidas no presente, porque "só no presente o Senhor redime. Nós não temos ideia se existe um futuro". Não há, nesse sentido, como pretende a Igreja, uma "história da salvação", uma <i>oikonomia </i>divina que se manifesta e cumpre progressivamente na história. A salvação não tem história, "o Senhor está vindo neste momento" e, aqui e agora, o crente testemunha sua vinda (daí, no pensamento subsequente de Illich, a constante desconfiança em relação ao futuro: "Não permitirei que a sombra do futuro se estabeleça sobre os conceitos por meio dos quais procuro pensar aquilo que é e aquilo que foi"). </p><p style="text-align: justify;">Illich compara várias vezes a presença do reino (escrito significativamente com minúscula) à compreensão de uma piada ou de uma brincadeira - o crente e o não crente, escreve ele, são como dois homens que escutam uma piada: "Os dois compreendem o sentido das palavras, mas só um ri, isto é, compreende a história". A experiência do evento do reino não implica, para Illich - segundo o paradigma que dominou a política ocidental, compreendida aquela da Igreja -, um ulterior evento histórico a ser realizado no futuro. Ela coincide integralmente com o instante presente, no qual quem compreendeu o anúncio dele dá testemunho rindo. Como Illich sugere na entrevista sobre o sentido de Cuernavaca publicada no apêndice deste volume: "Devemos ser homens que jogam porque sabemos... que o próprio Deus não poderia ter criado o mundo com outro objetivo senão para com ele brincar, ainda que certamente poderia tê-lo criado para fazer com que sirva a algo por meio da 'inutilidade', por meio do 'jogo'." É esse inútil jogo que com obstinada e irredutível seriedade Illich praticará por toda sua vida.</p><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;">Giorgio Agamben. <i>Prefazione. </i>In.: Ivan Illich. <i>Celebrare la consapevolezza. Opere complete. Vol. I. Scritti 1951-1971, </i>a cura di Fabio Milana. Vincenza, Neri Pozza: 2020. pp. 9-11. Trad.: Vinícius N. Honesko</span><br /></p>Khôrahttp://www.blogger.com/profile/06654908722644519478noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-84170830537198696412021-12-21T15:51:00.002-03:002021-12-21T17:11:30.897-03:00Caro Agamben, te escrevo - Donatella di Cesare<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEjbszaVO1qwiANqzMAprY_C6k3Y25HdCTGf5igJ9FzFecJi972m-306o0exp82zyZnlGtDWV5gWNeK9w-Bey7QmQtGzb6VzHYswszM-qXM2wp3IZWG-VcWzLNL7Ly0uSrHllpui7PQYhi4Yhbllx-ocCUpC0jRVYQbDLbVEJSEIssqK8ngRHZML6zbW2A=s640" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="475" data-original-width="640" height="238" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEjbszaVO1qwiANqzMAprY_C6k3Y25HdCTGf5igJ9FzFecJi972m-306o0exp82zyZnlGtDWV5gWNeK9w-Bey7QmQtGzb6VzHYswszM-qXM2wp3IZWG-VcWzLNL7Ly0uSrHllpui7PQYhi4Yhbllx-ocCUpC0jRVYQbDLbVEJSEIssqK8ngRHZML6zbW2A=s320" width="320" /></a></div><br /><p><br /></p><p class="MsoNormal"> </p>
<p class="MsoNormal">De pensador de estatura mundial, crítico do neoliberalismo,
a guru de complotistas, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">no vax</i> e da extrema-direita.
A filosofa escreve uma “carta desde longe” a uma referência que decai. Da pior
forma possível</p>
<p class="MsoNormal"> </p>
<p align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">Donatella di Cesare</i></p>
<p class="MsoNormal"> </p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Enquanto o segundo ano da pandemia
planetária chega ao fim, não se pode deixar de reconhecer, dentre os tantos efeitos
devastadores da imensa catástrofe, um evento trágico que acerta em cheio a
filosofia. Gostaria de chamar de o “caso Agamben”, não objetificar o protagonista
– a quem, pelo contrário, me dirijo, como que escrevendo uma carta desde longe –,
mas para sublinhar sua importância. Giorgio Agamben – goste-se ou não – foi e é
o filósofo mais significativo dos últimos decênios, não apenas em cenário
europeu, mas em nível mundial. Das salas de aula dos Estados Unidos aos mais periféricos
grupos de oposição latino-americanos, o nome de Agamben, de algum modo também
para além do filósofo, se tornou a insígnia de um novo pensamento crítico. Para
os de minha geração, que viveram os anos 70, seus livros – sobretudo a partir
de “Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua”, de 1995 – constituíram a possibilidade
não apenas de investigar o fundo inquietante e autoritário do neoliberalismo,
mas também de desmascarar a pseudo-esquerda triunfante e aguada, que hoje se
autodefine progressismo moderado. Nenhuma crítica do progresso, um inventário
filosófico parado, no máximo, nos anos 80, uma prática da política que a reduz
a governança administrativa sob o ditado da economia. Nos traços da melhor
tradição do século XX – de Foucault a Arendt, de Benjamin a Heidegger – Agamben
nos ofereceu o vocabulário e o repertório conceitual para que tentássemos nos orientar
no complexo cenário do século XXI. Como esquecer as páginas sobre o “campo”,
que, depois de Auschwitz, mais do que desaparecer passa a fazer parte da
paisagem política; e também aquelas sobre a vida nua, sobretudo daqueles que são
expostos sem direitos; ou sobre a democracia pós-totalitária que mantém uma
ligação com o passado? </p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Ainda mais traumático é o que
aconteceu. No blog “Una voce” (Uma voz), hospedado no site da editora Quodlibet,
Agamben começou a comentar a irrupção do coronavírus em termos semi-jornalísticos.
A primeira postagem, de 26 de fevereiro de 2020, foi intitulada “A invenção de
uma pandemia”. Hoje soa como uma funesta profecia. Naquele momento, porém,
Agamben não era o único a se iludir que a Covid-19 não fosse algo mais que uma
gripe. Faltavam dados e a entidade do mal ainda não havia sido revelada. Em meu
pessimismo, que me levava a ver nos primeiros sinais o início de uma nova época,
sentia-me circundada por pessoas que preferiam minimizar ou rechaçar o assunto.
Durante o lockdown todos fomos afetados pelas medidas tomadas para enfrentar o vírus,
tão indispensáveis quanto chocantes. A vida confinada nos muros domésticos,
entregue às telas, privada dos outros e da <i style="mso-bidi-font-style: normal;">polis,
</i>parecia quase insuportável – até a chegada do sofrimento daqueles que, sem
respirar, lutavam pela vida nas terapias intensivas. A imagem dos caminhões que
em Bergamo transportavam os féretros marcou para todo o mundo o ponto de não-retorno.
O vírus soberano, que os regimes soberanistas, de Trump a Bolsonaro, pretendiam
ignorar grotescamente ou utilizar para as próprias finalidades, manifestou-se
em toda sua terrível potência. A catástrofe era ingovernável. E expunha a mesquinhez
e a inépcia da política das fronteiras fechadas. A Europa reagiu.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Para Agamben, era tempo de
reconhecer em letras garrafais: “Cometi um erro interpretativo, porque a
pandemia não foi uma invenção”. Mas Agamben nunca retificou isso. Suas postagens
seguiram até julho de 2020 com o mesmo tom. Enquanto a notícia de seu
incipiente negacionismo se difundia no exterior, eu lia aquelas linhas
constrangedoras convicta de que o pesadelo logo terminaria. Não foi assim. As postagens
se tornaram matéria de dois livros e a “voz” do blog continuou a vaticinar,
chegando ao ponto mais baixo com duas intervenções em julho de 2021 – “Cidadãos
de segunda classe” e “Carteira verde” – nas quais o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">green pass </i>é comparado com a estrela amarela. Uma comparação obscena,
que deu estofo aos piores movimentos <i style="mso-bidi-font-style: normal;">no
vax </i>ao legitimá-los. O resto, incluindo a “Comissão pela dúvida e pela
precaução”, é história recente.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">É motivada a preocupação com uma
deriva securitária. A política do medo, a fobocracia que governa e submete o “nós”
instilando o temor por aquilo que está fora, fomentando o ódio pelo outro, é o
fenômeno político atual que caracteriza as democracias imunitárias e precede a
pandemia. De diversas formas os filósofos, sociólogos, economistas e politólogos
denunciaram isso. Tão justo quanto é sustentar que o contexto italiano é, nesse
quesito, um laboratório político sem igual. No entanto, não se pode confundir o
estado de emergência com o estado de exceção. Um terremoto, uma enchente, uma
pandemia são eventos inesperados que são enfrentados de acordo com a
necessidade. O estado de exceção é ditado por uma vontade soberana. É claro que
um pode invadir o outro e, por isso, somos conscientes tanto do perigo de um
estado de emergência institucionalizado quanto da ameaça representada por
aquelas medidas de controle e vigilância que, uma vez introduzidas, correm o
risco de se tornar inapagáveis. É verdade: não há governo que não possa se aproveitar
da pandemia. Mantenhamos a suspeita, que é o sal da democracia.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Mas não encampamos o passo
ulterior, o da deriva complotística. Por isso, não dizemos nem que a epidemia
de Covid-19 é uma invenção nem que foi utilizada como pretexto
intencionalmente, como faz Agamben na advertência de seu livro: “Se os poderes
que governam o mundo decidiram utilizar-se como pretexto de uma pandemia – neste
ponto, não importa se verdadeira ou simulada...”. Personalizar o poder, torná-lo
um sujeito com tanta vontade, atribuir a ele uma intenção, significa endossar
uma visão complotística. E também quer dizer que não considera o papel da técnica,
a engrenagem que, como ensina Heidegger, utiliza-se daqueles que pretenderiam
dela se utilizar. Os projetistas se tornam projetados. Hoje não é possível deixar
de ver o poder através desse dispositivo. Justamente o vírus soberano mostrou todos
os limites de um poder que gira no vazio, injusto, violento, e, no entanto,
impotente diante do desastre, incapaz de enfrentar a doença do mundo. </p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Não, não me associo à vulgata
anti-complô daqueles que, certos de possuírem a razão e a verdade, reduzem um
fenômeno complexo a um espasmo mental ou a uma mentira. Com muito desprazer digo
que as sombrias insinuações de Agamben, suas declarações sobre a “construção de
um cenário fictício” e sobre a “organização integral do corpo dos cidadãos”,
que remetem a um novo paradigma de biossegurança e a uma espécie de terror sanitário,
o inscrevem, infelizmente, no panorama atual do complotismo.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Como é notório, Agamben foi
reencontrado na direita, aliás, na ultra-direita, com um séquito de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">no vax </i>e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">no pass. </i>Ocasionalmente, até chegou a atacar a esquerda que defendia
um plano de vacinação. Não sei de nenhuma palavra, pelo contrário, que tenha
dito nesses dois anos sobre as revoltas nas prisões, sobre os idosos dizimados
nas RSA (Residência Sanitária Assistencial), sobre os sem-teto abandonados nas
cidades, sobre aqueles que de repente ficaram sem trabalho, sobre os
entregadores, os trabalhadores braçais e os invisíveis. Esperaria do filósofo
que nos fez refletir sobre a “vida nua” um apelo pelos imigrantes que nas fronteiras
europeias são violentados, rejeitados e deixados à morte. Aliás, uma iniciativa
que, com sua autoridade, teria tido certo peso. Nada disso.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">Com frequência nos obrigou a elucubrações
equivocadas e, sobretudo, ao tomar posições paradoxais, nos levou ao senso
comum. Penso que talvez isso tenha sido um dos maiores danos, uma vez que a filosofia
requer radicalidade. Mas os danos são ulteriores e dificilmente estimáveis, a
partir de um excedente de descrédito lançado contra a filosofia. Para nós,
agambenianos, que sobrevivemos a esse trauma, trata-se de repensar categorias,
conceitos, termos, alguns – como “estado de exceção” – que já se tornaram quase
grotescos. E será necessário salvar Agamben de Agamben, salvar o legado de seu
pensamento dessa deriva. Tampouco é possível deixar de lado a questão política,
uma vez que falha, da pior forma possível, uma das referências decisivas para
uma esquerda que não se rende nem ao neoliberalismo nem à versão do
progressismo moderado. O caminho será duro. </p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> </p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">L’Expresso, 19 de dezembro de
2021. <br /></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;">pp. 24-25. <span style="mso-spacerun: yes;"></span><span style="mso-spacerun: yes;">Tradução: Vinícius Nicastro Honesko <br /></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> </p><p><style>@font-face
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{page:WordSection1;}</style></p>Khôrahttp://www.blogger.com/profile/06654908722644519478noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-4291297999841465222021-11-22T07:20:00.002-03:002021-11-22T07:20:40.458-03:00Pequeno parágrafo sobre o plástico<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-F2RiiEJx9hE/YZtu4N8KVHI/AAAAAAAACPk/V9YZxHRPfPYAZtLlasEjqCfznBQR-sbVwCLcBGAsYHQ/s800/mancha-lixo-pacifico-maior-que-se-supunha-conexao-planeta.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="448" data-original-width="800" height="179" src="https://1.bp.blogspot.com/-F2RiiEJx9hE/YZtu4N8KVHI/AAAAAAAACPk/V9YZxHRPfPYAZtLlasEjqCfznBQR-sbVwCLcBGAsYHQ/s320/mancha-lixo-pacifico-maior-que-se-supunha-conexao-planeta.jpg" width="320" /></a></div> <p></p><p style="text-align: justify;">Quando será que a ciência inventará um decodificador dos sonhos dos cães? Sempre fico pensando: com que sonham os cães? Qual o mundo onde se passam suas histórias? Que língua eles falam nesse lugar? Talvez a melhor figura desse mundo possa ser a bolinha de plástico com a qual todo cão se alucina durante uma brincadeira qualquer. De fato, o plástico é, para nós - esses bichos que fizeram dos cães família (<i>canis lupus familiaris</i>) -, o melhor representante da eternidade. Esse polímero feito dos velhos dinossauros vive conosco e com os cães, isto é, também é parte da família. Mas enquanto os cães e nós haveremos de dizer adeus a este mundo - mesmo que um dia tenhamos sonhado nossa eternidade -, ao plástico caberá a majestade eterna sobre tudo o que ora insistimos, hipocritamente, em dizer familiar. Assim partiremos, não alhures, mas à origem, ao profundo e arcaico reino onde não haverá mais distinção entre o sonhos dos cães e os carbonos dos plásticos, dos cães e - possessivo já sem sentido - nossos. Enquanto isso, o cão sonha e o menino corre para acordá-lo com sua bolinha de plástico, ansioso para brincar e, durante a brincadeira, parar um pouco o tempo no instante eterno do riso. <br /></p>Khôrahttp://www.blogger.com/profile/06654908722644519478noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-65511191057874017482021-10-18T21:05:00.011-03:002021-10-18T21:18:12.464-03:00Estrondo comum - Jean-Luc Nancy<div style="text-align: justify;"><br /></div> <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://lh3.googleusercontent.com/-QLx-sJKoiKo/YW4KvTjg9zI/AAAAAAAACPY/MK1eAnk9t98THrNvuG8L_aTXju6meOHmQCLcBGAsYHQ/Chile.jpeg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="1200" data-original-width="1600" height="240" src="https://lh3.googleusercontent.com/-QLx-sJKoiKo/YW4KvTjg9zI/AAAAAAAACPY/MK1eAnk9t98THrNvuG8L_aTXju6meOHmQCLcBGAsYHQ/Chile.jpeg" width="320" /></a></div><i><br /></i><div style="text-align: right;"><i>Jean-Luc Nancy</i><br /></div><div><br /></div><div style="text-align: justify;">Da política, hoje, não resta nada. <br /><br />Da política, hoje, resta tudo. <br /><br />Não resta nada porque o que definiu o conteúdo da palavra “política" foi levado por uma história cuja reativação e, sem dúvida, revisitação não podem ser colocadas em questão. <br /><br />Essa história foi de início a que viu nascer a <i>polis</i>: isto é, a forma que uma coletividade reunida e governada por si, e não por uma autoridade divina, dava a si própria. A cidade grega, como a romana, repousava numa agitação das organizações teocráticas ou tribais (com frequência imbricadas umas nas outras), mas não sem destas manter aspectos muito importantes das fores hierarquias estruturantes das sociedades tradicionais, bem como o deslocamento de uma parte da sacralidade social no que podemos nomear (com anacronismo) uma religião civil. <br /><br />O desenho geral da cidade antiga já não tem nenhum sentido para nós, uma vez que já foi desfeito. A <i>polis</i> se formou, transformou e deformou com o movimento de uma civilização em mutação profunda, saindo da estrita reprodução agrícola para esboçar formas de produção e de comércio que Marx nomeou “pré-capitalistas". Por fim, inventa-se a representação de outra cidade, aquela de um Deus resolutamente fora do mundo e diante do qual nenhuma hierarquia nem dominação que estruturavam a sociedade se sustenta. <br /><br />A tarefa de fazer o mundo – no sentido do espaço de circulação do sentido –, à qual a cidade tinha de responder, divide-se em duas: de um lado, a transfiguração do mundo em reino de Deus, de outro, a configuração do mundo dos homens. “Política” se torna assim o nome de um espaço por inventar: será nomeada "república" (em todos os valores sucessivos da palavra desde, ao menos, Bodin), espaço de criação do sentido (do mundo) cuja consistência e estabilidade (<i>Estado</i>) são assegurados pela soberania (a qualidade de origem e de fundamento do “direito público"). Uma vez que soberania cessa de ser identificada com uma figura (real, por exemplo) e se torna a do “povo”, ela toma como tarefa a configuração do espaço do dito povo. Isso se chama democracia. <br /><br />Neste ponto, a política sofre uma profunda deiscência: por um lado, ela permanece identificada à República e ao Estado ao mesmo tempo que o campo de seu exercício e de sua legitimidade se determina como “nação”, identidade suposta e/ou moldada, por outro lado, mantendo os traços de uma instância figural, autoritária e separada, ela é votada à anular sua própria separação e a desaparecer enquanto esfera distinta a fim de renascer imergida em todas as esferas da existência comum, a começar pelo exercício da decisão (conselho, democracia direta). <br /><br />A separação d'"a política" não foi abolida nem verdadeiramente mantida. O que de fato se produziu foi uma impregnação de todas as esferas da existência comum (isto é, tendencialmente, da mera existência, o comum de existir, humano e não-humano, aquilo de que a palavra “comunismo” tinha que se encarregar), tanto de esquemas infrapolíticos como suprapolíticos. Representações míticas e afetivas de destinos coletivos (cobrindo ao mesmo tempo enormes máquinas técnico-econômicas) ou representação da manutenção generalizada de um conforto na equivalência geral do valor de mercado. De um modo ou de outro, um mundo de completude ou de saturação indefinida. <br /><br />É neste ponto que não resta nada da política e que, por isso, resta tudo: a questão da configuração de um espaço de circulação de sentido (também podemos dizer: de sentido, portanto, de circulação, sem completude) é inteiramente colocado, aberto, escancarado. <br /><br />Nessa abertura ao menos um sinal pisca: todas as formas de completude ou de saturação – ideológicas e/ou técnico-econômicas – engendram desigualdades – desumanidades, insensibilidades, insanidades – não apenas tão pesadas como aquelas que nutriam as antigas hierarquias e sacralidades, mas, além disso, claramente desprovidas de toda aparência de justificação natural ou sobrenatural. <br /><br />É por isso que a política subsiste ao menos como revolta – mesmo que seja, quando necessário, como revolta contra a política. “Revolta” não quer dizer "revolução” na medida em que esta última pôde carregar a projeção tanto de um retorno da base da política – com conservação de sua estrutura – quanto de uma abolição integral da separação de sua instância. A revolta não promete tantos ou tão grandes riscos e é por isso que ela pode desconfiar até mesmo da política revolucionária. Mas ela protesta a respeito do fato de que a existência é insustentável se ela não pode abrir para si espaços de sentido. De que isso não é possível enquanto reina – no lugar de uma circulação – a circularidade implacável de tudo-o-que-equivale-ao-mesmo. De que este “reino” é desprovido de toda espécie de glória e de graça, enquanto o outro, o do céu, flutua esvaído e deformado. <br /><br />Subsistindo como revolta, ela talvez por nada subsista, mas talvez seja necessário não pensar em termos de subsistência, de resto ou de sobrevivência. É sobremaneira necessário nada esperar d'"a política", como se ela fosse o reservatório misterioso de não se sabe qual fonte escondida de sentido. <br /><br />A revolta denuncia ainda “o espírito de um mundo sem espírito”, mesmo se ela não entende mais essa palavra da mesma maneira. Sem espírito: não sem "espiritualidade”, mas sem a vivacidade dos signos e dos gestos por meio dos quais somente se existe. <br /><br />A revolta, no entanto, não explica o que seria a vivacidade de uma existência aberta a suas possibilidades. A revolta não discursa, ela <i>estronda</i>. O que quer dizer "estrondar”? É quase uma onomatopeia. É rosnar, berrar, rugir. É gritar, é murmurar, resmungar, gemer, indignar-se, protestar, zangar-se em muitos. Rosna-se sobretudo sozinho, mas estronda-se em comum. O comum estronda, é uma torrente subterrânea que passa por baixo fazendo tudo tremer. </div><div style="text-align: justify;"> </div><div style="text-align: justify;"> </div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;">Jean-Luc Nancy, <i>Grondement commun, </i>in.: <i>Lignes, </i>n. 41, 2013/2, pp. 111-114. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-lignes-2013-2-page-111.htm</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;"> </span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;">Tradução: Vinícius Nicastro Honesko </span><br /></div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: left;"><div style="text-align: justify;"><br /><br /><br /><br /><br /><br /></div> <br /></div>Khôrahttp://www.blogger.com/profile/06654908722644519478noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-40892570104544468322021-08-29T05:16:00.004-03:002021-10-07T13:24:37.950-03:00Teo-po - Jean-Luc Nancy<div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-qOG5oeQq-8w/YStCKrTEIrI/AAAAAAAACPA/UP8gJdBqKq4NxJurn2hXxSIoZMfrgAWvACLcBGAsYHQ/s640/165_001.jpeg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="640" data-original-width="475" height="320" src="https://1.bp.blogspot.com/-qOG5oeQq-8w/YStCKrTEIrI/AAAAAAAACPA/UP8gJdBqKq4NxJurn2hXxSIoZMfrgAWvACLcBGAsYHQ/s320/165_001.jpeg" width="238" /></a></div><br /></div><p style="text-align: left;"><br /></p><p style="text-align: justify;">Existem absurdos ou erros que não cessam de deslocar e prejudicam o pensamento. O epíteto "teológico-político" faz parte deles (assim como o substantivo homônimo). Essa palavra pretende designar, no mínimo, a aliança e, no máximo, a consubstancialidade dos dois registros que assinala, o teológico e o político. <br /></p><p style="text-align: left;"><br /></p><p style="text-align: justify;">Se o que se objetiva é uma aliança, trata-se daquela que, não há muito, era mais livremente chamada (e que cantava Jean Ferrat) de "o sabre e o aspersório". Caso se queira falar de uma consubstancialidade, o que se implica é uma natureza fundamentalmente teológica da política, ou, o que daria no mesmo, o inverso. De um ou de outro modo, dizemos que a política está autorizada por uma vontade divina mais ou menos dissimulada, ou que a religião tem como único objetivo dominar a coletividade.</p><p style="text-align: left;"><br /></p><p style="text-align: justify;">As alianças são flagrantes, não é preciso se delongar sobre isso. Não é uma razão para se enganar, isto é, para esquecer que toda nossa tradição, teológica e política, repousa sobre a separação das duas esferas. Essa separação está, de início, no judaísmo desde o fim do reino de Israel (e a respeito disso, o atual Estado de Israel vive numa contradição interna). Ela é fundamental no cristianismo (os dois reinos) e há muito tempo é uma questão ativa para o Islã<span style="font-size: xx-small;"><a href="https://www.blogger.com/#_ftn1">[1]</a> </span>(para o qual o chamado ao califado hoje é apenas uma palavra de ordem integralista).<br /></p><p style="text-align: left;"><br /></p><p style="text-align: justify;">Com frequência, o "direito divino” da monarquia francesa é compreendido erroneamente como quase-teocrático, quando, na realidade, era um expediente para se desvincular da feudalidade e que, ademais, sua elaboração, tanto teológica quanto jurídica, foi muito complexa e sutil.<br /></p><p style="text-align: left;"><br /></p><p style="text-align: justify;">A própria monarquia inglesa não pode ser chamada de "teológico-política” pois ela é politicamente constitucional e religiosamente muito mais moral do que teológica. A religião civil dos Estados Unidos torna consubstancial à nação o "in God we trust” inscrito em sua moeda: essa teologia é assim uma plutologia.<br /></p><p style="text-align: left;"><br /></p><p style="text-align: justify;">Na verdade, a política se funda numa autonomia integral (soberana) da instituição de um povo que se declara tal, enquanto a teologia se funda sobre a autonomia de uma interrogação a respeito do objeto nomeado “deus” em relação ao qual não se pressupõe nada mais do que seu nome. Uma não tem nada a ver com a outra.<br /></p><p style="text-align: left;"><br />*** <br /><br /></p><p style="text-align: justify;">Não podemos negligenciar essas relações elementares. Por um lado, Deus não tem nada a fazer na política. Por outro, e isso não é menos importante, a política não pode ignorar que ela está a cargo de tudo aquilo de que deus não se ocupa: ora, ele só se ocupa de seu próprio sentido (que ele é ou não é, e como é etc. – é isso a teologia). O sentido do mundo, ao contrário, não tem nenhum "sentido próprio"; ele se configura e se reconfigura sem cessar, sob forma de direitos, obras, ritmos, relações. A política não tem – sobretudo – que dar esse sentido (a não ser que ela tenha se transformado em teocracia, que não é política). Mas ela tem como tarefa abrir os acessos e permitir o exercício desse sentido: permitir que todos e cada um se deem seus sentidos.<br /></p><p style="text-align: left;"><br /></p><p style="text-align: right;">Jean-Luc Nancy <br /></p><p style="text-align: left;"><br /></p><p style="text-align: justify;">p.s.: que não nos enganemos, se é preciso frisar, sobre o “Tratado teológico-político” de Spinoza, o qual trata apenas da separação dos dois; e também da "teologia política" de Carl Schmitt, que designa (erroneamente) o traçado secularizado de uma concepção (fundamentalmente política) do governo do mundo por deus por meio de sua Igreja. <br /></p><p style="text-align: left;"><br /> <br /> <br /><span style="font-size: x-small;"><br /><a href="https://www.blogger.com/#_ftnref1">[1]</a> Lembremos de L'État inachevé – La question du droit dans les pays arabes, de Ali Mezghani, Gallimard, 2011. </span></p><p style="text-align: left;"><span style="font-size: x-small;"> </span></p><p style="text-align: left;"><span style="font-size: x-small;">Tradução: Vinícius Nicastro Honesko </span><br /><br /></p>Khôrahttp://www.blogger.com/profile/06654908722644519478noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-41060586603914390552021-08-19T07:23:00.010-03:002022-09-06T13:27:25.608-03:00O fim das gerações (ou quarto e sala em Cabul) <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-WnM7KM9SPQ4/YR4yLfp_bBI/AAAAAAAABIw/zpQkJC03huIqrVyiadG2iuyhbstk6m4HgCLcBGAsYHQ/s1200/1200px-Kabul-Pano_By_Dani.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="675" data-original-width="1200" height="206" src="https://1.bp.blogspot.com/-WnM7KM9SPQ4/YR4yLfp_bBI/AAAAAAAABIw/zpQkJC03huIqrVyiadG2iuyhbstk6m4HgCLcBGAsYHQ/w366-h206/1200px-Kabul-Pano_By_Dani.jpg" width="366" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: right;"><span style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;"> </span> Jonnefer Barbosa </span></div><p> <span style="font-size: small;"><i>A Renério Ribeiro de Almeida, in memorian </i></span></p><p><span style="font-size: x-small;"><i>A Thais, Tahyana e Bruno </i></span></p><p><br /></p><p style="text-align: justify;">Experiência era o nome dado a tudo aquilo que uma geração poderia transmitir à outra. Seu conceito abrigava, de forma reconfortante, a ideia de uma passagem do tempo que envolvia formação e mudança, transmissibilidade de histórias e aprendizados, a própria diferença intergeracional garantida pela ritualização da morte - o luto como travessia, aprendizado da dor e liberação do fardo do passado – e incorporação desta em <i>adultos</i> (agora cientes de sua mortalidade) que receberão um legado para que possam edificar outras biografias e novas histórias. </p><p style="text-align: justify;">No fogo da resistência armada contra os nazistas, <i>Capitaine</i> Alexandre (codinome do combatente René Char) escreveu seu famoso aforismo em que afirma que “nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento”, publicado apenas em 1946 em Feuillets d'Hypnos, frase usada como mote por Hannah Arendt, uma década depois, para o conhecido postulado de uma quebra entre o passado e o futuro, que para a teórica significava o próprio fim da tradição: </p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;">(...) o testamento, dizendo ao herdeiro o que será seu de direito, lega posses do passado para o futuro. Sem testamento, ou resolvendo a metáfora, sem tradição – que selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor, parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e humanamente falando, nem passado nem futuro (...). (EPF, p. 31) </span></p><p style="text-align: justify;">Para Arendt a tradição não é o passado, mas as coordenadas de referência da memória. <i>Traditio</i>, para o direito romano, era a entrega de uma coisa (res) a outrem, que consumava os direitos de propriedade da coisa para o recebedor. Na análise arendtiana, mais importante do que a própria coisa transmitida está o liame que vincula o passado ao presente. </p><p style="text-align: justify;">Um amigo de Arendt, refugiado que morreu em um posto da fronteira franquista, tentando sair de forma clandestina da França ocupada e da caça nazista, não lamentava o fim da tradição e a impossibilidade da experiência, vendo nesta pobreza uma possibilidade, “de começar de novo, de contentar-se com pouco, a construir com pouco”, sem um olhar profundo ou interior. Liberar-se do fardo da experiência é desnorteante – a vertigem da falta de chão embaixo de pés descalços – e liberador, mas é uma possiblidade que carrega sempre consigo o risco das superficialidades e das opacidades, sobretudo quando acompanhadas da nostalgia da velha tradição perdida (o ready-made de Duchamp e o urinol tornado objeto-fetiche de uma ideia de obra que não mais se sustenta ou que funciona apenas como uma mercadoria). </p><p style="text-align: justify;">A geração de Char, Arendt e seu amigo aqui oculto pôde olhar com espanto a quebra que se colocava entre ela e as gerações anteriores, presas ao ainda próximo séc. XIX. Talvez mais do que a tradição ou a experiência, hoje nos deparamos com o fim das próprias gerações. Mais de dois anos de pandemia, submersos em uma catástrofe climática para a qual não há soluções técnicas ou científicas, impossibilitados do luto da vida que tivemos de abandonar e até de nossos mortos, somos os últimos humanoides da terra, mesmo que nossa presença terráquea persista de forma indefinida. </p><p style="text-align: justify;">Os nonagenários ainda vivos e as crianças que acabam de nascer fazem parte da mesma geração de <i>últimos</i>, o que nos diferencia é que muitos buscam seus lugares em escapes inexistentes - milhares de pessoas tentando entrar nos aeroportos de milionários escapistas que buscam evadir-se para lugares impossíveis, algumas agarrando-se desesperadas às asas das necroespaçonaves Virgin ou Amazon e sendo queimadas vivas pelas turbinas, outras gastando seus últimos dias na terra para trabalhar duro e comprar uma passagem impossível que nunca será vendida – ou estão em seu quarto e sala em Cabul, contemplando a cidade tomada, quando os elevadores já pararam de funcionar e o lixo de semanas se acumula nas escadas. </p><p style="text-align: justify;">Resta estar em vigília, sem temor nem esperança, sem herança nem testamento. Organizar uma evasão terrena, irremediavelmente terrena, cuidar de quem ainda persiste na vida, respirar fundo no resto de atmosfera, alvoradas e auroras que ainda temos. E não perder o deslumbramento de olhar as estrelas, mesmo que muitas delas já não existam, mesmo que não faça sentido algum, não contenha experiência alguma. </p><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: xx-small;">imagem: noite de Kabul. </span></p><div><br /></div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-44912439890338886662021-07-26T05:02:00.004-03:002021-07-26T05:29:08.236-03:00Manifesto de "Rivolta femminile"
<p class="MsoNormal"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-cHpvScxvjjY/YP5sAanYR9I/AAAAAAAACOs/F3BGDuJgbPMtvKhTFwmY5kAqwSfP0se6gCLcBGAsYHQ/s1532/Rivolta%2Bfemminile.JPG" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1532" data-original-width="1096" height="320" src="https://1.bp.blogspot.com/-cHpvScxvjjY/YP5sAanYR9I/AAAAAAAACOs/F3BGDuJgbPMtvKhTFwmY5kAqwSfP0se6gCLcBGAsYHQ/s320/Rivolta%2Bfemminile.JPG" /></a></div><br /><span style="font-family: "Book Antiqua";"><br /></span><p></p>
<p class="MsoNormal"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-family: "Book Antiqua";"> </span></i></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Em
julho de 1970, aparece nos muros de Roma o manifesto da revista <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Rivolta femminile, </i>baseado num texto
elaborado por Carla Lonzi, Carla Accardi e Elvira Banotti.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">"As
mulheres sempre estarão divididas entre si? Jamais formarão um corpo
único?" (Olympe de Gouges, 1791).</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";"> </span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpFirst" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">A
mulher não deve ser definida em relação ao homem.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Nessa
consciência se fundam tanto nossa luta quanto nossa liberdade.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">O homem
não é o modelo ao qual adequar o processo da descoberta de si por parte da
mulher.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Em
relação ao homem, a mulher é outra coisa. Em relação à mulher, o homem é outra
coisa. A igualdade é uma tentativa ideológica de escravizar a mulher em níveis
superiores.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Identificar
a mulher com o homem significa apagar o último caminho de libertação.
Libertar-se, para a mulher, não quer dizer aceitar a mesma vida do homem, posto
que invivível, mas exprimir seu sentido da existência.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">A
mulher como sujeito não recusa o homem como sujeito, mas o recusa como papel
absoluto.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Na vida
social, recusa-o como papel autoritário.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Até
agora, o mito da complementariedade foi usado pelo homem para justificar o
próprio poder.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">As
mulheres são persuadidas desde a infância a não tomar decisões e a depender da
pessoa “capaz” e "responsável": o pai, o marido, o irmão...</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">A
imagem feminina com a qual o homem interpretou a mulher foi uma invenção do
homem.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Virgindade,
castidade, fidelidade não são virtudes, mas vínculos para construir e manter a
família.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">A honra
é a consequente codificação repressiva desses vínculos.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">No
casamento, a mulher, privada de seu nome, perde sua identidade, e isso
significa a passagem de propriedade que se desenrola entre seu pai e seu
marido.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Quem
gera não tem a faculdade de atribuir aos filhos o próprio nome: o direito da
mulher foi cobiçado por outros e se tornou privilégio destes.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Somos
obrigadas a reivindicar a evidência de um fato natural.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Reconhecemos
no casamento a instituição que subordinou a mulher ao destino masculino.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Somos
contra o casamento.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">O
divórcio é um enxerto de casamentos do qual a instituição sai reforçada.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">A
transmissão da vida, o respeito pela vida, o sentido da vida são experiências
intensas da mulher e valores que ela reivindica.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">O
primeiro elemento de rancor da mulher em relação à sociedade está no fato de
ser obrigada a enfrentar a maternidade como um dilema.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Denunciamos
a desnaturação de uma maternidade, que é paga ao preço da exclusão.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">A
negação da liberdade de aborto entra no veto global que é feito à autonomia da
mulher.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Não
queremos pensar na maternidade a vida toda e continuar a ser instrumentos
inconscientes do poder patriarcal.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">A
mulher está cheia de criar um filho que se tornará um péssimo amante.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Numa
liberdade que sente ter de enfrentar, a mulher livra também o filho e o filho é
a humanidade.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Em
todas as formas de convivência, alimentar, limpar, atender e todo momento do
viver cotidiano devem ser gestos recíprocos.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Por educação
e por mimese o homem e a mulher já estão nos papeis desde a primeiríssima
infância.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Reconhecemos
o caráter mistificador de todas as ideologias, porque por meio das formas
racionalizadas de poder (teológico, moral, filosófico, político) obrigaram a
humanidade a uma condição inautêntica, oprimida e conformista.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Por
trás de toda ideologia vemos a hierarquia dos sexos. Não queremos, de agora em
diante, nenhuma proteção entre nós e o mundo.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">O
feminismo foi o primeiro momento político de crítica histórica à família e à
sociedade.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Unifiquemos
as situações e os episódios da experiência histórica feminista: nela a mulher
se manifestou interrompendo pela primeira vez o monólogo da civilização
patriarcal.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Nós
identificamos no trabalho doméstico não retribuído a prestação que permite ao
capitalismo, privado e de estado, subsistir.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Permitiremos
aquilo que continuamente acontece ao final de toda revolução popular, quando a
mulher, que combateu junto com os outros, encontra-se deixada de lado com todos
os seus problemas?</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Detestamos
os mecanismos da competitividade e a chantagem que é exercida no mundo da
hegemonia da eficiência.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Nós
queremos colocar nossa capacidade laboral à disposição de uma sociedade que seja
imunizada em relação a tais mecanismos.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">A
guerra sempre foi uma atividade específica do macho e seu modelo de
comportamento viril.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">A
paridade de retribuição é um direito nosso, mas nossa opressão é outra coisa.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">É
suficiente a paridade salarial quando já temos nas costas as horas de trabalho
doméstico?</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Reexaminemos
as contribuições criativas da mulher à comunidade e dissipamos o mito de sua
laboriosidade subsidiária. </span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Dar
muito valor aos momentos “improdutivos” é uma extensão de vida proposta pela
mulher.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Quem
tem o poder afirma: “Faz parte do erotismo amar um ser inferior”. Manter o
status quo é, portanto, seu ato de amor.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Acolhemos
a liberdade sexual em todas as suas formas, porque deixamos de considerar a
frigidez uma alternativa honrosa.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Continuar
a regulamentar a vida entre os sexos é uma necessidade do poder; a única
escolha satisfatória é uma relação livre.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">São direitos
das crianças e dos adolescentes a curiosidade e os jogos sexuais.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Olhamos
por 4000 anos: agora vimos! </span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Às
nossas costas está a apoteose da milenária supremacia masculina.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">As religiões
institucionalizadas foram o mais firme pedestal dessa apoteose. E o conceito de
"gênio" foi sua etapa inalcançável. </span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">A
mulher teve a experiência de a cada dia ver a destruição do que fazia.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Consideramos
incompleta uma história que se constituiu sobre pegadas não perecíveis.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Nada ou
quase nada foi transmitido da presença da mulher: cabe a nós redescobrir isso
para saber a verdade.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">A
civilização nos definiu como inferiores, a Igreja nos chamou de sexo, a
psicanálise nos traiu, o marxismo nos vendeu à revolução hipotética. Chamamos
referências de milênios de pensamento filosófico que teorizou a inferioridade
da mulher.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Consideramos
os sistematizadores do pensamento como os responsáveis pela grande humilhação
que o mundo patriarcal nos impôs: eles mantiveram o princípio da mulher como
ser adicional para a reprodução da humanidade, vínculo com a divindade ou
limiar do mundo animal; esfera privada e pietas. Justificaram na metafísica o
que era injusto e atroz na vida da mulher. </span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Cuspamos em Hegel.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">A
dialética senhor-escravo é um acerto de contas entre coletivos de homens: ela
não prevê a libertação da mulher, o grande oprimido da civilização patriarcal.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">A luta
de classes, como teoria revolucionária desenvolvida a partir da dialética do
senhor-escravo, da mesma forma exclui a mulher.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Nós
colocamos em discussão o socialismo e a ditadura do proletariado. Não se
reconhecendo na cultura masculina, a mulher retira desta a ilusão da
universalidade.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">O homem
sempre falou em nome do gênero humano, mas metade da população terrestre o
acusa agora de ter sublimado uma mutilação. </span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">A força
do homem está em sua identificação com a cultura, a nossa está em refutá-la.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Depois
desse ato de consciência, o homem será distinto da mulher e deverá escutar dela
tudo o que concerne a ela. </span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">O mundo
não será omitido se o homem não tiver mais o equilíbrio psicológico baseado em
nossa submissão. </span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Na
ardente realidade de um universo que nunca revelou seus segredos, nós retiramos
muito dos créditos dados às obstinações da cultura. </span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpMiddle" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Queremos
estar à altura de um universo sem respostas.</span></p>
<p class="MsoListParagraphCxSpLast" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-align: justify; text-indent: -18pt;"><span style="font-family: Symbol; mso-bidi-font-family: Symbol; mso-fareast-font-family: Symbol;"><span style="mso-list: Ignore;">·<span style="font: 7pt "Times New Roman";">
</span></span></span><span style="font-family: "Book Antiqua";">Nós
procuramos a autenticidade do gesto de revolta e não a sacrificaremos nem à
organização nem ao proselitismo.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Roma,
julho de 1970</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Comunicamos
apenas com mulheres <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-spacerun: yes;"><span style="font-size: x-small;">Trad.: Vinícius Nicastro Honesko. </span><br /></span></span></p>
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<p></p><p align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Giorgio Agamben</span></i></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: "Book Antiqua";"> </span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: "Book Antiqua";"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Este
especial sobre o filósofo torinense é aqui apresentado por Agamben, que
repercorre sua linha de “pensamento inatual” a partir de um escrito que ficou
engavetado. Para Carchia, a filosofia, agora reduzida a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ancilla scientiae, </i>deve ser inseparável da instância viva de seu
exercício.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">O
texto cujo breve excerto aqui publicamos havia sido originalmente concebido como
uma contribuição para uma história do pensamento do século XX. Inédito por
razões que ignoramos, ele se apresenta agora como uma suma testamentária do
pensamento de Carchia (que morreria três anos depois, isto é, justamente, em 6
de março de dez anos atrás [2000]) e, ao mesmo tempo, como uma lúcida e originalíssima
ambientação crítica da antropologia do século XX. Em cada um dos cinco densos
capítulos que o compõe, o autor deixa, com efeito, florescer seu pensamento de
forma contextual e, por assim dizer, como contraponto à releitura de uma das
principais correntes da filosofia do século XX. Assim, no primeiro capítulo (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">O homem, uma testemunha</i>), a tese da
filosofia como testemunho é enunciada por meio de uma crítica da concepção que
reduz a filosofia a "uma simples instância metódica”. É notório que,
diante do desenvolvimento e triunfo da ciência moderna, a filosofia, ao menos a
partir do neokantismo, realizou um recuo estratégico nas posições da teoria do conhecimento
e suas condições de possibilidade. A fragilidade do bastião no qual a filosofia
acreditara se entrincheirar agora está evidente para todos; reduzida à condição
de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">ancilla scientiae, </i>ela agora se
encontra servindo a um ladrão que, diferentemente da teologia, de modo algum precisa
de seus serviços. É contra esse persistente preconceito epistemológico que
Carchia propõe sua ideia do pensamento como testemunho, inseparável da “instância
viva de seu exercício" e do encontro e choque com "um evento que
infinitamente o supera”. No mesmo gesto, contra toda sublimação do testemunho,
Carchia lembra de que o verdadeiro testemunho não pretende se identificar com
aquilo sobre o que testemunha, que “há um pudor do testemunhar, que consiste em
manter a dissimetria e a diacronia com o absoluto”. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">No
segundo capítulo (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Mito e existência</i>),
o contraponto crítico se joga entre o mito e a ambígua relação que a
modernidade entretém com ele. Na perspectiva de Carchia, o mito é apenas a
outra face do problema do testemunho, aliás, “a única figura ou exposição do testemunho
acessível ao homem”. Justamente por isso, o mito autêntico está preso entre
duas consciências: a que indica que a verdade para o homem é sempre um
acontecer, que necessariamente se dá por meio de narrativas, metáforas e
símbolos e, ao mesmo tempo, a “consciência de que narrativas, metáforas e
símbolos não são a verdade". Longe de acontecer como figura e verdade de
um passado arquetípico, o mito é, antes, experiência do perene caráter genitivo
do pensamento, lugar não de uma dialética com o passado, mas de uma epifania do
presente.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Contra
essa experiência testemunhal do mito está a concepção do mito da modernidade, a
qual (por um lado, na forma da desmitização e da ciência do mito e, por outro,
na busca de uma “nova mitologia”), na verdade, é apenas a sombra produzida pela
razão iluminista. De fato, segundo Carchia, racionalidade técnico-científica e
irracionalidade mítica se espelham e remetem uma a outra num círculo vicioso em
que elas se legitimam e, ao mesmo tempo, se deslegitimam reciprocamente. A
afirmação da consciência moderna nasce, nesse sentido, de uma tortuosa “conjugação
entre iluminismo e mitologia", na qual, como em nossas universidades,
disciplinas retórico-humanistas e ciências da natureza podem continuar a fingir
ignorar-se respeitosa e mutuamente apenas porque sabem que, na realidade, se
tornaram os dois dóceis instrumentos do domínio de uma mesma subjetividade
antropocêntrica. Para Carchia, por outro lado, mito é “reconhecimento, ao mesmo
tempo, da raiz natural do humano e do caráter ultra-humano do espírito”,
consciência de que o humano só pode se dar num campo de forças no qual “a
natureza dá a energia ao espírito e o espírito da voz à natureza". </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Não
é possível aqui percorrer mais uma vez as particularidades da argumentação dos
dois capítulos seguintes, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A arte como
figura do ultra-humano </i>e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Moral e
moralística. </i>Todavia, basta lembrar que Carchia declina sua crítica da
estética e da moral do século XX retomando os conceitos guias do livro que
permanece, talvez, como sua obra-prima precoce, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Da aparência ao mistério </i>(1983, o autor tinha trinta e seis anos):
a aparência, lançada contra certa leitura da arte romântica, e o mistério,
cifra da “fenomenologia do aparecer" dos moralistas clássicos e barrocos,
são evocados em contraponto ao “totalitarismo da razão histórica” que, de
Heidegger à teoria crítica, visa a liquidar a dimensão do homem natural, com
seus hábitos e estilos de vida. É significativo que Carchia conclua seu
reconhecimento crítico da antropologia do século XX com as mesmas páginas que
fecham <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O amor do pensamento, </i>livro publicado
poucos dias antes de sua morte, em cujo lacônico prefácio havia definido sua
intenção suprema como uma “filosofia do amor". Aí, Carchia parte de uma
crítica rigorosa da definição da modernidade (comum tanto a Blumenberg e a
Löwith como, em certa medida, a Derrida e ao pós-modernismo) como ruptura do
nexo cristão de apocalipse e história. Contra essas concepções, definidas por
uma mesma perda de espessura do tempo histórico, Carchia faz valer a necessária
implicação mútua de história e apocalíptica. “A história", escreve, “é história
apenas porque tem um fim, porque tende a um fim”, do qual pode receber "luz";
não termina, simplesmente, mas "começa a terminar", mantendo assim
vivo o nexo entre apocalipse e história. Mais uma vez, entre a "euforia
gnóstica" do fim e a melancolia desconstrucionista do diferimento
infinito, Carchia inscreve seu gesto característico, que conjuga num milagroso
equilíbrio o que parece impossível de manter unido: um platonismo anárquico que
desemboca na contemplação da aparência e uma sóbria apocalíptica que perdura
amorosamente na memória daquilo que não pode senão acabar. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";"> </span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: "Book Antiqua";"> </span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-size: x-small;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Texto de Giorgio
Agamben publicado no suplemento <i>Alias, </i>de
<i>Il Manifesto, </i>de 06 de março de 2010
(também disponível em: https://www.quodlibet.it/recensione/814)</span></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size: x-small;"><span style="font-family: "Book Antiqua";"> </span></span></p><span style="font-size: x-small;">
</span><p class="MsoNormal"><span style="font-size: x-small;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Trad.: Vinícius
Nicastro Honesko.</span></span></p>
<p><style>@font-face
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{page:WordSection1;}</style></p>Khôrahttp://www.blogger.com/profile/06654908722644519478noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-51927762665364013132021-06-13T17:25:00.002-03:002021-06-13T17:25:38.632-03:00Um possível autorretrato de Gianni Carchia - Giorgio Agamben<p class="MsoNormal" style="text-align: center;"><span style="font-family: Garamond;"><i></i></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><i><a href="https://1.bp.blogspot.com/-fLdkhLVHZFU/YMZpnu6UQOI/AAAAAAAACOI/oOzPq2JI0y01H7YJgXCLlPCfHPozymu6gCLcBGAsYHQ/s276/Captura%2Bde%2BTela%2B2021-06-13%2Ba%25CC%2580s%2B22.24.16.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="276" data-original-width="178" src="https://1.bp.blogspot.com/-fLdkhLVHZFU/YMZpnu6UQOI/AAAAAAAACOI/oOzPq2JI0y01H7YJgXCLlPCfHPozymu6gCLcBGAsYHQ/s0/Captura%2Bde%2BTela%2B2021-06-13%2Ba%25CC%2580s%2B22.24.16.png" /></a></i></div><i><br /> </i><p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: right;"><span style="font-family: Garamond;"><i> </i></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: right;"><span style="font-family: Garamond;"><i>Giorgio Agamben</i><br /></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: Garamond;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: Garamond;">Compreende-se
mal o gesto mais específico do pensamento de Gianni Carchia caso se inscreva
sua intenção apenas no interior da Estética – isto é, da disciplina acadêmica
que coube a ele ensinar. Em seu caso, todavia, tampouco é possível prescindir
dessa inscrição, simplesmente. Pelo contrário, como ele mesmo observou certa
vez ao escrever que o cerne da Estética está onde não suspeitaríamos de procurá-lo,
Carchia desde o início deslocou sua disciplina para uma espécie de
pré-histórica terra de ninguém entre o distanciamento do mundo mítico e o nascimento
da literatura. Nessa zona – crepuscular e ao mesmo tempo auroral – que se
parece mais com a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Urgeschichte </i>de
Overbeck do que com um campo disciplinar, o jovem Carchia instalou seu lugar de
estudioso com sua pequena obra-prima <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Orfismo
e tragédia </i>(1979). Alguns anos depois, seu genial trabalho sobre o
nascimento do romance (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Da aparência ao
mistério, </i>1983) iria ulteriormente definir – ou esfumaçar – seus limites.
De acordo com uma inata sensibilidade política à qual, no início, não eram
estranhas simpatias anárquicas, o que sempre estava em questão nesse limiar
pré-histórico, todavia, era a própria história do ocidente, que, nos traços de
Reinhardt e de Meuli, Carchia lê como uma luta – trágica e cômica ao mesmo
tempo – pela aparência. Isso pois a contemplação e o des-encanto da aparência,
nos quais ele identifica o legado supremo da filosofia antiga, já estão sempre
se revertendo em mistério ou mistificação, segundo um diagnóstico cuja
pertinência hoje é fácil de ser reconhecida. E se algo define a cifra incomparável
de seu estilo, seu gesto ao mesmo tempo leve e singularmente decisivo, é
justamente a severidade com que ele soube compreender a liberação das
aparências como tarefa genuinamente filosófica. Nos últimos trabalhos – <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A fábula do ser. Comentário ao Sofista </i>(1997)
e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O amor do pensamento </i>(2000) – essa severidade
atinge sua máxima limpidez e, além da Estética, a filosofia da arte parece resolver-se
integralmente em arte da filosofia. Por isso, o nome de Carchia se inscreve de
pleno direito no registro dos poucos nomes que contam no pensamento italiano
dos últimos trinta anos, ao lado de Giorgio Colli, Furio Jesi e Enzo Melandri. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: Garamond;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: Garamond;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: Garamond;">Do Orfismo a Walter Benjamin</span></b></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: Garamond;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-family: Garamond;">Nascido
em Turim em 1947, Gianni Carchia morreu em Vetralla no ano passado [2000].
Companheiro de estrada de outro grande pensador “à parte” da cena italiana,
Furio Jesi, a quem era vinculado pela lição comum de Albino Galvano, Carchia
deixou uma rica produção filosófica. Entre suas obras lembramos aqui de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Orfismo e tragédia. O mito transfigurado </i>(Celuc,
1979; depois republicado, em 2019, pela Quodlibet, edição a partir da qual
sairá a tradução brasileira pela N-1); <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Estetica
ed erotica. Saggio sull’immaginazione </i>(Celuc, 1981); <i style="mso-bidi-font-style: normal;">La legitimazione dell'arte </i>(Guida, 1983); <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Dall'apparenza al mistero. La nascita del romanzo </i>(Celuc, 1983); <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Il mito in pittura. La tradizione come
critica </i>(Celuc, 1987); <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Retorica del
sublime </i>(Laterza, 1990); <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Arte e
bellezza. Saggio sull’estetica della pittura </i>(Il Mulino, 1995); <i style="mso-bidi-font-style: normal;">La favola dell’essere. Commento al Sofista </i>(Quodlibet,
1997); <i style="mso-bidi-font-style: normal;">L'estetica antica </i>(Laterza,
1999); <i style="mso-bidi-font-style: normal;">L'Amore del pensiero </i>(Quodlibet,
2000); <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Nome immagine. Saggio su Walter
Benjamin </i>(Bulzoni, 2000; depois pela <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Quodlibet,
</i>2009). É preciso não se esquecer, todavia, do grande trabalho de Gianni
Carchia como tradutor de Adorno, Marx, Benjamin, Reiner Schürmann e Hans
Blumenberg. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;"><span style="font-family: Garamond;"> </span></span></p><span style="font-size: x-small;">
</span><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;"><span style="font-family: Garamond;">Texto
de Giorgio Agamben publicado no suplemento <i>Alias,
</i>de <i>Il Manifesto, </i>de 7 de julho de
2001, p. 18. <span> </span></span></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;"><span style="font-family: Garamond;"><span>Trad.: Vinícius N. Honesko <br /></span></span></span></p>
<p><style>@font-face
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{page:WordSection1;}</style></p>Khôrahttp://www.blogger.com/profile/06654908722644519478noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-7069014872001138692021-06-01T12:19:00.007-03:002022-09-05T18:44:50.622-03:00A prevenção. O panfleto sobre o fascismo do anarquista Luigi Fabbri<div style="text-align: right;"><br /></div><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: left;"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><i></i></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><i><a href="https://1.bp.blogspot.com/-ylJfhpA__t4/YLZPpe67ycI/AAAAAAAACN4/ypsFR3f8iuwIPQbWqcOebQlP23WsSeFqACLcBGAsYHQ/s1400/bologna%2Bantifa%2B2.jpeg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="788" data-original-width="1400" src="https://1.bp.blogspot.com/-ylJfhpA__t4/YLZPpe67ycI/AAAAAAAACN4/ypsFR3f8iuwIPQbWqcOebQlP23WsSeFqACLcBGAsYHQ/s320/bologna%2Bantifa%2B2.jpeg" width="320" /></a></i></div><i><br /> </i><p></p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: right;"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><i>Andrea Cavalletti</i><br /></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Bolonha, 20 de novembro de 1920: os
socialistas venceram mais uma vez as eleições e o maximalista<span style="font-size: xx-small;"><a href="#_ftn1" name="_ftnref1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[1]</span></span></span></span></a>
</span>Enio Gnudi está pronto para assumir; a cerimônia iria transcorrer no dia
seguinte. Porém, chega à delegacia um pequeno manifesto, que também é afixado
pelos fascistas em todas as esquinas: recomendam que as crianças e as mulheres
fiquem distantes do centro e das ruas principais, prometem uma batalha. O que
acontece no dia 21 é conhecido, assim como o que aconteceu na cidade e na
região interiorana da Emília Romana: sobre isso, é certo, fala Angelo Tasca em
seu famoso livro; mas em 1922, muito antes de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Naissance du fascisme,</i><span style="font-size: xx-small;"><a href="#_ftn2" name="_ftnref2" style="mso-footnote-id: ftn2;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[2]</span></b></span></span></span></a></span><i style="mso-bidi-font-style: normal;">
</i>publicado em Paris (1938), e também antes que a editora Mondadori
publicasse <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O massacre do Palazzo d’Accursio,</i><span style="font-size: xx-small;"><a href="#_ftn3" name="_ftnref3" style="mso-footnote-id: ftn3;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[3]</span></b></span></span></span></a></span><i style="mso-bidi-font-style: normal;">
</i>de Vico Pellizari (1923), o episódio tinha estado no centro do “ensaio de
um anarquista sobre o fascismo”, cuja publicação pela editora Cappelli foi
organizada por Rodolfo Mondolfo: era <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A
contrarrevolução preventiva, </i>de Luigi Fabbi, autêntica obra-prima de
lucidez política que hoje reaparece, preparada de modo admirável pela Assembleia
Antifascista Permanente de Bolonha, pela <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Edições
Zero in Condotta.</i></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Nascido em Fabriano em 1877, amigo de
Malatesta, preso e identificado como anarquista já com dezessete anos, autor de
vários panfletos e de uma crítica ao leninismo, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Ditadura e revolução, </i>várias vezes vítima de agressões por parte
das esquadras fascistas, Fabbri, que então ensinava em Corticella, é uma testemunha
muito próxima e aguda daqueles dias: </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-left: 1cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 11pt; line-height: 150%;">“(...)
depois do início pacífico da cerimônia na sala comunal, aparece[m] na sacada
voltada para a praça o prefeito (...) e as bandeiras vermelhas, e em suas
direções foram disparadas as primeiras rajadas. A tragédia começou imediatamente.
Todos os que tinham armas, incluindo a força pública, começaram a disparar como
loucos; foram lançadas bombas, e no interior da Prefeitura, na sala, entre as
balas que entravam pelas janelas quebrando vidros e quadros, os gritos, a
confusão mais apavorante, houve aqueles que perderam completamente a cabeça (...)
e acrescentaram tragédia à tragédia, disparando contra os bancos da
minoria" (onde se sentavam os fascistas). </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">O veterano nacionalista Giulio Giordani foi
morto. Entre os socialistas morreu uma dezena de pessoas, foram quase sessenta
os feridos. Mas se por um lado Giordani se torna o símbolo da "redenção da
Itália”, por outro, também se torna o da “violência vermelha". As
esquadras fascistas não tinham mais obstáculos.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Fabbri, por sua vez, observava: “Em política
tem razão quem vence, mesmo se está errado (...) é fato que em 21 de novembro
foi uma vitória fascista; a responsabilidade dos fascistas nos acontecimentos
não diminui em nada sua vitória, aliás, a aumenta. Estar errado e vencer é,
substancialmente, no terreno realista, vencer duas vezes...". E Bolonha,
cidade de Zanardi,<span style="font-size: xx-small;"><a href="#_ftn4" name="_ftnref4" style="mso-footnote-id: ftn4;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[4]</span></span></span></span></a></span> o “prefeito
do pão", dos <i style="mso-bidi-font-style: normal;">spacci comunali</i><span style="font-size: xx-small;"><a href="#_ftn5" name="_ftnref5" style="mso-footnote-id: ftn5;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[5]</span></b></span></span></span></a></span>
e dos preços controlados, do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Ufficio Case</i><span style="font-size: xx-small;"><a href="#_ftn6" name="_ftnref6" style="mso-footnote-id: ftn6;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[6]</span></b></span></span></span></a></span><i style="mso-bidi-font-style: normal;">
</i>e das grandes intervenções de escolarização, agora é a cidade de uma
derrota traumática e dupla: torna-se o berço do fascismo. E, nesse livrinho
atualíssimo que na ocasião os esquadristas tiveram que queimar, torna-se o
cenário de uma aguda análise. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Livres das retóricas e das obrigações do
partido, os anarquistas, mais do que todos os outros, souberam dizer a verdade.
E esta, sabe-se, nunca é politicamente indiferente ou inútil, e não tem apenas
efeitos imediatos. Assim, disse a verdade Camillo Berneri, o primeiro a descrever
em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Mussolini grande ator</i> (1934, mas
agora editado pela <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Spartaco</i>) os
contornos do moderno divo das massas, descrevendo a crise do parlamentarismo
como transformação espetacular da política. E disse a verdade Luigi Fabbri ao
dirigir o olhar para as pequenas mas essenciais mudanças das formações sociais,
e estabelecendo não a crônica triste, mas uma verdadeira microfísica do poder
fascista. O nascimento do fenômeno novo e brutal se prolonga para ele no
passado recente da Europa (a Grande Guerra), mas também se desdobra numa
história do momento, feita de cumplicidade e de erros, medos, omissões fatais e
cegueiras inadmissíveis. E se o fenômeno fascista revela uma fisionomia única,
é porque responde a uma função específica: justamente a “preventiva", que
o inscreve na prática securitária e o torna sobretudo um “verdadeiro
instrumento de governo”.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">É certo que o fascismo gozou desde o início,
e em Bolonha em particular, da colaboração da polícia, amplamente empenhada nas
prisões dos socialistas, dos anarquistas ou dos simples operários na repressão
de todo "complô contra a segurança do Estado". Mas, observa Fabbri, o
fascismo também nasce do autoritarismo, das violências das Ligas vermelhas, das
extorsões perpetradas por seus dirigentes: onde de fato se pratica a filiação
forçada, onde “todo o socialismo consiste em ser organizado para receber mais,
(...) para votar para o deputado que defenda os direitos da liga ou para a
administração (...) que dê mais trabalho à associação laboral"; nesses
casos as massas aceitam por conta própria o líder da liga, “mas nem sempre o
amam”; aí, nesse caldeirão de interesses e ressentimentos, estão sendo
preparadas inúmeras reviravoltas.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Onde a política é sinônimo de cuidado e
segurança, ordem sindical ou policial, aí está o fascismo, como sócio fiel ou
possibilidade implícita. Seu nascimento, poderíamos dizer, situa-se no
cruzamento de dois dispositivos: o estatal, ou melhor, a proteção violenta da
propriedade, e o do sindicato dos funcionários, que afirma e defende outras
vantagens. Apesar de sua inimizade aparente, os dois dispositivos têm em comum
uma única matriz protetiva-securitária (declinada em nome da Propriedade e do
Trabalho), e conspiram juntos. Com o fascismo, sua síntese monstruosa, aparece
um sindicato aliado explícito da polícia e que é capaz de prometer, “como as
ligas vermelhas, o posicionamento e a defesa dos salários", mas também de
manter essas promessas em virtude de suas relações privilegiadas com os
patrões. É uma defesa dupla, ambígua (da pequena burguesia em crise, dos
operários desempregados, mas também do poder que os explora e ameaça), que
será, ao mesmo tempo e necessariamente destrutiva. Dirigido não contra este ou
aquele partido, mas por todos os lugares e geralmente “contra a classe operária
como classe”, o fascismo logo se revela uma arma desproporcional, um organismo
violento que ganha vida própria "e, como tal, não pode aceitar se suicidar,
apesar do caráter ilógico de sua situação"; nas margens dos fascistas já
enquadrados, cresce com efeito uma massa de simpatizantes, agricultores,
lojistas, empregados, jornalistas... massa cinzenta na aparência, mas de todo
modo perigosa, “que como todas as massas, uma vez lançada continua avançando
sozinha, e não retorna por vontade própria". </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Fabbri entregou à tradição política o
conceito de contrarrevolução preventiva, o qual, explicam os organizadores,
emaranha-se de forma contínua na história do século XX: usado nos anos 30 pelos
revolucionários na Espanha, será, por exemplo, retomado por Alexandre Koyré em
1945, quando terá de explicar a especificidade do totalitarismo, também por
Daniel Guérin, depois pelo Marcuse de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Counterrevolution
and Revolt </i>e, por fim, pelo último Debord. Mas Fabbri também mostrou como a
prevenção coincide, para o Estado, com a violência sem limites, articulando, na
aurora do fascismo, uma verdade irrevogável: "retardada (...) a catástrofe
chega, porém tremenda e extremamente maior”. Ele morrerá em Montevidéu em 1935,
sem ver até onde o impulso fatal levaria. Mas, nas páginas de seu livro, e
naquela multidão obtusa, a Itália ainda pode se espelhar. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p>
<div style="text-align: left;"><br clear="all" />
<hr size="1" style="text-align: left;" width="33%" />
<div id="ftn1" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref1" name="_ftn1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[1]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"> N.T.:
O Programa de Erfurt, aprovado durante o Congresso do Partido Socialdemocrata
da Alemanha (SPD) em 1891, em Erfurt, era dividido em duas partes: o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">programa máximo </i>e o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">programa mínimo. Maximalistas </i>eram os socialistas que propunham a
realização do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">programa máximo, </i>qual
seja, a tomada de poder por parte do proletariado e a revolução social. Nesse
sentido, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">maximalista </i>tem sempre a
conotação de "revolucionário" dentro dessa conjuntura histórica do
socialismo.</span><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"></span></p>
</div>
<div id="ftn2" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref2" name="_ftn2" style="mso-footnote-id: ftn2;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[2]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">
N.T.: Em 1938, quando publica <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Nascimento
do fascismo, </i>Tasca já está há 12 anos em Paris, para onde emigrou. Além disso,
em 1929, em razão de sua oposição ao Stalinismo, foi expulso do – então clandestino
– Partido Comunista da Itália.</span></p>
</div>
<div id="ftn3" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref3" name="_ftn3" style="mso-footnote-id: ftn3;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[3]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">
N.T.: Palazzo d’Accursio é onde fica a sede da prefeitura de Bolonha.</span></p>
</div>
<div id="ftn4" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref4" name="_ftn4" style="mso-footnote-id: ftn4;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[4]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">
N.T.: Francesco Zanardi foi o primeiro prefeito socialista de Bolonha entre
1914 e 1919. </span></p>
</div>
<div id="ftn5" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref5" name="_ftn5" style="mso-footnote-id: ftn5;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[5]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">
N.T.: Os <i style="mso-bidi-font-style: normal;">spacci comunali, </i>também
chamados de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">negócios de Zanardi, </i>foram
<i style="mso-bidi-font-style: normal;">armazéns municipais </i>de venda de
alimentos criados por Zanardi, em 1914, com o intuito controlar a disparada do preço dos
alimentos após o início da Primeira Guerra Mundial. </span></p>
</div>
<div id="ftn6" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref6" name="_ftn6" style="mso-footnote-id: ftn6;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[6]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">
N.T.: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Escritório municipal das casas. </i>Tratava-se
de uma secretaria municipal, também criada durante o mandato de Zanardi, responsável
pela gestão dos contratos de aluguel na cidade e pela organização das questões sanitárias
e de saúde pública ligadas à habitação.</span></p><p class="MsoFootnoteText"><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"> </span></p><p class="MsoFootnoteText"><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Texto publicado pela primeira vez no suplemento <i>Alias, </i>de <i>Il Manifesto, </i>em 20 de março de 2010. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko <br /></span></p>
</div>
</div>
<p style="text-align: left;"><style>@font-face
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{page:WordSection1;}</style></p>Khôrahttp://www.blogger.com/profile/06654908722644519478noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-74398219808317356492021-06-01T06:12:00.004-03:002022-09-05T18:54:51.192-03:00A contrarrevolução preventiva - Prefácio a Luigi Fabbri <p> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-ycDZ2WeqslU/YLX5td04BqI/AAAAAAAACNw/kJAF-Qvwjm0NLDoXKR_UhgxwvTL0xrZ0ACLcBGAsYHQ/s564/Bologna%2Bantifa.jpeg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="376" data-original-width="564" src="https://1.bp.blogspot.com/-ycDZ2WeqslU/YLX5td04BqI/AAAAAAAACNw/kJAF-Qvwjm0NLDoXKR_UhgxwvTL0xrZ0ACLcBGAsYHQ/s320/Bologna%2Bantifa.jpeg" width="320" /></a></div><p></p><p><br />
</p><p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Entre 1921 e 1922, diante do fenômeno
perturbador do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">esquadrismo</i> fascista,
o editor bolonhês Licinio Cappelli começou a impressão de uma série de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">instant books </i>que comporiam uma
“coleção" intitulada “O fascismo e os partidos políticos": já em 1921
saiu <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O fascismo e a crise italiana, </i>do
católico liberal Mario Missiroli e, no ano seguinte, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O fascismo: dados, impressões, notas, </i>do socialista Adolfo
Zerboglio e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">As origens da missão do
fascismo, </i>do esquadrista Dino Grandi com introdução à "coleção"
do filósofo socialista Rodolfo Mondolfo; depois, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O fascismo visto por republicanos e socialistas, </i>com intervenções
de Guido Bergamo, Giuseppe De Falco, Giovanni Zibordi; e, por fim, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A contrarrevolução preventiva, </i>de Luigi
Fabbri, com o subtítulo editorial <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Ensaio
de um anarquista sobre o fascismo. </i>De fato, só o texto de Fabbri representa
um primeiro autêntico "ensaio” sobre o fascismo, é claro que não
"acima da luta”, como ele declara aludindo ao volume pacifista <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Au-dessus de la mélée, </i>de Romain
Rolland, mas fora das perspectivas estreitas de partido e das táticas da
política parlamentar. Já o título se propõe a definir objetivamente o fenômeno,
aliás, a renomeá-lo: não “impressões", não "o fascismo visto a partir
de...”, mas uma investigação que em cada linha e a partir da crônica minuciosa,
narrada com o gosto vivo do relato, procura remontar à forma social do fascismo
como "contrarrevolução preventiva". Fabbri observa de longe, até veste
a túnica auto-irônica do "profeta”, observa no presente o futuro e também nos
fala, com lúcida e surpreendente vitalidade. Ao reimprimir este ensaio, a
Assembleia Antifascista Permanente de Bolonha não pretende propor uma operação
arqueológica ou memorialística, nem instituir sumárias analogias entre o
fascismo histórico e nossa inquietante atualidade, feita de violências
neofascistas, patrulhas, populismo, racismo, leis autoritárias e manipulação
revisionista da memória. Acreditamos, porém, que este livro, ainda que com seu
estilo simples e modesto, encerre uma lição importante e de todo eficaz a
respeito das estruturas do poder contemporâneo e sobre as estratégias do
fascismo.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Em 1922, Luigi Fabbri completava quarenta e
cinco anos, era professor de escola fundamental em Corticella, na província de
Bolonha, e militante anarquista há mais de vinte anos. No pequeno subúrbio
bolonhês, o “mêster Fabbri” era um personagem que gozava de muita consideração,
igual e contrária à do pároco, e por isso sofrera intimidações e ataques por
parte dos fascistas. Sua voz é sobretudo a de uma testemunha que viu uma cidade
"vermelha” como Bolonha se tornar, no espaço de poucos meses, uma
fortaleza, aliás, o berço do fascismo e da reação antiproletária. Pouco depois,
em 1925, ele será um dos três professores do ensino fundamental a recusar o
juramento de fidelidade ao regime de Mussolini e, depois disso, rumará ao
exílio, primeiro em Paris e depois em Montevidéu, onde morrerá em 1935, na hora
mais escura da noite do século XX. Não é preciso aqui seguir o homem, mesmo
porque assim já o fez com perspicácia e sensibilidade a filha Luce Fabbri em <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Luigi Fabbri. História de um homem livre </i>(Pisa,
Biblioteca Franco Serantini, 1996)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[1]</span></span></span></span></a>,
mas é importante sobretudo descrever brevemente a sorte singular da <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Contrarrevolução preventiva, </i>cujo
título, adverte Luce Fabbri, “teve tanta fortuna a ponto de se tornar um lugar
comum para a definição do fenômeno”. Apesar de, no fim de 1922, os fascistas
terem destruído as cópias ainda não vendidas do livro, tanto que hoje
sobrevivem nas bibliotecas italianas menos de trinta exemplares da edição
original, a tese do ensaio escrito com pressa nos últimos e tumultuados meses
de 1921 teve desde o início uma grandíssima ressonância. Assim, enquanto o nome
de Fabbri logo tenha caído no esquecimento, o conceito de
"contrarrevolução preventiva” atravessa toda a história intelectual do
século XX. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Habent sua fata libelli, </i>também
os livros têm seu destino. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">***</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">De fato, a fortuna da análise de Fabbri foi
imediata. Diante de um fenômeno então novo e difícil de interpretar, a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Contrarrevolução preventiva </i>ia além de
toda condenação moralista das violências esquadristas e delineava a formação de
uma cultura reacionária de massa promovida pelo Estado e pela burguesia “com a
tripla ação combinada da violência ilegal fascista, a repressão legal do
governo e a pressão econômica derivada do desemprego”. Para Fabbri, tratava-se
de mostrar os “coeficientes" e os "fatores” que ligavam o esquadrismo
aos novos sistemas repressivos do poder estatal, político, cultural e
econômico: as violências fascistas não eram um fenômeno isolado e episódico,
mas uma função fundamental da “reação antiproletária” como reversão preventiva da
luta de classes por meio da qual a burguesia, sem renunciar às aparências da
legalidade e do liberalismo, agredia as conquistas operárias e disciplinava a
sociedade. Assim, desde 1923, a Conferência comunista internacional de
Frankfurt anexava ao protocolo do debate uma avaliação do Fascismo italiano
como "uma contrarrevolução preventiva (<i style="mso-bidi-font-style: normal;">vorbeugende
Konterrevolution</i>) diferente da contrarrevolução clássica enquanto apela a slogans
pseudo-radicais".<a href="#_ftn2" name="_ftnref2" style="mso-footnote-id: ftn2;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[2]</span></span></span></span></a>
E isso diz muito sobre como os movimentos revolucionários europeus eram, nos
anos 20, um âmbito extraordinário de trocas e de debates além inclusive das
contrastantes experiências ideológicas e organizativas. Um ano depois do livro,
a fórmula proposta por Fabbri começava a ressoar nas diversas línguas da Europa
anárquica, socialista e comunista.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Mas mais instrutivo para nós hoje é
considerar a reação da cultura fascista ao livro de Fabbri. Com a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Contrarrevolução preventiva </i>ele havia
renomeado o Fascismo delineando com vivacidade o emaranhado de interesses
econômicos, coberturas institucionais e mitologias deterioradas sobre as quais
se sustentava. Havia ilustrado como fator determinante de seu sucesso a
fragilidade do socialismo reformista e legalista. Nunca nomeava Mussolini. Não
havia usado as palavras do poder para falar do poder. Contra esse penetrante
retrato de primeira hora do Fascismo, saia em Milão, em 1923, um pilar do culto
fascista da personalidade: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O homem novo, </i>de
Antonio Beltramelli. Para Fabbri, o Fascismo era um agregado heterogêneo de
ódio anti-operário, vantagens patronais, ambições carreiristas, facções litigiosas
e prepotentes: sua "fraqueza orgânica" era “o vazio de ideias sobre o
qual se apoiava”, a incapacidade de propor um modelo qualquer de sociedade que
não fosse "o arbítrio instável e contraditório dos indivíduos, dos grupos
inorgânicos, dos interesses cegos, das vontades impulsivas, não unidas por uma
ideia, mas por um ódio, apenas pelo desejo destrutivo”. Por isso, o Fascismo
tinha necessidade de “vãs palavras retóricas”, de “fórmulas vagas”, de
mitologias e “símbolos" unificadores. E Fabbri é excepcionalmente atento
também ao desmascarar a ofensiva simbólica do Fascismo e ao mostrar sua função
complementar em relação à prática da violência esquadrista. Não surpreende que
justamente a capacidade de decompor e redefinir o Fascismo como “contrarrevolução
preventiva" irritava e indignava Beltramelli, e este não acha nada para
contrapor a Fabbri senão a retórica prolixa do “Duce” e do “homem novo”, capaz
de plasmar a história com a “sua paixão mortal e magnífica”:</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-left: 1cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 11pt; line-height: 150%;">"Observei,
ademais, como em muitos dentre os estudos publicados recentemente sobre as
origens e o desenvolvimento do Fascismo alguns autores procuram colocar a
figura de Benito Mussolini em último plano, ou dela nem ao menos falam, como
faz, por exemplo, o anarquista Luigi Fabbri em sua monografia intitulada <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A contrarrevolução preventiva. </i>Meias
palavras piedosas que nada fazem e nem agridem, porque ainda que todas as
condições favoráveis do mundo se deem para o nascimento de um movimento
histórico, se não aparecer o Homem destinado e aquele que possa se somar a seu
fascínio, à obstinada força de sua vontade, ao vigor de seu engenho, ao orgulho
de sua coragem – condições nas quais ele se faz pregoeiro do novo verbo e vive
a paixão desse verbo desesperadamente, além de tudo no mundo, a ponto de
preferir o último silêncio à falência dessa sua paixão mortal e magnífica –, se
esse homem não aparecer, a humanidade não poderá se beneficiar das condições
favoráveis que em vão se mostraram e em vão foram vividas".<a href="#_ftn3" name="_ftnref3" style="mso-footnote-id: ftn3;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 11pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[3]</span></span></span></span></a></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">A <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Contrarrevolução
preventiva </i>é um livreto de 100 páginas. Mas para apagar seu discurso lúcido
e rigoroso o Fascismo teve que destruir todas as cópias que encontrou e a ele
contrapor um volume oratório e retórico de mais de 600 páginas com uma imensa
tiragem como, justamente, é <i style="mso-bidi-font-style: normal;">O Homem novo.
</i><br />
Não se trata de algo que diga respeito apenas ao passado. Também hoje o
esquadrismo simbólico dos neofascistas é complementar a seu esquadrismo real.
Não são apenas as agressões, os esfaqueamentos, os homicídios (registrados no
site <a href="http://www.ecn.org/antifa/">www.ecn.org/antifa/</a>). São também
aqueles gestos que se passam por provocações artísticas ou iniciativas
culturais, com a cumplicidade de jornalistas famintos por notícias quentes e
até mesmos amigos escondidos atrás das costas dos neofascistas. Por exemplo, em
dezembro de 2008, por ocasião do aniversário do Massacre da Piazza Fontana,<a href="#_ftn4" name="_ftnref4" style="mso-footnote-id: ftn4;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[4]</span></span></span></span></a>
que a Assembleia Permanente lembrava com uma manifestação, CasaPound<a href="#_ftn5" name="_ftnref5" style="mso-footnote-id: ftn5;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[5]</span></span></span></span></a>
procurou apresentar em Bolonha um livro-entrevista com o terrorista de direita
Pierluigi Concutelli, um dos fundadores do movimento <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Ordine Nuovo, </i>a organização responsável pelo massacre: um caso de
provocação explícita e de reivindicação alusiva. Alguns meses depois, em Milão,
no aniversário do assassinato de Eugenio Curiel, partigiano judeu morto pelos
agentes da República em 24 de fevereiro de 1945, os mesmos desconhecidos
picharam com verniz vermelho a lápide comemorativa e sobre ela colocaram 30
balas de calibre 30: outro caso de reivindicação alusiva ou, se quiser, de
intimidação. Entre as várias iniciativas dos esquadristas simbólicos há também esta
história difundida pela CasaPound: fala sobre um simpatizante homossexual do
movimento, P.D., de 45 anos, de Castelli Romani, que, no processo de
submeter-se a uma operação para troca de sexo, pedia “uma garantia por parte da
cúria bispal em relação a seu desejo de virar freira e entrar para um
convento”... Os jornais, sempre condescendentes com os “fascistas do terceiro
milênio”, difundiram a notícia, mas se tratava apenas de uma grande mentira –
declara CasaPound – para criticar o Partido Democrático “que muda de pele a
cada duas semanas”. Ou, antes, para ofender a escolha trans, comparando-a a um
partido que já não tem identidade: uma ofensa alusiva, um insulto apenas
simbólico. De forma análoga, em fevereiro de 2009, em Palermo, diante da sede
do coletivo Malefimmine, apareciam escritas ameaças como “<i style="mso-bidi-font-style: normal;">collettivo Maletroie</i>”, assinado por CasaPound, e "<i style="mso-bidi-font-style: normal;">compagna quando ce vedi te se bagna</i>”.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6" style="mso-footnote-id: ftn6;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[6]</span></span></span></span></a>
Também não nos esqueçamos de que o romance futurista de Filippo Tommaso
Marinetti, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Mafarka, </i>funda-se sobre a
descrição sádico-erótica de um estupro coletivo: “Escreveu assim ‘O estupro das
negras’ pois de um grande furor tórrido de luxúria e brutalidade a grande
vontade heroica de Mafarka pôde brotar", declarava Marinetti em 1910. E o
fórum de CasaPound se chama justamente <i style="mso-bidi-font-style: normal;">vivamafarka...
</i></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Ainda hoje a nova “contrarrevolução
preventiva" ativa é uma estratégia que associa ao mesmo tempo a violência
extralegal, as conveniências institucionais, a manipulação midiática, o
nacionalismo racista e sexista, a cultura intimidadora do esquadrismo
simbólico.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Mas voltemos ao passado remoto. De fato, é
importante sublinhar como a análise de Fabbri contribuiu para a formação de uma
consciência antifascista revolucionária na Europa desde os anos 20 e 30 do
século passado. Também na Espanha de 1936 será justamente a lição de Fabbri que
permitirá a crítica de toda interpretação do conflito civil como simples
“guerra do antifascismo contra o fascismo” e considerá-lo, pelo contrário –
escrevia Horacio Badaraco em 1937, citando Fabbri –, como uma irrenunciável
"guerra social” operária contra a "contrarrevolução preventiva"
guiada pelo generalíssimo Francisco Franco.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7" style="mso-footnote-id: ftn7;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[7]</span></span></span></span></a>
Não é preciso multiplicar aqui os exemplos e basta dizer que até mesmo
Alexandre Koyré, o grande estudioso de Galileu e de Newton, irá refletir, em
1945, sobre a especificidade do nazifascismo como exemplo de “quinta coluna” e
de “traição" da oligarquia burguesa contra a sociedade civil:</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-left: 1cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 11pt; line-height: 150%;">"Se
mesmo com essa ajuda não consegue realizar seus planos, a oligarquia dirigente
da sociedade burguesa se transformará em ‘inimiga interior’ e a ‘quinta coluna’
aparecerá. [...] ela é, essencialmente, um fenômeno de contrarrevolução, aliás,
de forma mais exata, de contrarrevolução preventiva. Ela é também, e também de
forma essencial, um fenômeno de traição."<a href="#_ftn8" name="_ftnref8" style="mso-footnote-id: ftn8;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 11pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[8]</span></span></span></span></a>
</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Mas aí a memória do livro de Fabbri já havia
sido apagada e o conceito de “contrarrevolução preventiva", declinado das
mais diversas maneiras, havia se tornado patrimônio comum do antifascismo
europeu como sinônimo de ditadura e totalitarismo. A fórmula havia se afastado
de seu autor.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">***</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Depois de 1945, a derrota do nazifascismo e
a estabilização bipolar do segundo pós-guerra pôde tornar obsoleta a tese da
"contrarrevolução preventiva” como interpretação histórica de um regime
autoritário já deposto. Ainda assim, a invenção terminológica de Fabbri
encerrava uma profunda intuição das novas formas repressivas da sociedade
burguesa: com o Fascismo, a contrarrevolução não vinha <i style="mso-bidi-font-style: normal;">depois </i>de uma subversão social para revertê-la e restaurar com
força o regime anterior, mas devia prevenir toda possibilidade de revolta; não
era mais um evento colocado no tempo, mas se tornava uma função permanente que
se antecipa aos fatos: "a própria ideia de constituir núcleos de 'audazes
do povo' foi preventivamente reprimida”. Todavia, a definição cunhada por
Fabbri, mesmo sem nenhuma marca de autor, não saiu do trilho. Fugido da
Alemanha nazista para o Estados Unidos em 1934, Herbert Marcuse – que na
juventude havia militado no partido socialdemocrata alemão – retoma e
rearticula a categoria analítica da "contrarrevolução preventiva"
("preventive counterrevolution”) depois das insurreições globais de maio
de 1968. Herdando-o do debate alemão dos anos 1920, Marcuse reinterpreta e
estende o conceito de “contrarrevolução preventiva" como eixo fundamental
da dialética contemporânea entre contestação e repressão, entre a
"contrarrevolução" e a “revolta”. Na abertura de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Counterrevolution and Rivolt, </i>de 1972, um dos livros-chave dos anos
1970, ele assim descrevia a resposta capitalista à desestabilização produzida
pelos novos movimentos sociais em escala planetária:</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-left: 1cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 11pt; line-height: 150%;">“O
mundo ocidental chegou a um novo estágio de desenvolvimento; neste ponto, a
defesa do sistema capitalista impõe, no interior e no exterior, a organização
da contrarrevolução que opera, em suas manifestações extremas, os horrores do
regime nazista. [...] Trata-se de uma contrarrevolução em larga medida
preventiva, inteiramente preventiva no mundo ocidental, onde não há nem
revoluções recentes para serem anuladas nem novas revoluções no horizonte.
Ainda assim, o medo da revolução, que constitui seu denominador comum,
vincula-se nos vários estágios e aspectos à contrarrevolução, percorrendo toda
sua gama, das democracias parlamentares às ditaduras abertas, passando pelos
estados de polícia. O capitalismo se reorganiza para enfrentar a ameaça de uma
revolução que seria a mais radical da história, a primeira verdadeira revolução
<i style="mso-bidi-font-style: normal;">histórico-mundial</i>”.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9" style="mso-footnote-id: ftn9;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 11pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[9]</span></span></span></span></a></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Além das descontinuidades exteriores, para
Marcuse a história do século XX tinha de ser relida de forma unitária como a
aproximação de diversas formas históricas de “contrarrevolução preventiva"
segundo três fases sucessivas: 1) a ascensão dos fascismos na Europa,
caracterizada pela “liquidação" violenta de “toda uma geração de
representantes revolucionários da classe operária", pela “delegação da soberania
econômica ao aparato estatal fascista”, pela transformação das classes
subalternas em massas “uniformizadas” e convencidas pela propaganda de seu
“privilégio" como nação em relação ao "sacrifício" de grupos
estrangeiros, inferiores e marginais; 2) a estabilização pós-bélica, marcada
pela reorganização do sistema capitalista sob a hegemonia estadunidense, pela
divisão concordada do mundo em duas áreas de influência, pelas políticas de
coesão e de controle cultural para normalizar as condutas dissidentes; 3) a
revolta dos anos 1970, contra a qual readquire uma nova centralidade o aparato
de polícia: no interior, como estratégia de contraste preventivo dos impulsos
revolucionários (espancamentos, fichamentos e discriminações), no exterior como
<i style="mso-bidi-font-style: normal;">containment policy </i>contra os
movimentos de liberação nos países coloniais, para evitar a difusão
concomitante de “dois, três, muitos Vietnãs" nas periferias do mundo e nos
centros urbanos do Ocidente.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10" style="mso-footnote-id: ftn10;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[10]</span></span></span></span></a>
Nessa última fase, escreve Marcuse, "as forças da lei e da ordem foram
transformadas em forças acima da lei”. Todavia, nos Estados Unidos o peso da
repressão não se volta à “classe operária", mas aos fermentos de oposição
radical, acima de tudo "às universidades e aos militantes de cor",
com o desdobramento que espraia na sociedade “um grande exército de agentes à
paisana". É ainda uma "contrarrevolução preventiva”, mas, para
Marcuse, seria errado falar genericamente de “regime fascista”: </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-left: 1cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 11pt; line-height: 150%;">"O
fator decisivo é outro: trata-se de compreender se a fase atual da
contrarrevolução (preventiva), isto é, a fase democrático-constitucional, está
preparando o terreno para uma sucessiva fase fascista ou não".<a href="#_ftn11" name="_ftnref11" style="mso-footnote-id: ftn11;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 11pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[11]</span></span></span></span></a></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Desde os anos 1970 essa interrogação – se
"a contrarrevolução [...] pode produzir fascismo"<a href="#_ftn12" name="_ftnref12" style="mso-footnote-id: ftn12;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[12]</span></span></span></span></a>
– inquieta os movimentos de protesto e a inteligência crítica que indaga sobre
as formas do domínio capitalista. Basta citar, a título de exemplo, Michel
Foucault, que mesmo criticando a concepção marcusiana do poder como simples
“repressão", observava, em 1977, que "a não análise do fascismo é um
dos fatos políticos importantes dos últimos trinta anos”.<a href="#_ftn13" name="_ftnref13" style="mso-footnote-id: ftn13;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[13]</span></span></span></span></a>
E, ainda, nos <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Comentários sobre a
sociedade do espetáculo, </i>de 1988, Guy Debord aludia aos massacres de estado
como "uma espécie de guerra civil preventiva".<a href="#_ftn14" name="_ftnref14" style="mso-footnote-id: ftn14;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[14]</span></span></span></span></a>
Mas não é este o âmbito para explorar esses desenvolvimentos e problemas.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">***</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Por fim, resta sublinhar uma lição de
método. Muito antes da Marcha sobre Roma, na lúcida consciência da derrota e na
convicção de que, para combater o mal, “é preciso encará-lo, examiná-lo",
o ensaio de Fabbri apreendeu o nexo constitutivo que liga o fascismo à
contrarrevolução em seu nexo constitutivo. Elucidando essa relação, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Contrarrevolução preventiva </i>de fato
inaugurou um campo de pesquisas histórico-política que vai além das fortunas da
fórmula que dá título ao livro. Não é um acaso se, a partir da metade do século
XX até hoje, a reflexão sobre o perigo fascista repropôs várias vezes e em
conjunturas diversas o problema crucial do fascismo como forma particular de
contrarrevolução, enunciado com rara agudeza de olhar justamente por Fabbri. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">No cruzamento entre a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Contrarrevolução preventiva </i>e o reemergir de sua problemática
depois de 1968, é então de particular importância um texto do comunista
libertário Daniel Guérin, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Fascisme et
grand capital. </i>Escrito "depois da tomada de poder por Hitler, no
início de 1933, e depois da tentativa de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">putsch
</i>fascista de 6 de fevereiro de 1934” (isto é, a tentativa de tomada de
assalto do Parlamento francês pelas mãos dos fascistas da <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Action française</i>), e publicado pela primeira vez em 1936, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Fascismo e grande capital </i>se propõe a
"diagnosticar a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">verdadeira natureza </i>do
fascismo”: “Aos meus olhos”, escreve Guérin em 1956, “o fascismo era uma
doença. Para descrever um mal novo e ainda pouco conhecido, um médico não
dispõe de outra fonte a não ser comparar minuciosamente seus sintomas...”.<a href="#_ftn15" name="_ftnref15" style="mso-footnote-id: ftn15;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[15]</span></span></span></span></a>
No centro de um novo momento crítico, reemerge – nos mesmos termos, mas em
forma mais complexa em conformidade com a nova situação – a necessidade de
examinar o mal para combatê-lo, tal como sustentado por <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Contrarrevolução preventiva </i>nos primeiros anos do decênio
precedente. Para Guérin, o nazifascismo representa a expressão política do
"grande capital” que – diante da crise – recusa e suprime os próprios
antigos ideais de "liberdade” e “democracia”, então incompatíveis com a
hegemonia burguesa: “assim, a burguesia destrói raivosamente seus velhos ídolos
e os teóricos da antidemocracia se tornam os mestres de seu pensamento”.<a href="#_ftn16" name="_ftnref16" style="mso-footnote-id: ftn16;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[16]</span></span></span></span></a>
Mussolini declarava em 1926: “Nós representamos a antítese clara, categórica,
definitiva [...] dos princípios de 1789”. E Goebbels, em 1933: “O ano de 1789
será apagado da história”. Mas justamente o caráter contrarrevolucionário dos
fascismos europeus e sua relação orgânica com o grande capital colocava a
questão sobre se tais regimes poderiam ser representados ainda sob novas
formas. Também nesse caso, Fabbri está um passo à frente: no último capítulo do
livro, ele prognostica que o Fascismo “cedo ou tarde acabará”, prospectando um
articulado quadro das diversas formas possíveis de seu inevitável fim; e é aqui
que, como em contrapartida, ele formula uma questão que nunca cessou de se
recolocar em diversas circunstâncias até hoje: a possibilidade do Fascismo se
reproduzir depois de sua queda.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin-left: 1cm; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 11pt; line-height: 150%;">"Tudo
isso vem a confirmar o já dito: que o fascismo é um ramo do grande tronco
estatal-capitalista, ou uma filiação dele. Combater o fascismo deixando
imperturbado seu perene genitor, aliás, iludindo-se ao querer encontrar neste
um defensor contra aquele, significa continuar a ter sempre às costas, a cada
dia mais pesados e opressivos, tanto um quanto outro. Matar o fascismo é
possível apenas se a ação de defesa contra ele, imposta pelas circunstâncias,
for acompanhada do ataque a suas fontes: o privilégio do poder e o privilégio
da riqueza. Mas matá-lo é necessário, e é preciso que o proletariado chegue a
isso diretamente e com todas as suas forças, porque se o fascismo apenas
estivesse dormindo ou fosse reabsorvido pelas instituições atuais, ele sempre,
ou ao menos mais facilmente, poderia se reproduzir. A burguesia aprendeu o modo
de se servir dessa arma; e se o proletariado não tira da burguesia a vontade de
usá-la, demonstrando com os fatos que é capaz de arrancá-la de suas mãos, ela,
mesmo se por ora depusesse essa arma, voltará a empunhá-la na primeira ocasião."</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">À tese conclusiva de Fabbi seria possível
aproximar agora duas frases lucidamente antecipadoras – retiradas do prefácio
de Guérin a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Fascismo e grande capital – </i>que
demarcam o espaço de um problema ainda mais decisivo para nosso presente. Março
de 1945: "Amanhã, as grandes ‘democracias’ poderão recolocar com toda
natureza o antifascismo no ferro-velho. Desde já, essa palavra mágica, que fez
com que os trabalhadores se insurgissem contra o hitlerismo, é considerada com
suspeita e aversão tão logo sirva para agregar novamente entre si os
adversários do sistema capitalista". Novembro de 1956: "Portanto, não
é preciso deixar-se hipnotizar pelo perigo de um retorno ofensivo do fascismo
‘puro’: a contrarrevolução poderia reaparecer de outras formas”.<a href="#_ftn17" name="_ftnref17" style="mso-footnote-id: ftn17;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[17]</span></span></span></span></a><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Nesse sentido, não se deve esquecer que na
Itália houve uma forte continuidade entre Fascismo “reabsorvido pelas
instituições" e República. Em 1960, foi verificado que 62 dos 64 prefeitos<a href="#_ftn18" name="_ftnref18" style="mso-footnote-id: ftn18;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[18]</span></span></span></span></a>
em serviço haviam sido funcionários fascistas. O mesmo valia para todos
(todos...) os 135 delegados e seus 139 vices. Assim, depois de 1968, vieram os
massacres.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">***</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Hoje, talvez tenhamos atingido um limiar
histórico que poderá dar uma resposta à velha pergunta renovada por Marcuse. Aos
nossos olhos foram pouco a pouco reativados na Itália alguns dos dispositivos
do nazifascismo que operaram entre 1938 e 1945: o rastreamento de corpos
clandestinos que devem ser expelidos, a detenção em campos por ter cometido o
"crime" de existir, os muros de separação étnica, a instituição de
salas de aula separadas para "estrangeiros", o acesso diferenciado
aos tratamentos médicos, uma nova política sempre mais obscura e agressiva de
"saúde pública". Nos anos setenta do século XX a fascistização era um
fenômeno sobretudo vertical estatal, de continuidade institucional entre
Fascismo e República, de tentativas de golpe de estado, de bombas nas praças,
de complôs e segredos obscuros. Agora, pelo contrário, é um fenômeno difuso,
capilar, em grande parte à luz do dia, articulado sobretudo sobre o racismo e
alimentado pela TV, governos, revistas, administrações locais. Consideremos
quantos seguranças, policiais civis, policiais armados, conselhos comunais
foram protagonistas, nos últimos anos, de agressões ou medidas racistas contra
ciganos e imigrantes: mortes anormais, surras, torturas, prisões
injustificadas, intimidações, separações forçadas, ordens anti-imigrantes,
prepotências de todos os gêneros. Na Itália, o racismo já se parece com uma
Bolzaneto<a href="#_ftn19" name="_ftnref19" style="mso-footnote-id: ftn19;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[19]</span></span></span></span></a> a
céu aberto. E foi uma “estratégia da tensão” adaptada aos novos tempos: não
mais vertical, mas difusa, de baixa intensidade. Os homicídios fascistas e
racistas são agora um massacre em parcelas. Pessoas inconscientes e indefesas
mortas por causa de um cigarro, de uma palavra, de um pacote de biscoitos. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Justamente o clima de violência xenófoba e
“securitária", fomentado nestes anos por políticos, prefeitos, juízes e
jornalistas, deu garantias para grupos e partidos neofascistas e consentiu a
reorganização da direita. Não se trata apenas de uma consolidação operativa,
mas também simbólica. Pensando bem, o atual esquadrismo neofascista não teria
vigor se não houvesse um disciplinamento autoritário difuso, o qual é preciso
obstaculizar em cada uma de suas formas: a respeitabilidade agressiva, o
patriotismo, a propaganda insistente do “medo” racista e homofóbico, o
familiarismo opressor, o sexismo, a vontade de punir quem não faz filhos
brancos itálicos e católicos, a perseguição contra a prostituição e o aborto, a
manipulação da memória pública. Aparatos estatais e organizações neofascistas
colaboram atualmente para construir uma cultura de massa do ódio e da
discriminação contra os presumidos "diferentes” e para convencer as “classes
expropriadas” – essa é uma das características do neofascismo segundo Marcuse –
a se considerar "como população privilegiada em relação aos ‘grupos
estrangeiros’ sacrificados”. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Por isso, acreditamos que hoje o
antifascismo não constitui apenas um resíduo esgotado do passado, mas um campo
vivo e irrenunciável de práticas e resistências contra os processos de
disciplinamento social, na escola, no trabalho, na vida privada, na família, na
sociedade. Como também foi mostrado no recente Festival social das culturas
antifascistas em Bolonha, entre 29 de maio de 2 de junho de 2009, trata-se de
apreender os desafios da contemporaneidade e experimentar o antifascismo do
século XXI. Catilina, o pseudônimo que Fabbri usou na juventude, agora nos
fala. Catilina ainda fala.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Bolonha, 12 de outubro de 2009.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Assembleia Antifascista Permanente – Bolonha
</span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;"><a href="https://assembleantifascistabologna.noblogs.org/"><span style="font-family: "Book Antiqua";">https://assembleantifascistabologna.noblogs.org/</span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> (para as atividades entre dez/2006 e
jan/2010) e </span><a href="https://staffetta.noblogs.org/"><span style="font-family: "Book Antiqua";">https://staffetta.noblogs.org/</span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> (para as atividades a partir de jan/2010)<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p>
<div style="mso-element: footnote-list;"><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<div id="ftn1" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref1" name="_ftn1" style="mso-footnote-id: ftn1;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[1]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> Sobre a vida e a figura de Fabbri é
possível fazer referência aos estudos citados na bibliografia ao final do
presente volume. </span></p>
</div>
<div id="ftn2" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref2" name="_ftn2" style="mso-footnote-id: ftn2;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[2]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> KPD, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Der
internationale Kampf des Proletariats gegen Kriegsgefahr und Faszismus.
Protokoll der Verhandlungen der internationalen Konferenz in Frankfurt am Main
vom 17. bis 21. März 1923, </i>mit einer Einleitung und einem Nachwort [von A.
Losowski], Berlin, Internationaler Verlags-Anstalten, 1923, p. 45. Sobre isso,
ver K.-E. Lönne, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Il fascismo come
provocazione: “Rote Fahne” e “Vorwarts” a confronto con il fascismo italiano
trai l 1920 e il 1933, </i>Napoli, Guida, 1985, p. 104 nota. Já Fabbri fala da
“linguagem desembaraçada e pseudo-subversiva" do Fascismo.</span></p>
</div>
<div id="ftn3" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref3" name="_ftn3" style="mso-footnote-id: ftn3;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[3]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> A. Beltramelli, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">L'Uomo nuovo, </i>Roma-Milano, Arnoldo Mondadori, 1923, pp. 354-355.</span></p>
</div>
<div id="ftn4" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref4" name="_ftn4" style="mso-footnote-id: ftn4;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[4]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> N.T.: Atentado terrorista realizado no dia
12 de dezembro de 1969 na Piazza Fontana, centro de Milão, na sede do Banco
Nacional da Agricultura, resultando em 17 mortes e 80 feridos.</span><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"></span></p>
</div>
<div id="ftn5" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref5" name="_ftn5" style="mso-footnote-id: ftn5;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[5]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> N.T.: Movimento neofascista italiano
organizado a partir de 2003 e que em 2008 constitui-se formalmente como
“associação de promoção social” e partido político. Em 2019, seu presidente
declara extinta a atividade como partido político. Ainda assim, continua ativo
como um movimento. </span></p>
</div>
<div id="ftn6" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref6" name="_ftn6" style="mso-footnote-id: ftn6;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[6]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> N.T.: Respectivamente, algo como: “coletivo
Maleporcas” e " companheira, quando for nos encontrar, tome banho."</span></p>
</div>
<div id="ftn7" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref7" name="_ftn7" style="mso-footnote-id: ftn7;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[7]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> H. Badaraco, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Con la cara vuelta a España, </i>in “Spartacus”, n. 8, 1 de mayo de
1937. </span></p>
</div>
<div id="ftn8" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref8" name="_ftn8" style="mso-footnote-id: ftn8;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[8]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> A. Koyré, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">La cinquième colonne, </i>Paris, Editions Allia, 1997, pp. 44-46 (o
artigo apareceu no número 2-3 da revista “Renaissance” de Nova Iorque em 1945).</span></p>
</div>
<div id="ftn9" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref9" name="_ftn9" style="mso-footnote-id: ftn9;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[9]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> H. Marcuse, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Controrivoluzione e rivolta, </i>traduzione di S. Giacomoni, Milão,
Arnoldo Mondadori, 1973, pp. 9-10.<i style="mso-bidi-font-style: normal;"> </i></span></p>
</div>
<div id="ftn10" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref10" name="_ftn10" style="mso-footnote-id: ftn10;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[10]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> Cfr. H. Marcuse, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Teoria e pratica, </i>traduzione di C. Bonardi, Milão, Shakespeare
& Company, 1979, pp. 45-47. Uma síntese útil do conceito marcusiano de
“contrarrevolução preventiva" é a de R. Laudani, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Oltre "L'uomo a una dimensione”: movimenti e globalizzazione nel
pensiero di Hebert Marcuse, </i>in <i style="mso-bidi-font-style: normal;">La
catástrofe e il parasita. Scenari della transizione globale, </i>a cura di G.
Bonaiuti e A. Simoncini, Milão, Mimesis, 2004, pp. 241-244. </span></p>
</div>
<div id="ftn11" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref11" name="_ftn11" style="mso-footnote-id: ftn11;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[11]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> H. Marcuse, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Controrivoluzione e rivolta, </i>cit., pp. 33-34. </span></p>
</div>
<div id="ftn12" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref12" name="_ftn12" style="mso-footnote-id: ftn12;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[12]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> L. Castellina, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Intervista con Marcuse: in America è in atto una “controrivoluzione
preventiva", </i>“Il Manifest”, 28 de novembro de 1972. </span></p>
</div>
<div id="ftn13" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref13" name="_ftn13" style="mso-footnote-id: ftn13;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[13]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> M. Foucault, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Poteri e strategie, </i>a cura di P. Dalla Vigna, Milão, Mimesis, 1994,
p. 22. </span></p>
</div>
<div id="ftn14" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref14" name="_ftn14" style="mso-footnote-id: ftn14;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[14]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> G. Debord, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Commentari sulla società dello spettacolo e La società dello
spettacolo, </i>con una nota di G. Agamben, Milano, Sugarco, 1990, pp. 68-69.
Ed. brasileira: G. Debord, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">A Sociedade do
Espetáculo; Comentários à sociedade do espetáculo, </i>Rio de Janeiro, Contraponto,
1998, trad. Estela dos Santos Abreu. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></p>
</div>
<div id="ftn15" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref15" name="_ftn15" style="mso-footnote-id: ftn15;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[15]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> D. Guérin, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Fascismo e gran capitale, </i>traduzione di G. Galli, Roma, Erre emme,
1994, p. 45. </span></p>
</div>
<div id="ftn16" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref16" name="_ftn16" style="mso-footnote-id: ftn16;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[16]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Ivi, </i>pp.
257-275. </span></p>
</div>
<div id="ftn17" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref17" name="_ftn17" style="mso-footnote-id: ftn17;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[17]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Ivi, </i>pp.
40 e 50. </span></p>
</div>
<div id="ftn18" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref18" name="_ftn18" style="mso-footnote-id: ftn18;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[18]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> N.T.: Na administração pública italiana, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">prefetto </i>é o representante do governo
territorial de província e regiões metropolitanas ligado ao Ministério do
Interior. Difere da figura do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">sindaco, </i>a
qual está mais próxima da figura do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">prefeito
</i>brasileiro. </span><span style="font-family: "Book Antiqua"; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"></span></p>
</div>
<div id="ftn19" style="mso-element: footnote;">
<p class="MsoFootnoteText"><a href="#_ftnref19" name="_ftn19" style="mso-footnote-id: ftn19;" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua";"><span style="mso-special-character: footnote;"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Book Antiqua"; font-size: 10pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin;">[19]</span></span></span></span></span></a><span style="font-family: "Book Antiqua";"> N.T.: Referência à brutalidade das forças
de ordem do Estado durante os protestos contra a reunião do G8 em Gênova em 22
de julho de 2001. Cerca de 240 pessoas foram levadas ao quartel de Bolzaneto e
submetidas a violências físicas e psicológicas pelos agentes do governo.</span></p><p class="MsoFootnoteText"><span style="font-family: "Book Antiqua";">Luigi Fabbri.<i> La controrivoluzione preventiva. Riflessione sul fascismo. </i>Milano: Zero in condotta, 2009. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko <br /></span></p>
</div>
</div>
<p><style>@font-face
{font-family:"Cambria Math";
panose-1:2 4 5 3 5 4 6 3 2 4;
mso-font-charset:0;
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{page:WordSection1;}</style></p>Khôrahttp://www.blogger.com/profile/06654908722644519478noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-86681939530037451732020-12-10T07:09:00.004-03:002022-01-16T15:39:16.182-03:00Democracia finita e infinita - Jean-Luc Nancy<p> </p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-ZzXmKC6dV5I/X9HzViV5InI/AAAAAAAACLw/c48oYBCeLSICi9CaipFiCSsJPteaVBM5ACLcBGAsYHQ/s1350/1*e1hfyL6Z7T-bdsYsMYxgPA.jpeg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1350" data-original-width="1350" height="320" src="https://1.bp.blogspot.com/-ZzXmKC6dV5I/X9HzViV5InI/AAAAAAAACLw/c48oYBCeLSICi9CaipFiCSsJPteaVBM5ACLcBGAsYHQ/s320/1*e1hfyL6Z7T-bdsYsMYxgPA.jpeg" /></a></span></div><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;"><br /> </span><p></p>
<p align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;"><i><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Jean-Luc Nancy</span></i></p>
<p align="right" class="MsoNormal" style="text-align: right;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;"> </span></p><p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">1.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Há um sentido
em dizer-se "democrata"? É claro que se pode e que se deve igualmente
responder: "não, o menor sentido, já que não é mais possível dizer outra
coisa"; ou: "sim, claro, já que por toda parte são ameaçadas a igualdade,
a justiça e a liberdade – pelos plutocratas, pelos tecnocratas, pelos
mafiocratas".</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">"Democracia"
tornou-se um caso exemplar de insignificância: forçada a representar o todo da
política virtuosa e a única maneira de garantir o bem comum, a palavra acabou
por absorver e por dissolver todo caráter problemático, toda possibilidade de
interrogação ou de pôr-se em questão. Ainda restam certas discussões marginais
sobre as diferenças entre diversos sistemas ou sensibilidades democráticas. Em
suma, "democracia" quer dizer tudo – política, ética, direito,
civilização – e, portanto, não quer dizer nada.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Essa
insignificância deve ser levada a sério, e é isto que faz o trabalho
contemporâneo do pensamento, como testemunha a presente "investigação":
não se contenta mais em deixar flutuar as intermitências do sentido comum.
Exige-se fazer comparecer a insignificância democrática diante do tribunal da
razão.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Recorro a
essa metáfora kantiana pois penso que se trata de uma exigência igual à que se
impunha a Kant: submeter ao discernimento crítico o sentido mesmo do
"saber". No entanto, como quer que se queria fazer isso, não se pode
mais anular agora, mesmo tendencialmente, a demarcação entre o objeto de
conhecimento para um sujeito e o saber – digamos "de sujeito sem
objeto" para tornar abruptamente mais simples (e mesmo sem a explicar em
outra parte). Ou precisamos, num curto espaço de tempo, nos tornar capazes de
uma demarcação mais clara e consistente entre dois sentidos, dois valores e
duas questões que cobrem indistintamente a insignificância confusa da palavra
"democracia".</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Por um lado,
essa palavra designa – de modo parecido, para inverter a analogia, ao regime
kantiano do "entendimento" – as condições das práticas possíveis de
governo e de organização, desde que nenhum princípio transcendente não as possa
regrar (compreendido que nem o "homem" e nem o "direito"
podem ser considerados transcendentes).</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Por outro lado,
essa mesma palavra designa – de uma maneira parecida à questão do regime da
"razão" – a Ideia do homem e/ou a do mundo desde que, subtraída à
toda aliança com um além-mundo, eles não postulem a respeito disso nada mais do
que sua capacidade de serem por si próprios, sem se furtarem à sua imanência,
sujeitos de uma transcendência incondicionada, isto é, capazes de implantar uma
autonomia plena. (Como é possível imaginar, emprego o verbo
"postular" segundo a analogia kantiana para designar o modo legítimo,
em regime de finitude, isto é, de "morte de Deus", de uma abertura ao
infinito.)</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">É certo que
essa segunda acepção não pode ser dita "própria", e nenhum dicionário
a autoriza. Mas mesmo não sendo um significado do termo, é a significação que a
ele se acopla: a democracia promove e promete a liberdade de todo ser humano na
igualdade de todos os seres humanos. Nesse sentido, a democracia moderna
compromete absoluta e ontologicamente os humanos, e não apenas o
"cidadão". Ou ainda, ela tende a confundir os dois. Em todo caso, a
democracia moderna corresponde muito mais do que a uma mutação política: a uma
mutação de cultura ou de civilização tão profunda que ela tem valor
antropológico, juntamente com a mutação técnica e econômica da qual ela é
solidária. É por isso que o contrato de Rousseau não institui apenas um corpo
político, mas produz o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">próprio </i>homem,
a humanidade dos homanos.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">2.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Para que seja
possível tal anfibologia de uma palavra, tinha de ser possível uma ambiguidade
– uma confusão ou indistinção qualquer – sobre o registro de origem e de uso
dessa palavra, a saber, o registro da política.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">É como efeito
de uma dualidade ou de uma duplicidade constitutivas da "política"
que procede a ambivalência mal discernida e mal regrada da
"democracia". A política jamais cessou, desde os Gregos até nossos
dias, de se manter numa disposição dupla: de uma parte o único regramento da
existência comum, de outra, a assunção do sentido ou da verdade dessa
existência. Às vezes a política destaca claramente sua esfera de ação e de
pretensão, outras vezes, pelo contrário, ela a estende à totalidade da existência
(portanto, indiscernivelmente comum e singular). Nada espantoso se as grandes
tentativas de realização política do século XX foram feitas sob o signo dessa
assunção: que o ser comum venha como auto-ultrapassagem ou auto-sublimação das
relações e das forças. Essa ultrapassagem ou essa sublimação que pôde ser
nomeada "povo", "comunidade" – ou ainda com outros nomes
(dentre os quais a "república") –, representou de fato o desejo da
política de ultrapassar a si mesma (necessariamente eliminando-se como esfera
separada e, por exemplo, absolvendo e dissolvendo o Estado). É dessa
auto-ultrapassagem – ou auto-sublimação – que procedem a ambivalência e a
insignificância da "democracia".</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">3.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Tudo começa,
na realidade, com a própria <i style="mso-bidi-font-style: normal;">política</i>.
Pois é preciso lembrar que ela começou. Com frequência estamos prontos para
pensar que há desde sempre e por toda parte política. Mas não houve desde
sempre política. Ela é, junto com a filosofia, uma invenção grega e, como a
filosofia, é uma invenção resultante do fim das presenças divinas: cultos
agrários e teocráticos. Do mesmo modo que o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">logos</i>
se edifica sobre a desqualificação do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">mythos</i>,
assim também a política se ordena sobre a desaparição do deus-rei.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">A democracia
é, portanto, o outro da teocracia. Isso quer dizer também que ela é o outro do
direito dado: ela deve inventar o direito. Ela deve inventar a si própria. De
modo contrário às imagens piedosas que amamos (e por causa delas...) fazer da
democracia ateniense, sua história imediatamente nos mostra e como ela estava
sempre inquieta em relação a si mesma e preocupada com sua reinvenção. Toda a
questão de Sócrates a Platão se produz nesse contexto, como a busca pela
logocracia que deveria colocar fim às falhas da democracia. Essa busca, no
fundo, é perseguida até nossos dias por meio de muitas transformações, e,
dentre elas, a mais importante foi a tentativa de estabelecer com o Estado e
sua soberania uma fundação decididamente autônoma do direito público.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Transferindo
a soberania ao povo, a democracia moderna mostrou o que permanecia ainda (mal)
dissimulado pela aparência de "direito divino" da monarquia (ao menos
francesa), a saber: que a soberania não é fundada nem no <i style="mso-bidi-font-style: normal;">logos</i>, nem no <i style="mso-bidi-font-style: normal;">mythos</i>.
Desde seu nascimento, a democracia (aquela de Rousseau) sabe-se infundada. É sua
sorte e sua fraqueza: nós estamos no coração desse quiasma.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">É preciso
discernir para onde levam respectivamente a sorte e a fraqueza.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">4.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Comecemos,
por isso, observando que a democracia não começou nem recomeçou sem ser
acompanhada da "religião civil". Ou melhor: enquanto ela acreditou em
si, soube também que para ela certamente não era preciso não
"secularizar" a teocracia, mas inventar o que poderia ser, em relação
ao direito dado, um equivalente sem ser um sucedâneo ou um substituto: uma
figura da doação que seria tutelar para a invenção sempre por fazer. Uma
religião, portanto, que, sem fundar o direito, daria sua benção à sua criação
política.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">É assim que
Atenas e Roma viveram religiões políticas e delas fizeram uso – e, talvez,
religiões jamais, ou raramente, tiveram toda a consistência tutelar esperada.
Não é por acaso que Sócrates é condenado por impiedade em relação à religião
civil, também não é por acaso que o cristianismo se separa da religião civil de
Roma (esta, já enfraquecida, tendo cedido em relação a sua verdadeira fé, que
era a República). A filosofia e o cristianismo acompanham a longa derrota da
religião civil na Antiguidade. Quando o cristianismo desocupar esse lugar – por
certo, não o de uma nova teocracia nem o de uma religião civil, mas o de uma
partição ambígua (associação, competição, dissociação) entre o trono e o altar
–, a religião civil poderá tentar renascer em seu ensino (na América) ou em seu
exemplo (na França), mas será votada a permanecer mais civil do que religiosa
e, em todo caso – colocando em discussão as palavras –, mais política do que
espiritual.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Dá-se uma
atenção muito pequena à relação de Platão com a democracia. A reverência que se
dá àquele que não só é o primeiro dos filósofos no sentido cronológico mas que
tem um papel estritamente fundador, leva a que admitamos como um simples
desvio, como uma tendência aristocrática de nosso <i style="mso-bidi-font-style: normal;">habitus </i>democrático, essa hostilidade de Platão em relação ao
regime ateniense tal como ele o conhecia. Mas a questão é muito mais importante:
o que Platão reprova na democracia é o fato de ela não ser fundada na verdade,
de não poder produzir os títulos de sua legitimidade primeira. A suspeita em
relação aos deuses da cidade – e a suspeita em relação aos deuses e mitos em
geral – abre a possibilidade de uma fundação no <i style="mso-bidi-font-style: normal;">logos</i> (num <i style="mso-bidi-font-style: normal;">logos</i> cujo <i style="mso-bidi-font-style: normal;">theos</i>, no singular, torna-se outro
nome).</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">5.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Desde então,
uma alternativa atravessa toda nossa história: ou bem a política é infundada e
assim deve permanecer (com o direito), ou bem ela se dá um fundamento, uma
"razão suficiente" leibniziana. No primeiro caso, ela se contenta com
móveis faltas de razão(ões): a segurança, a proteção contra a natureza e contra
a insociabilidade, a junção de interesses. No segundo caso, a razão ou Razão
invocada – direito divino ou razão de Estado, mito nacional ou internacional –
transforma inevitavelmente a assunção comum que ela anuncia em dominação e em
opressão.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">A sorte da
ideia de "revolução" foi jogada na articulação entre os dois lados da
alternativa. A democracia de fato exige uma <i style="mso-bidi-font-style: normal;">revolução</i>:
fazer girar a própria base da política. Ela deve expô-la à ausência de
fundamento. Mas ela não permite, no entanto, que a revolução <i style="mso-bidi-font-style: normal;">retorne</i> ao suposto ponto de um
fundamento. Revolução suspensa, portanto.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Nos últimos
tempos vimos se desenvolver, em muitos estilos, pensamentos da revolução
suspensa, pensamentos do momento insurrecional opostos à instalação – ao Estado
– revolucionária, pensamentos da política como ato sempre renovado de uma
revolta, crítica e subversão despojadas de pretensão fundadora, pensamentos do
assédio continuo mais do que da destruição do Estado (isto é, literalmente,
daquilo que está estabelecido, assegurado, e, assim, que se supõe fundado na
verdade). Esses pensamentos são justos: assumem tudo, o fato de que
"política" não legitima a assunção da humanidade, nem do mundo (uma
vez que, a partir de então, homem, natureza, universo são indissociáveis). É um
passo necessário para a dissipação daquilo que foi uma grande ilusão da
modernidade, aquela que há muito se exprimiu por meio do desejo de
desaparecimento do Estado, isto é, de substituição do fundamento reconhecido
não consistente por um fundamento na verdade – a própria verdade residindo na
projeção democrática do homem (e do mundo) igual, justo, fraterno e subtraído
ao poder.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Torna-se
necessário dar um passo a mais: pensar como a política infundada e, de alguma
maneira, em estado de revolução permanente (se é possível desviar assim esse
sintagma...) tem por tarefa permitir a abertura de esferas que lhe são por
direito estrangeiras e que, por sua parte, são as esferas da verdade ou do
sentido: aquelas que designam mais ou menos os nomes "arte",
"pensamento", "amor", "desejo" ou todas as outras
designações possíveis da relação ao infinito – ou, melhor dizendo, da relação
infinita.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Pensar a heterogeneidade dessas esferas em relação à esfera
propriamente política é uma necessidade <i style="mso-bidi-font-style: normal;">política</i>.
Ou a "democracia" – isso que nós cada vez mais temos o hábito de
nomear assim – tende ao contrário, segundo esse hábito, a apresentar uma
homogeneidade dessas esferas ou dessas ordens. Mesmo se ela permanece vaga e
confusa, essa homogeneidade presumida nos desvia do caminho.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">6.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Antes de
prosseguir, paremos um instante sobre considerações linguísticas. Que se trate
de processos etimológicos dotados de sentido ou ainda de acasos históricos (no
mais, as duas ordens mal se separam na formação e evolução das línguas), o
presente estado de nosso léxico político oferece uma forte inspiração:
"demo<i style="mso-bidi-font-style: normal;">cracia</i>" é formada por
um sufixo que remete à força, à imposição violenta, diferentemente do sufixo –<i style="mso-bidi-font-style: normal;">arquia</i> que remete ao poder fundado,
legitimado num princípio. A coisa é clara quando se considera a série:
plutocracia, aristocracia, teocracia, tecnocracia, autocracia, ou burocracia
(ou ainda oclocracia, "poder da massa") – tal como ela se distingue
desta outra: monarquia, anarquia, hierarquia, oligarquia. Sem procurar entrar
numa análise precisa das histórias desses termos (o que implicaria a de alguns
outros como nomarquia, tetrarquia, ou ainda, fisiocracia ou mediocracia, com
consideração de diferenças de épocas, de níveis, de registros de língua), é
preciso discernir como a designação de um princípio fundador se distingue da
imputação de uma força dominadora (o que implica, naturalmente, que
"teocracia" seja um termo pensado de um ponto de vista oposto à ideia
de uma legítima soberania divina e que mesmo "aristocracia" possa
implicar uma contradição entre a ideia de "melhores" e à de sua
dominação mais ou menos arbitrária).</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Ainda que
sejam, mais uma vez, fenômenos estritamente linguísticos, é certo que a palavra
"democracia" parece manter a coisa longe da possibilidade de um
princípio fundador. De fato, é preciso dizer que a democracia implica por
essência algo de uma <i style="mso-bidi-font-style: normal;">anarquia,</i> que
poderia ser dita quase de princípio, se por isso não poderia autorizar-se
justamente essa <i style="mso-bidi-font-style: normal;">contraditio in adjecto</i>.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Não há
"demarquia": o "povo" não faz princípio. Ele faz, no máximo,
oximoro ou paradoxo de princípio sem principado. É também porque o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">direito</i> ao qual remete a instituição
democrática só pode de fato viver numa relação sempre ativa e renovada em face
de sua própria falta de fundamento. Que a primeira modernidade tenha forjado a
expressão "direito do homem" e que a implicação filosófica dessa
expressão continue a ser ativa, ainda que de modo implícito e confuso, na
expressão "direitos do homem" (ou do animal, da criança, do feto, do
meio ambiente, da própria <i style="mso-bidi-font-style: normal;">natureza</i>
etc.)</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">É mais que
tempo de reafirmar e trabalhar essa afirmação cujo conteúdo e alcance são, no
entanto, teoricamente bem estabelecidos: não apenas não há "natureza
humana", mas o "homem", querendo confrontá-la à ideia de uma
"natureza" (de uma ordem autônoma e auto-finalizada), não tem outras
características senão as de um sujeito em falta de "natureza" ou em
excesso sobre toda espécie de "natureza": o sujeito de uma <i style="mso-bidi-font-style: normal;">desnaturação</i> em qualquer sentido, pior
ou melhor, que se pretenda tomar essa palavra.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">A democracia
enquanto política, não podendo ser fundada sobre um princípio transcendente, é
necessariamente fundada, ou infundada, sobre a ausência de uma natureza humana.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">7.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Segue, no
plano da política, de suas ações e de suas instituições, duas consequências
maiores.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">A primeira
consequência diz respeito ao poder. A democracia implica o direito ou parece
implicar – é precisamente sobre o semblante ou a realidade que é preciso aqui
se pronunciar – uma desaparição ao menos tendencial da instância específica e
separada do poder. Ora, já vimos que é a anulação dessa separação que se torna
o problema. É para "um povo de deuses" que essa anulação poderia ser
efetiva. O modelo dos "conselhos" (ou <i style="mso-bidi-font-style: normal;">sovietes</i>), cuja forma ideal é, em suma, o povo em assembleia
permanente e a designação de delegados para tarefas determinadas, de acordo com
a revogabilidade permanente desses mesmos delegados. Que seja possível e
desejável, em vários tipos de níveis ou de escalas sociais, praticar fórmulas
de co-gestão ou de participação que tendem mais ou menos para esse modelo não
impede que na escala de uma sociedade inteira ele não seja praticável. Mas não
é apenas um problema de escala: é um problema de essência. A <i style="mso-bidi-font-style: normal;">sociedade</i>, por si, existe na
exterioridade das relações. Nesse sentido, uma "sociedade" só começa
onde cessa a integração em interioridade de um grupo que solidifica seu sistema
de parentesco e sua relação aos mitos, figuras ou totens do próprio grupo.
Pode-se mesmo dizer que a distinção, isto é, a oposição entre
"sociedade" e "comunidade", tal qual formulada desde o fim
do século XIX e tal como está implícita em todas as considerações da idade
clássica sobre a "insociável sociabilidade" dos homens (Kant), não é
por acaso contemporânea da democracia – assim como a dissolução das comunidades
de vida rural não era estranha ao nascimento das cidades. A cidade – a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">polis</i> – já representava uma forma de
ligação à exterioridade, em relação à qual a democracia devia resolver o
problema.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">É claro que
não se trata de tomar esses termos – "interioridade, exterioridade" –
ao pé da letra, nem sob o registro do grupo ou do indivíduo. Mas é preciso ter
em conta que o fato de as representações que eles induzem sejam ou não
recebidas e implementadas. A sociedade moderna (temos apenas esse termo
genérico) se representa segundo a exterioridade de seus membros (supostos
indivíduos) e de suas relações (supostas de interesses e de forças). Uma
antropologia inteira – para não dizer uma metafísica – está subentendida desde
que se fala de "sociedade" e de socialidade, de sociabilidade, de
associação. Associa-se a partir de uma exterioridade e a dissociação é sempre o
corolário possível de uma associação.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">É também
porque o poder, em sociedade, parece apenas manter os traços da "violência
legítima" e mais nada de uma função simbólica que seria ligada à verdade
"interna" do grupo.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">A democracia
tem dificuldade em assumir um poder que trai a ausência desse simbolismo no
sentido mais forte da palavra (digamos, no sentido em que uma vez a religião,
civil ou não, outra vez a aliança feudal, outra a unidade nacional, puderam
parecer ao garantir a força). Nesse sentido, o verdadeiro nome que a democracia
deseja, e aquele que ela tem, de fato, engendrado e levado durante cento e
cinquenta anos como seu horizonte, é o <i style="mso-bidi-font-style: normal;">comunismo</i>.
Esse nome tem sido o do desejo de criação de uma verdade simbólica da
comunidade diante da qual a sociedade sabia-se totalmente em falta. Esse nome talvez
esteja caduco, mas não é isso que discutirei aqui. Ele tem sido o nome portador
de uma ideia – só uma ideia, de modo algum um conceito no sentido estrito, um
pensamento, uma direção de pensamento segundo a qual a democracia, de fato, se
interrogava sobre sua própria essência e sobre sua própria destinação.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Hoje já não é
suficiente – longe disso! – denunciar tal ou qual "traição" do ideal
comunista. Antes, é preciso levar em conta isto: a ideia comunista não tinha
que ser um ideal – utópico ou racional – pois ela não operava sobre a dialética
da exterioridade social e de uma interioridade (ou simbolicidade, ou
consistência ontológica: é tudo um) comum ou comunitária. Ela tinha como tarefa
abrir a questão sobre aquilo que a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">sociedade</i>,
como tal, deixa em suspenso: justamente, o simbólico, ou o ontológico, ou
ainda, de forma banal, o sentido ou a verdade do ser-junto.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">O comunismo
não era político e não tinha que ser. Essa denúncia de que ele engajava a
separação da política não era política. O comunismo não soube disso, nós, agora, devemos saber.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Mas é
importante, nessas condições, não se seduzir pelo poder. Este não é apenas o
expediente exterior destinado a sustentar bem ou mal a insocial sociedade e
sobre o qual se aprende, por predileção, os próprios apetites mais extrísecos,
ou os mais estrangeiros, ou mesmo os mais hostis ao corpo da sociedade. Pois se
trata desse "corpo" e também se trata de saber se ele é um em
interioridade orgânica ou se ele é um agregado suscetível aos meios de
organização.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Que o poder
organize, gira e governe não torna condenável a separação de sua esfera
própria. É porque encontramos hoje – pouco importa quão "comunistas"
podemos nos imaginar – o sentido de uma necessidade do Estado (com a qual, e
não contra a qual, se colocam outras questões para além do Estado: as questões
do direito internacional e dos limites da soberania clássica).</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Mas é preciso
não se contentar em decidir-se em relação ao que seria inevitável. No poder, há
mais do que uma necessidade de governo. Há um desejo próprio, uma pulsão de
dominação e uma pulsão correlativa de subordinação. Não se pode reduzir todos
os fenômenos de poder – tanto político como simbólico, cultural, intelectual,
de palavra ou de imagem etc. – a uma mecânica de forças rebelde à moral ou a um
ideal de uma comunidade de justiça e de fraternidade (pois é sempre, no fim das
contas, uma condenação desse gênero que está em nossas análises do ou dos
poder[es]). Essa redução ignora aquilo que a pulsão em questão pode ter de
distinta do simples desejo de destruir ou de morte. No impulso para o senhorio,
para a influência ou dominação, ao comando e ao governo, não é interdito (mesmo
que justamente o seja para a psicanálise) considerar ao mesmo tempo o furor da
sujeição, do aviltamento ou da destruição e o ardor da conquista, da potência
de manter, conter e trabalhar com vistas a uma forma e àquilo que uma forma
pode expor. A conjunção, ou a mistura desses dois aspectos não é evitável e não
é possível se contentar em desejar uma polícia de pulsões que classifique entre
as más e as boas domesticações. Barbárie e civilização se tocam aqui de maneira
perigosa, mas esse perigo é o índice da indeterminação e da abertura do
movimento que leva a comandar e a possuir.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Esse
movimento é tanto de vida como de morte, de sujeito em expansão como de objeto
de sujeição, é tanto o fato de um crescimento do ser em seu desejo quanto o de
seu afundamento na satisfação plena. Esse é o desafio profundo do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">conatus</i> de Spinoza ou da <i style="mso-bidi-font-style: normal;">vontade de potência</i> de Nietzsche, para
tomar as figuras mais visíveis daquilo que em toda parte, no pensamento, indica
esse impulso – o qual, se não é pré-formado nem predestinado a tal ou qual fim,
só pode ser ambivalente.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">É certo que o poder político é destinado a garantir a socialidade, até
na possibilidade de lhe contestar e refundar suas relações estabelecidas. Mas é
por isso destinado àquilo que a socialidade pôde ter acesso a fins
indeterminados, sobre os quais o poder como tal é sem poder: os fins sem fim do
sentido, dos sentidos, das formas, das intensidades de desejo. O impulso do
poder ultrapassa o poder ainda que, ao mesmo tempo, persiga o poder por ele
mesmo. Em princípio, a democracia coloca uma superação do poder – mas como sua verdade
e sua grandeza (ou seja, majestade!) e não como sua anulação.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">8.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Isso é do
poder, sempre se soube, de fato, já que sempre se pensou – salvo na simples
tirania, que é sem pensamento – que os governantes governam para o bem dos
governados (e sobre isso é possível dizer que em toda parte – salvo, novamente,
na tirania – o poder é ordenado ao povo, seja ou não o regime expressamente
democrático). Mas o que circunscreve assim a potência do poder não determina,
no entanto, a natureza nem as formas e os conteúdos do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">bem</i> dos governados.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Esse bem é
essencialmente não determinado (o que não quer dizer indeterminado) e só pode
se determinar no movimento que o inventa ou que o cria abrindo-o mais uma vez a
uma interrogação – inquietude ou ímpeto – sobre o que ele poderia ser ou
tornar-se. Quais são as formas, quais são os sentidos, quais são as questões de
uma existência sobre a qual tudo o que de início podemos saber (e esse início
nós o retomamos sempre de novo) se dá em duas proposições:</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">- ela, essa
existência, não responde a nenhum desenho, destino ou projeto que a precederia;</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">- ela não é
mais individual do que coletiva: o existir – ou a verdade do "ser" –
só existe segundo a pluralidade dos singulares na qual se dissolve toda
postulação de uma unidade do "ser".</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">O bem sem
projeto nem unidade consiste na invenção sempre retomada das formas segundo as
quais o sentido pode ter lugar. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Sentido</i>
quer dizer: envio de uns aos outros, circulação, troca ou partilha de
possibilidades de experiência, isto é, de relações com o fora, com a
possibilidade de uma abertura ao infinito. O <i style="mso-bidi-font-style: normal;">comum</i> é aqui o todo da questão. Sentido, sentidos, sensação,
sentimento, sensibilidade e sensualidade, tudo isso só se dá em comum. De forma
mais exata, é a própria condição do comum: o sentir de uns em relação aos
outros, e por isso a exterioridade não convertida ou preenchida em
interioridade, mas esticada, colocada em tensão entre nós.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Enquanto
compromete uma metafísica (ou, como vamos dizer: uma relação com os fins), e que
não poderia ser garantida por uma religião, civil ou não, a democracia exige
que sua política faça emergir clara e amplamente o fato de que suas questões do
sentido e dos sentidos ultrapassam a esfera de seu governo. Não é um caso de
público ou de privado, nem de coletivo ou de individual. É o caso do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">comum</i> ou do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">em-comum</i> que não é nem um nem outro e no qual toda a consistência
se encontra na marginalização de um e de outro. O<i style="mso-bidi-font-style: normal;"> comum</i> é, de fato, o regime do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">mundo</i>:
da circulação dos sentidos.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">A esfera do
comum não é uma: ela é feita de múltiplas aproximações da ordem do sentido – a
qual, por sua vez, é múltipla, como na diversidade das artes, dos pensamentos,
dos desejos, dos afetos etc.. Aqui, o que "democracia" quer dizer é a
admissão – sem assunção – de todas as diversidades numa "comunidade"
que não as unifica, mas que implanta, ao contrário, sua multiplicidade e, com
ela, o infinito em que elas constituem as formas inomináveis e inacabáveis.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">9.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">A armadilha
que a política colocou para si mesma com o nascimento da democracia moderna –
isto é, repetimos, da democracia sem princípio efetivo de religião civil – é a
armadilha que faz confundir o comando da estabilidade social (o Estado segundo
a origem da palavra: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">il stato</i>, o
estado estável) com a ideia de uma forma que englobe todas as formas
expressivas do ser-em-comum (isto quer dizer, do ser ou da existência
simplesmente, absolutamente).</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Não é que
seja ilegítimo ou em vão aspirar a uma forma de todas as formas. De certo modo,
cada um não exige menos do que isso, seja por meio de uma das artes ou por meio
do amor, do pensamento ou do saber. Mas cada um sabe – e sabe por um saber
inato, originário – que sua aspiração para desenvolver e carregar todas as
formas só declara sua verdade quando ela se abre a seus desenvolvimentos
múltiplos e deixa abundar uma diversidade inesgotável. Nossa pulsão por unidade
ou síntese entende-se, desde que se deu, como pulsão de expansão e de implantação,
não de fechamento num ponto final. Certa compreensão da política se
sobrecarregou com o peso do ponto final e do sentido único.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Tomem as
coisas sob o ângulo da forma ou do desejo, da ressonância ou da linguagem, do
cálculo ou do gesto, da cozinha ou do drapeado: não é um regime de forma que
acaba por florescer se abrindo sobre todos os outros por contato ou por
remissão, por contraste ou analogia, em via direta, oblíqua ou rompida – mas
ninguém, no entanto, pensa em absorver ou reunir os outros sem se conhecer
então como voltado para sua própria negação. Se "o cobre desperta
clarim" (Rimbaud) é porque ele não retorna a ser violão.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Também não é
forma das formas, nem cumprimento de uma totalidade. O <i style="mso-bidi-font-style: normal;">todo</i>, ao contrário, exige um <i style="mso-bidi-font-style: normal;">mais</i>
que tudo (seja um vazio ou um silêncio) sem o qual o todo implode. No entanto,
a "política" deu a entender que nela podia haver algo disso e que,
portanto, por essa mesma razão, "política" devia encarar sua própria
distinção afirmando que "tudo é político", ou ainda, que na política
se dá a antecedência necessária de toda outra <i style="mso-bidi-font-style: normal;">praxis</i>.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">A política
deve dar a forma do acesso à abertura das outras formas: é a antecedência de
uma condição de acesso, não de uma fundação ou de uma determinação de sentido.
Isso não subordina a política; isso lhe confere uma particularidade que é de
alta valia. Ela deve renovar sem cessar a possibilidade da eclosão das formas
ou dos registros de sentido. Em contrapartida, ela não deve se constituir em
forma, não ao menos no mesmo sentido: as outras formas, de fato, ou os outros
registros envolvem fins que são fins em si (artes, linguagem, amor, pensamento,
saber...). Por outro lado, ela dá seu campo para que a força se coloque em
forma.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">A política
jamais chega a fins. Ela conduz a níveis de equilíbrios transitórios. A arte, o
amor ou o pensamento estão a cada instante, seria possível dizer, a cada
ocorrência, no direito de se declarar cumpridos. Mas, ao mesmo tempo, esses
cumprimentos só valem em sua esfera própria e não podem pretender fazer direito
nem política. Assim, seria possível dizer que esses registros estão na ordem de
um "findar do infinito", enquanto a política depende da indefinição.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">10.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Termino, sem
concluir, com algumas notas descontínuas.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">A delimitação
das esferas não políticas (aqui nomeadas "arte", "amor",
"pensamento" etc.) não é nem dada, nem imutável; a invenção dessas
esferas, sua formação, seu colocar em figuras e em ritmos – por exemplo, a
invenção moderna da "arte" – dependem desse regime de invenção dos
fins e de sua transformação, reinvenção etc..</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">A delimitação
entre a esfera política e o conjunto das outras não é também dada nem imutável;
exemplo: onde deve começar e terminar uma "política cultural"? E é o
próprio da democracia ter que refletir sobre os limites de sua esfera
"política".</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Toda minha
proposta poderia parecer conduzir à legitimação do estado atual das coisas em
nossas democracias tal como elas existem: de fato, a política aí observa linhas
de partilha com as esferas ditas "artística", "científica",
"amorosa" – sem deixar de intervir de cem maneiras diferentes em cada
uma delas. De fato, nesse estado de coisas jamais é dito nem refletido o que eu
me esforço em expor: como a política <i style="mso-bidi-font-style: normal;">não
é</i> o lugar da assunção dos fins, apenas o do acesso à sua possibilidade.
Inventar o lugar, o órgão, o discurso dessa reflexão, isso seria um gesto
político considerável.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;"> </span></p>
<p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;">"Democracia"
é, portanto, o nome de uma mutação da humanidade na relação com seus fins, ou
consigo mesma como "ser dos fins" (Kant). Não é o nome de uma
autogestão da humanidade racional, nem o nome de uma verdade definitiva
inscrita no céu das Ideias. É o nome, ó quão mal compreendido, de uma
humanidade que se encontra exposta à ausência de todo fim dado – de todo céu,
de todo futuro, mas não de todo infinito. – Exposta, existente.</span></p><p class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;"> </span></p><div class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="font-size: x-small; mso-bidi-font-size: 16.0pt;">Tradução: Vinícius Nicastro Honesko </span></div><div class="MsoNormal" style="mso-layout-grid-align: none; mso-pagination: none; text-align: justify; text-autospace: none;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;"><span style="font-size: x-small;">Original: <i>Démocratie finie et infinie. in.: Démocratie, dans quel état? </i>Paris: La Fabrique, 2009. pp. 77-94. </span><br /></span></div>
<p class="MsoFootnoteText" style="text-align: justify;"><span style="mso-bidi-font-size: 16.0pt;"> </span><span lang="EN-US" style="font-size: 10pt; mso-ansi-language: EN-US; mso-bidi-font-size: 16.0pt;"></span><span style="font-size: 10pt; mso-bidi-font-size: 12.0pt;"></span></p><div style="mso-element: footnote-list;"><div id="ftn1" style="mso-element: footnote;">
</div>
</div>
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{page:WordSection1;}</style></p>Khôrahttp://www.blogger.com/profile/06654908722644519478noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5846467664559625160.post-40266706194989432162020-06-23T08:29:00.000-03:002020-06-23T08:51:22.196-03:00Quando Kerényi me desviou de Jung - Furio Jesi<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://1.bp.blogspot.com/-MksRJ_43eF4/XvHmb_whOYI/AAAAAAAACJ4/cmiv9Dq_SVgEGI9YEruSLHsr48OvMG9KACLcBGAsYHQ/s1600/435px-Egypte_louvre_182.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="600" data-original-width="435" height="320" src="https://1.bp.blogspot.com/-MksRJ_43eF4/XvHmb_whOYI/AAAAAAAACJ4/cmiv9Dq_SVgEGI9YEruSLHsr48OvMG9KACLcBGAsYHQ/s320/435px-Egypte_louvre_182.jpg" width="232" /></a></div>
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<i>Furio Jesi</i></div>
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<b>Pergunta: </b>Seu primeiro ensaio, já com mais de vinte anos, é dedicado a um papiro helenístico ("Notes sur l’édit dionysiaque de Ptolémée IV Philopator", in <i>Journal of Near Eastern Studies</i>, Chicago, 1956) e seu primeiro livro se chama <i>A cerâmica egípcia</i> (Saie, Turim, 1958). O estudo da arqueologia e das civilizações antigas constituiu, portanto, o momento inicial de seu itinerário teórico. Como se pode chegar à ciência do mito passando pelo estudo do mundo antigo? <br />
<b>Resposta:</b> Naquele tempo certamente não havia organizado um programa calculado que me levaria da papirologia e da arqueologia à ciência do mito. Assim aconteceu, e posso apenas falar retrospectivamente, de modo que noto que muitos daqueles primeiros estudos contribuíram para colocar em meu campo de visão ou em minhas mãos – a fazer com eu lesse, tocasse, mensurasse – materiais a partir do quais hoje se desejaria remontar a seus produtores e à cultura destes. <br />
A ciência do mito, como a compreendo, encontra-se numa situação análoga: dispomos de “materiais mitológicos" determináveis, fotografáveis, suscetíveis de análises filológicas; sobre o mito não só não sabemos nada, mas declaramos, por coerência lógica, não poder saber nada. O arqueólogo circunscreve um espaço no qual poderia também ter existido uma cultura, mas não é capaz de colocar os pés nesse espaço; o mitólogo circunscreve um mecanismo que poderia também ser movido pelo mito, mas não lhe é possível afirmar que o mito existe. <br />
Ocupar-me de arqueologia também significou viajar – para a Grécia, Turquia, Egito ou nos depósitos dos museus. Esse viajar, e às vezes o fato de morar por algum tempo em "terras antigas”, significou repetir – mas a invertendo em seu exato oposto – a experiência dos viajantes do século XVIII: viajar para aprender a <i>não </i>conhecer o mundo e para deste colecionar fragmentos que não remetem a nada senão a si mesmos, “materiais mitológicos", algo que Bachofen teria designado como “símbolos repousantes em si mesmos”. <br />
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<b>P.:</b> Em que consiste, para o senhor, a diferença entre<i> ciência do mito</i> e <i>ciência da mitologia</i>? E, em particular, como o senhor concebe <i>a ciência do mito</i>? <br />
<b>R.:</b> Se por <i>mito</i> compreendemos o <i>quid</i> à cuja existência a máquina mitológica alude como a seu presumido motor imóvel, e por <i>materiais mitológicos</i> os produtos historicamente verificáveis da máquina, a ciência do mito é uma típica ciência daquilo que historicamente não existe, enquanto a ciência da mitologia é o estudo dos materiais mitológicos enquanto tais. A ciência do mito, em minha perspectiva, tende a realizar-se como ciência das reflexões sobre o mito, portanto, como análises das diversas modalidades de não-conhecimento do mito. A ciência da mitologia, pelo fato de consistir no estudo dos materiais mitológicos "enquanto tais”, tende a realizar-se sobretudo como ciência do funcionamento da máquina mitológica, portanto, como análises da interna e autônoma circulação linguística que torna mitológicos aqueles materiais. Uso a palavra <i>mitologia</i> para indicar essa circulação linguística e os materiais que a documentam. <br />
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<b>P.:</b> De <i>Literatura e mito</i> (Einaudi, Turim, 1968) a <i>Materiais mitológicos </i>(Einaudi, Turim, 1979), o senhor lembrou da influência direta de Karl Kerényi sobre sua formação de estudioso de mitologia. <br />
Para o senhor, qual é a parte mais viva da produção de Kerényi e qual o aspecto dela que permanece como mais importante para a atividade teórica que o senhor desenvolve atualmente? <br />
<b>R.: </b>A produção de Kerényi tem uma fundamental compacidade de contradições que lhe garante vitalidade. Ao especificar o que acredito mais ter aprendido com ele, devo fazer referência à resposta precedente. Considerar a mitologia uma interna e autônoma circulação linguística, algo peculiar a determinados materiais, significa, de minha parte, colocar-me fora de correntes importantes e talvez prevalentes da linguística contemporânea, para as quais os denominados materiais mitológicos são apenas <i>textos</i> aos quais se atribui a qualificação "mitológicos" somente porque se está, com um erro de método, hipnotizado por uma de suas inumeráveis possibilidades de leitura, e esta seria privilegiada como se dispusesse de uma intrínseca objetividade. Esse “erro de método" em mim é originado por Kerényi e por sua antropologia da qual, ao menos desse ponto de vista, partilho. Não creio na existência do mito (uso a palavra "creio” no sentido mais forte, porque se trataria justamente de um ato de fé); pelo contrário, estou convencido de que para mim, hoje, o melhor modo de colocar-me diante dos mecanismos e das minhas produções – e também das de outros, antigos ou contemporâneos – consiste em reconhecer em algumas dessas produções uma linguagem não redutível a outras, absolutamente autônoma, "repousante em si mesma” (Bachofen), dotada de outras características definíveis com aproximações extremamente vagas caso se recorra – como é inevitável para <i>defini-las</i> – a outra linguagem. <br />
O resultado disso é que continuo a considerar apropriada a analogia kerényiana entre a mitologia e a música, e que acentuei (ou ao menos tornei mais explícito do que Kerényi acharia oportuno) o critério kerényiano segundo o qual toda produção nesse campo é verdadeiramente científica se a crítica – no sentido kantiano da palavra – que aí atua for sobretudo autocrítica. A partir de Kerényi aprendi a possibilidade de perceber o peso da mitologia, a necessidade interna aos materiais mitológicos, sem por isso ter de acreditar no mito como em um <i>quid </i>que "é dinâmico, tem um poder, apreende a vida e a plasma" (W.F. Otto). Além disso: aprendi o sentido da distância em relação à mitologia ou às mitologias dos antigos ("Há ainda muito que separa os lábios da borda do cálice...”), que, todavia, não reduz a consciência de que aquele objeto distante nos diz respeito íntima e pessoalmente. Não sustento <i>conhecer a mitologia</i> de antigos ou modernos; sustento que a cientificidade de minha aproximação dos materiais mitológicos e das reflexões sobre o mito consista sobretudo no arbítrio existencial subjacente às palavras “para mim, hoje, o melhor modo de me colocar diante...”. <br />
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<b>P.:</b> Uma pergunta à queima-roupa: qual a influência da obra de Jung sobre o senhor? E ainda: há partes das obras de Jung a partir das quais o senhor sente ser possível extrair alguma lição metodológica e também algo mais do que uma lição metodológica? <br />
<b>R.: </b>Quando comecei a estudar materiais mitológicos, símbolos, provas metodológicas de ciência do mito, no fim dos anos 1950, os textos de Jung me emocionavam muito, mais do que os de Kerényi. "Inconsciente coletivo”, “arquétipo", “mandala”, pareciam-me palavras de sabedoria. Em 1957, durante o período que passei no monastério da Transfiguração, no Metéora da Tessália, para tentar estudar o neoplatonismo em relação com a religiosidade greco-ortodoxa, havia levado comigo os livros de Frobenius e de Propp, entre os quais procurava eliminar as contradições provenientes de Jung. Meus primeiros escritos nesse âmbito ("As conexões arquetípicas", em <i>Archivio Internazionale di etnografia e preistoria</i>, 1958; "Sobre o fato milagroso”, <i>idem</i>, 1959) são, em muitos aspectos, junguianos, mesmo se já a partir de então eu sentia certo mal-estar em relação ao "arquétipo" como forma vazia de uma figura perfeitamente acabada, e procurava remediar isso com o modelo das “conexões arquetípicas": constantes – diria hoje – linguísticas, normas obrigatórias de composição ao invés de figuras orgânicas numa galeria de retratos. <br />
Então, pouco a pouco, Kerényi se tornou o <i>magister </i>e, desde quando o conheci pessoalmente, e passei a estudá-lo de forma especial, me levou sempre para mais longe de Jung. As próprias "conexões arquetípicas" que, com a vocação moralista dos 16-17 anos, eu julgava como “valores” gnosiológicos, tornaram-se uma espécie de indecência emocional – como caminhar nu pela rua – que não é bom dizer e fazer, mesmo se não se consiga deixar de levá-las em conta quando se escreve o próprio autorretrato. <br />
Na sequência, as coisas ficaram cada vez mais complicadas: eu gosto, não gosto, enfim, não posso dizer se gosto ou não. Hoje, digo que gosto pouco daquilo que em Jung implique “Eu sei...”. Não porque não seja possível dizê-lo sem ser uma pessoa respeitável, mas porque é um pouco como um pastiche. <br />
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<b>P.:</b> A partir de 1969 o senhor estava trabalhando em uma já "mitológica" primeira edição italiana do <i>Mutterrecht</i> de Bachofen, que sairá pela Einaudi. Pode nos dizer o que Bachofen representou e representa para o senhor? <br />
<b>R.:</b> Para responder com uma tirada, poderia dizer que Bachofen é há muito tempo meu Salgari.<a href="https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5846467664559625160#_ftn1">[1]</a> É claro, a maior parte da produção de Bachofen constitui um esplêndido romance mitológico. Nele há escritura e aquele gosto por conhecer por composição que W. Benjamin celebrou com as palavras “uma profecia científica". Não há, em Bachofen, a consciência de vidência que lhe foi atribuída nos primeiros decênios do século XX pela direita da <i>Bachofen-Renaissance</i>, mas, pelo contrário, há uma segurança patrícia (e também humor tétrico) ao compor por vontade própria e com arbítrio solitário os inumeráveis materiais da própria coleção. No <i>Ensaio sobre o simbolismo funerário dos antigos</i> esses materiais são sobretudo analisados como “símbolos repousantes em si mesmos”. No <i>Direito materno</i>, com um procedimento peculiar do romance histórico (que é, por sua natureza, romance mitológico), a práxis compositiva determina dois processos: o mundo-coleção dos símbolos repousantes em si mesmos é acionado graças à presença de testemunhos que são as categorias lógicas do direito, identificadas com as estruturas da cognoscibilidade da história; a cognoscibilidade – por estruturas jurídicas – da história é acionada pelo peso de uma coleção de símbolos que, pelo fato de ser arbitrariamente ordenada pelo juiz de certa forma, adquire assim um peso específico. <br />
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<b><br /></b><span style="font-size: x-small;"><b>Nota (de Andrea Cavalletti, organizador da edição): </b><br />Não muito disfarçado no transcorrer da entrevista, o “autorretrato” finalmente aparece de forma decisiva neste texto, um dos últimos que Jesi deixou. Não conhecemos o autor das perguntas, mas podemos estar certos de que Jesi ao menos as reelaborou, se não as escreveu. Com palavras que lembram muito de perto o início do ensaio sobre a <i>História de Susana</i>, ele volta à mitologia como linguagem e coloca “o modelo máquina mitológica” no centro do próprio laboratório. Volta a seu início, quando com apenas quinze anos publicava seu primeiro ensaio na prestigiosa revista do <i>Oriental Institute</i> da Universidade de Chicago, lembra do encontro com Kerényi e do distanciamento da influência junguiana, e se delonga sobretudo sobre o método de conhecimento por composição. Os numes tutelares de sua última pesquisa, sempre suspensa entre conhecimento e romance, eram Benjamin e Bachofen. Com a repentina morte de Jesi, em 17 de junho de 1980, permaneceu incompleta, junto com seu estudo “benjaminiano” Tradução e duplicidade das linguagens, também seu “Salgari”, isto é, a "tradução anotada e comentada” do Mutterrecht. Dela restam alguns capítulos na atual versão einaudiana do Matriarcato (sob os cuidados de G. Schiavoni, 1988), e também um amplo testemunho em seu genial <i>Bachofen</i>, publicado postumamente, em 2005, pela Bollati Boringhieri. <br />O texto apareceu pela primeira vez, sob minha organização, em Alias, 30, 28/07/2007, p. 21. </span> <span style="font-size: x-small;"></span></div>
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<span style="font-size: x-small;"><br /><br /><a href="https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=5846467664559625160#_ftnref1">[1]</a> N.T.: Referência a Emilio Salgari (1862-1911), um dos mais famosos escritores italianos de romances de aventura e históricos. </span></div>
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<span style="font-size: x-small;">Original em: Furio Jesi.<i> </i>"Quando Kerényi mi distrasse da Jung"<i> In.: </i>Furio Jesi. <i>Il tempo della festa. A cura di Andrea Cavalletti. </i>Roma: Nottetempo, 2013. pp. 223-231.</span></div>
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<span style="font-size: x-small;">Tradução: Vinícius Nicastro Honesko </span></div>
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