quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008
domingo, 10 de fevereiro de 2008
A Ceia
Tive um sonho. Estávamos em Paris, participando do Congresso Mundial de Escritores. Depois da última sessão, em 5 de junho, Alfredo Bryce Echenique nos convidou para cear em seu apartamento, localizado no 8bis, 2º andar, lado esquerdo, rua Amyot – a Julio Ramón Ribeyro, Miguel Rojas-Mix, Franz Kafka, Bárbara Jacobs e a mim. Como em qualquer grande cidade, em Paris há ruas difíceis de encontrar; mas a rua Amyot é fácil para quem desce na Estação Monge do metrô e depois, do jeito que puder, pergunta pela rua Amyot. Às dez da noite, ainda com sol, nos encontrávamos já todos reunidos, menos Franz, que tinha dito que antes de chegar passaria para pegar uma tartaruga que desejava me dar de presente como lembrança da rapidez com que o Congresso tinha se desenrolado. Por volta das onze e quinze telefonou para dizer que estava na Estação Saint-Germain-des-Prés e perguntou se Monge era na direção de Fort d’Aubervilliers ou na direção de Mairie d’Ivry. Acrescentou que pensando bem teria sido melhor pegar um táxi. À meia-noite telefonou novamente para informar que já havia saído de Monge, mas que, em vez da saída certa, tomara a errada, e que tivera de subir 93 degraus para se dar conta no final de que as portas pantográficas de ferro que dão na rua Navarre estavam fechadas desde as oito e meia, mas que refizera o caminho para sair pela escada rolante e que vinha com a tartaruga, à qual estava dando água num café a três quadras de onde nos encontrávamos. Nós bebíamos vinho, uísque, Coca-Cola e Perrier. À uma da manhã telefonou para dizer que nos pedia desculpas porque tinha estado tocando a campainha do número 8 e que ninguém tinha respondido, que o telefone do qual falava estava a uma quadra e que já havia compreendido que o número do edifício não era 8, mas 8bis. Às 2 horas, a campainha soou. O vizinho de Bryce, que mora também no 2º andar, lado direito e não esquerdo, disse, vestido de roupão e meio alarmado, que havia poucos minutos um senhor tinha tocado insistentemente em seu apartamento; que quando por fim abriu a porta esse senhor, consternado sem dúvida pelo engano e por tê-lo obrigado a se levantar da cama, inventou que tinha deixado na rua uma tartaruga; que tinha dito que ia buscá-la; e nos perguntou se o conhecíamos.
Augusto Monterroso (Tradução Vilma Arêas e Samuel Titan Jr.)
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008
Poema de azar
Ninguém, absolutamente ninguém, deparar-se-á com este rastro
É morto de nascença, filho bastardo da escritura
Finalizarão o tempo e os mundos
Ele não será lido.
Nulidade saída de nulidade
Oca obstinação de alguém que já se sabe morto
Pistas ininteligíveis de um desconhecido
Acerto de contas com o infinito nada
Lance do acaso na jogatina metafísica da poesia...
Olhar espasmódico do lotófago em transe
Enquanto lhe observa, perplexo, um Odisseu-Leitor.
Gravura Francisco Goya y Lucientes.
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008
O eu, a matéria e a barata...
O inferno é o meu máximo.
Eu estava em pleno seio de uma indiferença que é quieta e alerta. E no seio de um indiferente amor, de um indiferente sono acordado, de uma dor indiferente. De um Deus que, se eu amava, não compreendia o que Ele queria de mim. Sei, Ele queria que eu fosse o seu igual, e que a Ele me igualasse por um amor de que eu não era capaz.
Por um amor tão grande que seria de um pessoal tão indiferente - como se eu não fosse uma pessoa. Ele queria que eu fosse com Ele o mundo. Ele queria minha divindade humana, e isso tivera que começar por um despojamento inicial do humano construído.
E eu dera o primeiro passo: pois pelo menos eu já sabia que ser um humano é uma sensibilização, um orgasmo da natureza. E que, só por uma anomalia da natureza, é que, em vez de sermos o Deus, assim como os outros seres O são, em vez de O sermos, nós queríamos vê-Lo. Não faria mal vê-Lo, se fôssemos tão grandes quanto Ele. Uma barata é maior que eu porque sua vida se entrega tanto a Ele que ela vem do infinito e passa para o infinito sem perceber, ela nunca se descontinua.
Eu dera o primeiro grande passo. Mas o que me acontecera?
Eu caíra na tentação de ver, na tentação de saber e de sentir. Minha grandeza, à procura da grandeza do Deus, levara-me à grandeza do inferno. Eu não conseguia entender a Sua organização senão através do espasmo de uma exultação demoníaca. A curiosidade me expulsara do aconchego - e eu encontrava o Deus indiferente que é todo bom porque não é ruim nem bom, eu estava no seio de uma matéria que é a explosoão indiferente titânica. Uma titânica indiferença que está interessada em caminhar. E eu, que quisera caminhar com ela, ficara enganchada pelo prazer que me tornava apenas infernal.
A tentação do prazer. A tentação é comer direto na fonte. A tentação é comer direto na lei. E o castigo é não querer mais parar de comer, e comer-se a sim próprio que sou matéria igualmente comível. E eu procurava a danação como uma alegria. Eu procurava o mais orgíaco de mim mesma. Eu nunca mais repousaria: eu havia roubado o cavalo de caçada de um rei da alegria. Eu era agora pior do que eu mesma!
Nunca mais repousarei: roubei o cavalo de caçada do rei do sabath. Se adormeço um instante, o eco de um relincho me desperta. E é inútil não ir. No escuro da noite o resfolegar me arrepia. Finjo que durmo mas no silêncio o ginete respira. Não diz nada mas respira, espera e respira. Todos os dias será a mesma coisa: já ao entardecer começo a ficar melancólica e pensativa. Sei que o primeiro tambor na montanha fará a noite, sei que o terceiro já me terá envolvido na sua trovoada.
E ao quinto tambor já estarei incosciente da minha cobiça. Até que de madrugada, aos últimos tambores levíssimos, me encontrarei sem saber como junto a um regato, sem jamais saber o que fiz, ao lado da enorme e cansada cabeça de cavalo.
Cansada de quê? Que fizemos nós, os que trotam no inferno da alegria? Há dois séculos que não vou. Da última vez que desci da sela enfeitada, era tão grande a minha tristeza humana que jurei que nunca mais. O trote porém continua em mim. Converso, arrumo a casa, sorrio, mas sei que o trote está em mim. Sinto falta como quem morre. Não posso mais deixar de ir.
E sei que de noite, quando ele me chamar, irei. Quero que ainda uma vez o cavalo conduza o meu pensamento. Foi com ele que aprendi. Se é pensamento esta hora entre latidos. Os cães latem, começo a entristecer porque sei, com o olho já resplandecendo, que irei. Quando de noite ele me chama para o inferno, eu vou. Desço como um gato pelos telhados. Ninguém sabe, ninguém vê. Apresento-me no escuro, muda e em fulgor. Correm atrás de nós cinqüenta e três flautas. à nossa frente uma clarineta nos alumia. E nada mais me é dado saber.
De madrugada eu nos verei exaustos junto ao regato, sem saber que crimes cometemos até chegar a madrugada. Na minha boca e nas suas patas a marca do sangue. O que imolamos? De madrugada estarei de pé ao lado do ginete mudo, com os primeiros sinos de uma Igreja escorrendo pelo regato, com o resto das flautas ainda escorrendo dos cabelos.
A noite é a minha vida, entarece, a noite feliz é a minha vida triste - rouba, rouba de mim o ginete porque de roubo em roubo até a madrugada eu já roubei, e dela fiz um pressentimento: rouba depressa o ginete enquanto é tempo, enquanto ainda não entardece, se é que ainda há tempo, pois ao roubar o ginete tive que matar o Rei, e ao assassiná-lo roubei a morte do Rei. E a alegria do assassinato me consome em prazer.
Eu estava comendo a mim mesma, que também sou matéria viva do sabath.
Clarice Lispector. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, pp. 126-129.