sábado, 28 de junho de 2008

Bares proletários


Se há um remanescente da tradição do proletariado oitocentista no séc. XXI, ele certamente não será encontrado nas indústrias assepticamente automatizadas (ou, para usar de um termo corrente, parques tecnológicos de viés toyotista). Não que a exploração não seja mais a condição de manutenção global e pedra de toque para avaliação do capitalismo do presente: o trabalho sujo de produção da mais-valia foi simplesmente deslocado para eixos de total desregulamentação representados seja na informalidade, seja no sub-emprego precarizado com parcas “garantias formais”. Entretanto, com o ocaso da figura dos sindicatos e de todo vínculo (para alguns marxistas: orgânico) entre trabalhadores, o boteco (botequim, bar, birosca, bodegas e significantes afins) incorpora um dos últimos redutos de comunidade entre os deserdados. É nele que sonâmbulos consomem-se no transe etílico em meio ao cheiro de frituras, balcões de fórmicas, mesas de sinuca, petiscos boiando na gordura reaproveitada e muita fumaça de cigarros baratos. No referencial semântico de botequim, em sentido genuíno e estrito, não devemos incluir o grande número de lojas temática que simulam a simplicidade ou rusticidade proletária para o consumo de desavisados turistas da pequena e média burguesia. Estes não-lugares se limitam a estilizar um ambiente da terna e heróica boemia proletária de um capitalismo industrial edulcorado: com suas imitações de gaiola, cervejas e chope tradicionais, grupos de choro contratados e pequenas quinquilharias de coleção (antigas flâmulas de clubes, fotos em branco e preto, placas com ditos populares e mensagens sacanas sobre o fiado). Museus para pseudo-intelectuais onanisticamente saudosos. Ao contrário, o boteco genuíno é a zona limiar onde quem entra sabe que correrá riscos factíveis de não voltar para casa. Aliás, seu freqüentador médio já não está inserido numa estrutura familiar estável, em regra nem a possui. O destemor, a carência e a brutalidade formam ali uma conjunção saturada de tensões (para lembrar de um dos únicos filósofos que costumava freqüentar os genuínos de seu tempo). Não há espaço para estilizações. Não é à toa que só se localizam nas periferias ou nas regiões decadentes. É o cru e o não intelectual da vida; uma negação e sintoma radical das relações materiais de nosso tempo. Território onde aqueles que nada têm a perder a não ser suas algemas, - que lhes continuam a aferroar -, bebem a mais barata das bebidas sonhando com a mais magnífica das desforras.



Imagem. Le Café de nuit - 1888 (V. Van Gogh)

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Fragmento nômade



... Seriam apenas dois dias de caminhada até o campo dos Lotófagos. Percorremos em cinco. Era extrema a lassidão com que retornávamos ao local de nosso primeiro deslumbre, e mesmo esse torpor, que acometia desde o mais insignificante osso de nossos corpos, só poderia ter tido sua causa nas experiências vivenciadas naquelas paragens. Era a abstinência sentida, o vazio nos apresentado enquanto tal. Era preciso obturá-lo. Os lotófagos possuíam o que desejávamos com todo vigor da vida, mesmo ao preço dela.

sábado, 7 de junho de 2008

Elucubrações sobre a indi('o's)pensável indi(o)gestão

Pensável gestão dos índios? Indispensável gestão dos índios? Gestão indispensável dos índios? Gestão pensável dos índios? Ou apenas indigestão indispensável aos não acostumados às práticas antropofágicas? Quantos paradoxos sobram para os mandachuvas...

domingo, 1 de junho de 2008

Idéia do fim...


- Talvez um pouco de divagação seja aqui a solução entrópica. Desconexão. O tratamento é infindável. Própria perversão. Descontinuidade.

- Mas, a escrita que escapa ao fim da escrita não suporta pensar o fim. Silêncio.

- Não posso suportar o silêncio. Penso o fim.

- Instantes de fim, fins...

- Mas qual é o fim? Já não sei mais. Talvez existam fins.

- Fins para tudo sei que tem, mas talvez haja fim para o fim. Acho que é como Blanchot dizia da espera. Certamente é sempre espera pela espera... Talvez o fim deva ser tratado como o fim do fim do fim do fim.... Mas não sei.

- Angústias sempre surgem. Talvez seja o tempo.

- Quiçá...

- Escuta...

- Escuto.

- Há quanto tempo está angustiado.

- Não sei. Talvez tempo demais.

- Demais.

- Não, tempo.

- Interessante, parece-me que a vida não é tempo, mas a angústia sim... não sei mais quais limites para o tempo, para angústia, para vida... acho que você me angustia.

- Pode ser.

- Não, não pode ser.

- Quanta bobagem você fala.

- Falo.

- Podia silenciar.

- Não, falo, conto, narro, pretendo não parar... encerro com a morte.

- Então encerre.

- Não. Vivo.

- Não, está morto, desde sempre...

- Não te entendo.

- Não é pra entender, morre...