Se há um remanescente da tradição do proletariado oitocentista no séc. XXI, ele certamente não será encontrado nas indústrias assepticamente automatizadas (ou, para usar de um termo corrente, parques tecnológicos de viés toyotista). Não que a exploração não seja mais a condição de manutenção global e pedra de toque para avaliação do capitalismo do presente: o trabalho sujo de produção da mais-valia foi simplesmente deslocado para eixos de total desregulamentação representados seja na informalidade, seja no sub-emprego precarizado com parcas “garantias formais”. Entretanto, com o ocaso da figura dos sindicatos e de todo vínculo (para alguns marxistas: orgânico) entre trabalhadores, o boteco (botequim, bar, birosca, bodegas e significantes afins) incorpora um dos últimos redutos de comunidade entre os deserdados. É nele que sonâmbulos consomem-se no transe etílico em meio ao cheiro de frituras, balcões de fórmicas, mesas de sinuca, petiscos boiando na gordura reaproveitada e muita fumaça de cigarros baratos. No referencial semântico de botequim, em sentido genuíno e estrito, não devemos incluir o grande número de lojas temática que simulam a simplicidade ou rusticidade proletária para o consumo de desavisados turistas da pequena e média burguesia. Estes não-lugares se limitam a estilizar um ambiente da terna e heróica boemia proletária de um capitalismo industrial edulcorado: com suas imitações de gaiola, cervejas e chope tradicionais, grupos de choro contratados e pequenas quinquilharias de coleção (antigas flâmulas de clubes, fotos em branco e preto, placas com ditos populares e mensagens sacanas sobre o fiado). Museus para pseudo-intelectuais onanisticamente saudosos. Ao contrário, o boteco genuíno é a zona limiar onde quem entra sabe que correrá riscos factíveis de não voltar para casa. Aliás, seu freqüentador médio já não está inserido numa estrutura familiar estável, em regra nem a possui. O destemor, a carência e a brutalidade formam ali uma conjunção saturada de tensões (para lembrar de um dos únicos filósofos que costumava freqüentar os genuínos de seu tempo). Não há espaço para estilizações. Não é à toa que só se localizam nas periferias ou nas regiões decadentes. É o cru e o não intelectual da vida; uma negação e sintoma radical das relações materiais de nosso tempo. Território onde aqueles que nada têm a perder a não ser suas algemas, - que lhes continuam a aferroar -, bebem a mais barata das bebidas sonhando com a mais magnífica das desforras.
Imagem. Le Café de nuit - 1888 (V. Van Gogh)