E no entanto, também quem estimo e amo,
com quem tenho em comum a alma
por tanta parte, sabe, da língua, o externo
valor de história, como
se a história carregasse ao uno, a um supremo
ponto que nivela toda paixão,
como se o seu fim fosse a homologação
da alma! Não, a história
que será não é como aquela que foi.
não consente juízos, não consente ordens,
é realidade irrealizada.
E a língua, se é fruto dos séculos contraditórios,
contraditória – se é fruto dos primórdios
tenebrosos – se integra, ninguém disso discorda,
com aquilo que será, e que ainda não é,
E este seu livre mistério, riqueza
infinita, nela quebra,
agora, todo limite alcançado, toda forma lícita.
Queimar as instituições,
estupenda esperança para quem agora geme,
é uma esperança que as reais paixões
que nascerão não pode prever, nem os sons
novos das suas palavras.
Pier Paolo Pasolini. La Religione del mio tempo. Milano: Garzanti Editore, 2006. pp. 156-157 (Tradução: Vinícius N. Honesko)
terça-feira, 31 de março de 2009
sexta-feira, 27 de março de 2009
Sobre “não-conformismos” conformistas
A sociedade é integral, antes mesmo de ser governada de modo totalitário. Sua organização envolve mesmo aqueles que a combatem e impõe norma à sua consciência. Mesmo os intelectuais que têm à mão todos os argumentos políticos contra a ideologia burguesa sucumbem um processo de estandartização, que – não obstante um conteúdo crassamente oposicionista -, pela disposição a também se acomodarem de sua parte, de tal maneira os aproxima do espírito predominante, que seu próprio ponto de vista se torna objetivamente cada vez mais contingente, dependendo apenas de frágeis preferências ou de sua avaliação de suas próprias chances. O que, de um ponto de vista subjetivo, a eles parece radical, obedece objetivamente em tudo e por tudo à parte do esquema reservada para seus pares, de tal sorte que seu radicalismo se reduz a um prestígio abstrato, à legitimação daquele que sabe a favor de quê outra contra quê um intelectual tem de estar nos dias de hoje. Os bens pelos quais optam são há muito tão reconhecidos, tão limitados em número e fixados na hierarquia dos valores, quanto os das fraternidades estudantis. Ao mesmo tempo que investem contra o Kitsch oficial, suas convicções, como nas criança obedientes, estão orientadas para uma alimentação pré-selecionada, para os clichês da ojeriza ao clichê. (...) O fato de que todos os produtos culturais, mesmo os não-conformistas, estejam incorporados ao mecanismo de distribuição do grande capital, de que, no país mais desenvolvido, um produto que não obtiver o imprimatur da fabricação em massa praticamente não atingirá nenhum leitor, espectador ou ouvinte, recusa de antemão toda matéria ao anseio divergente. Até Kafka se torna uma peça de inventário do atelier sublocado. Os próprios intelectuais estão a tal ponto fixados no que é endossado na esfera isolada deles, que nada mais desejam além do que lhes é servido sob o rótulo de highbrow. Sua única ambição é “estar por dentro”, no que se refere ao sortimento cultural aceito, encontrar o slogan certo. A marginalidade dos iniciados é ilusão e mero período de espera. Vê-los como renegados é fazer-lhes honra demais; eles usam óculos com armação de tartaruga e lente que parecem vidraças em seus rostos medíocres unicamente para fazerem uma figura melhor a seus próprios olhos e melhor parecerem “brilhantes” na competição geral. Eles já são assim mesmo. A precondição subjetiva para a oposição, o juízo não enquadrado em normas, está em extinção, enquanto seus trejeitos continuam a ser efetuados como um ritual de grupo. (...)
Theodor Adorno. Reprodução Piper. Minima Moralia.
Imagem: Matthew Diffee. Che Guevara / Bart Simpson. 2oo2
domingo, 22 de março de 2009
Kynismós
(...) Essa estética da existência encontra-se distanciada daquela que era realizada pela ética estóica: lá tratava-se de estabelecer a correspondência regrada, harmoniosa, entre palavras e atos, a verdade a vida. Com os cínicos, tratava-se de fazer explodir a verdade na vida como escândalo. A relação entre a vida e a verdade é, ao mesmo tempo, a mais exigente e a mais polêmica. Não se trata de regular a própria vida segundo um discurso e de ter, por exemplo, um comportamento justo defendendo a própria idéia de justiça, mas de tornar diretamente legível no corpo a presença explosiva e selvagem de uma verdade nua, de fazer da própria existência o teatro provocador do escândalo da verdade.
GROS, Frédéric. A parrhesia em Foucault (1982-1984). In: GROS, Frédéric. (Org.) Foucault: a coragem da verdade. (Tradução Marcos Marcionilo). São Paulo: Parábola Editorial, 2004. p. 163.
Imagem: John William Waterhouse . Diogenes de Sínope. 1882.
terça-feira, 3 de março de 2009
Pequena nota sobre a negatividade
A negatividade como aproximação crítica ao mundo só pode partir do pressuposto inseguro e débil (mas tendo sua forma indissociavelmente ligada a estas duas características: insegurança e debilidade) da impossibilidade do fundamento. Atrelado a este, como selvagem rota de fuga a todo aditivo ou prótese de obturação, um princípio de indeterminação radical do ser. A negatividade é a pura vida em suas ambivalências não resolvíveis, não teorizáveis; a vida na mais completa finitude não cerimonial, impessoal, até mesmo banal. Nada mais que o ser-sem-Deus do mundo profano, e que nem por isso significará uma postura de niilismo militante, tampouco de ateísmo vulgar (lembrar aos incautos que ambos necessitam de fundamentos baseados em asserções plenas de positividade). A negatividade é o riso pirrônico e dionisíaco frente às solenes pretensões de verdade e civilização, sejam quais forem suas embalagens (à direita ou à esquerda, vanguardistas ou conservadoras, dependentes ou não da idéia de deuses). Um riso que facilmente caíra na gargalhada despudorada e trágica do bêbado que percebe que a vida, tal como o vinho, não durará a noite toda.