Diz-se que o ar é uma espécie de livro da vida onde qualquer sopro, por mais recôndito e obtuso que se queira, registra uma linha numa história impossível de ser contada em seus detalhes. Suspiros de cães moribundos, brisa de revoada de pássaros, tilintar de guizos de víboras, coaxar de sapos, folhas aos ventos do sul, trovões nervosos em noites escuras e, só por último, o mais vil dos sons, nossas palavras, entram nesse livro como que a compor uma língua cujo registro nos escapa por completo. Pensamos, nós, esses bichos que creem possuir 'a' linguagem, um domínio, mas nos danamos nos nossos tribunais fictícios: a razão, a memória. Uma linha balbuciada nesse livro, sondamos nosso lugar de caput enquanto o ar nos ignora, peremptoriamente nos ignora. Ulisses, um de nossos loquazes irmãos, sai ao mundo e, parado à beira-mar, chora ciente de que, também ele composto de humores, há de voltar ao grande alfabeto da natureza: são muito mais os mortos que os vivos e, logo, também os vivos tornam-se nada e nenhum dos nossos tribunais arrogantes poderá nos julgar; somos já poeira, somos já sal. E assim nos tornamos um verso (acho que o ar é mais poesia que prosa) borrado e esquecido na imensidão das estrofes desse livro a nós de todo ilegível.
terça-feira, 28 de julho de 2015
domingo, 19 de julho de 2015
Pequeno parágrafo sobre as cartas V
Li, numa bela e secreta história, que o maior problema dos mapas é que eles não resistem à ação do tempo. E, por não gravarem o tempo, são gravados de infâmia: os mapas circulam no universo do entretenimento, são os rabiscos de uma busca que, colocando-se diante de um olhar ansioso por movimento, tenta dar, num mundo sem bússolas ou rosa dos ventos, as marcas da mão divina. Mas o que é entreter-se defronte a um mapa? Como tenho-me entre um mapa? Porque talvez a única forma possível de estar entre seja mesmo um mapa que, com simplicidade, alguém poderia dizer que nada mais é que uma carta sempre a caminho de olhos outros. Os mapas podem assim ser folhas passíveis ao vento dos tempos. Certa vez, em algumas notas que se tornaram uma carta aos destinatários impossíveis do futuro, Fernando Pessoa gravou: "Toda a gente é a caricatura d'uma única pessôa que não existe. Nenhum de nós poderia figurar n'um romance realista. Somos todos falsos, inteiramente irreaes." A infâmia com a qual as cartas são gravadas é também o ônus que carregamos pela nossa irrealidade, por sucumbirmos, também nós, ao tempo. Falamos (mapeamos, cartografamos) porque certa vez acreditamos em nossa realidade e, desde então, tentamos escapar ao tempo. Mas, nesse escape está nosso entre-ter-se e tal é nossa condenação: estamos condenados à linguagem (nosso lápis à mesa de desenho). Aliás, resta-nos o contentamento de simplesmente poder dizer: somos irreais à medida em que falamos; somos irreais desde o momento em que, colocados diante da criação, a ela atribuímos nomes; somos irreais porque insistimos em cartografar um mundo; somos irreais pois a realidade é muito pouco para poder ser dita. Assim, estamos sempre entre a mão que endereça cartas e os olhos que nestas lerão apenas a distância que tentamos preencher, cartografar, com nosso toque de irrealidade: nossa linguagem - mais que feita carne, como num delírio divino - feita carta.
Imagem: Girolamo Ruscelli. Ptolemai Cognita. 1574
quinta-feira, 16 de julho de 2015
O "gag" em Chaplin - Pier Paolo Pasolini
O "gag" geralmente é um processo estilístico que quer tornar automática a ação: mais ou menos como a máscara do teatro da arte quer tornar automático o personagem.
O "gag" e a "máscara" movem-se entre dois polos (entre dois usos diametralmente opostos); de um lado, podem atingir o máximo do automatismo ao transformar a ação e o personagem em uma abstração que conta como elemento de uma representação não-natural; de outro, por meio da síntese que operam, de maneira necessária, diria, técnica, elas tornam essenciais a humanidade de uma ação ou de um personagem ao apresentá-lo em um momento repentino e inspirado que lhe dá a realidade no seu ápice (e o contexto, portanto, é, ainda que que sem nenhuma nota naturalística, realístico).
Geralmente os "gags" são disseminados nos filmes, interrompendo um tipo diverso de técnica narrativa. Somente os filmes cômicos mudos são constituídos apenas de gags. Estes são, portanto, um fenômeno técnico e estilístico em si. O cinema de Chaplin não se assemelha a nenhum outro cinema: é um outro universo.
No cinema de Chaplin não há tudo o que nos outros filmes há. Em relação ao restante do cinema, os filmes de Chaplin podem ser definidos apenas por subtração, em uma espécie de fenomenologia negativa. Falo naturalmente dos filmes mudos: nos filmes falados de Chaplin tal originalidade absoluta não existe mais, pois em comum com os outros filmes eles têm os diálogos, que são a negação dos "gags". Nos filmes falados, portanto, os "gags" não podem mais constituir a única estrutura estilística, mas se alternam com outra estrutura que é a audiovisual, na qual mímica ou pura presença física e palavra oral se integram e não podem, nesse sentido, evitar as "notas de naturalismo" sobre as quais falava, que são incompatíveis com as sínteses puramente realísticas dos "gags".
Pier Paolo Pasolini. La "gag" in Chaplin. In.: Empirismo Eretico. Milano: Garzanti, 2000. p. 256. Trad.: Vinícius N. Honesko (o texto foi originariamente publicado em: "Bianco e nero", fascicolo 3/4, marzo-aprile 1971)
segunda-feira, 13 de julho de 2015
Escrita e fúria
Escrever também pode ser um gesto de fúria, querida.
Os versos perdidos por não terem sido anotados na hora precisa,
o buquê de sempre-vivas tentando nos fazer crer
de que a morte não constrói, aos nossos olhos, seu império.
Tudo isso pode ser o som da escrita
(mas também é a voz da fúria).
Do sangue da castração do céu pelo tempo, seu filho,
vem a fúria das letras sempre-vivas
enquanto nós, homens,
adormecemos no império da morte.
Imagem: Orestes em Delfos ladeado por Atenas e Pílades entre as Eríneas e sacerdotisas do oráculo. aprox. 330 A.C.
sábado, 11 de julho de 2015
Quanto de vida há num lapso de memória?
Quanto de vida há num lapso de memória? Ouvi alguém me perguntar numa manhã cinzenta. Todos os pássaros passavam voando baixo. Eu não conseguia identificar as nuvens, era tudo cinza. E a insistência com que me punha a perguntar, agora eu, solitário e sem vozes esquecidas, me deixava à espreita de alguns passos que poderiam ser o próximo lapso. De memória ninguém vive, me punha a responder, de memória ninguém vive.
A vida corre pelos veios de uma árvore morta, você me diz. Pode ser, pode ser. Quanto de vida há numa árvore morta que sinaliza um antigo caminho para uma casa onde sonhávamos juntos? E agora já não posso perguntar a você quais os dias da semana que mais lhe agradam, quantas vezes você correu em volta da árvore quando era criança, quais eram os nomes de seus cachorros, quanto de seiva petrificada a árvore ainda pode conter.
Continuo andando por esse caminho e, na bifurcação que se abre perto da árvore, um lapso de memória me impede de saber qual das vias trilhar. Talvez à direita encontre vestígios da minha infância febril; ou à esquerda possa retomar as brincadeiras com que me satisfazia em manhãs como esta. Tudo é seiva morta, alguém me disse no sonho que acabara de sonhar. Toco adiante à esquerda ou fico parado? Tento recobrar a memória do lapso ou volto à corrida ao redor da árvore?
Todas as vozes que me dizem palavras que são coisas (ou são essas vozes coisas em forma de palavras?) são silenciadas nesse lapso de memória. Como voltar ao caminho da vida sem me ater à árvore morta? Percebo que na TV grita uma senhora por justiça. Perdeu o marido, que talvez tenha sido morto por alguém que trilhava uma caminho próximo ao meu. Aliás, todos nós estamos próximos nesse caminho em que a vida cabe num lapso de memória, não?
Você ainda me diz que talvez um dia parta para longe. Sei que não quer mais me dizer nada sobre os dias da semana, sobre as brincadeiras com seus cães sem nome, sobre aquela árvore que norteava nossa estrada. Você se foi para nunca mais e meu lapso de memória só me faz sentir que todo nunca também corre pelos veios da árvore morta. E agora já sei qual é a árvore e, com uma pedra de ponta, gravo nossos nomes em sua casca umedecida pela neblina. Também eu agora vou e sinto que vamos no mesmo passo mas muito distantes. Talvez eu tenha pegado o caminho da esquerda enquanto você ia pelo da direita.
Agora escrevo para você no silêncio das letras que preenchem este caderninho sujo pelas algas da casca da árvore e, mesmo que de memória ninguém viva, nada parece insinuar respostas: quanto de vida há num lapso de memória?
sábado, 4 de julho de 2015
Silêncio em coisas
Nessa minha linguagem nada
é tão doce que não possa
dizer-se amargo.
De um riso embalado em lágrimas,
toques entre letras deitam sons
no silêncio.
Mudo silêncio de todas as coisas
desde sempre desenhadas
por meu sopro.
Imagem: Pieter Bruegel, o velho. Provérbios holandeses. 1559. Gemäldegalerie, Berlim.
quarta-feira, 1 de julho de 2015
Memórias de amor
Aquilo que um dia ousamos chamar amor
ousa, no mundo dos nomes, o silêncio.
Poemas falhos em terra de sonho,
espumas revoltas no sono dos mares.
Quem dera a memória pudesse algo
contra o silêncio e os olvidos do amor.
Sonhos de mar em terra de poemas,
revoltas de espumas na vida prosaica.
Tantos anos e nenhum poema disse o amor.
Só se somam formas e apelativos - o nome -
sempre atrasados no silêncio da caneta.
(Poeta, insista em transfigurar o papel!)
Nenhuma voz ousa o silêncio do amor,
nem a imemorável Beatriz um dia mostrou-se
ao seu Dante que só ouvia olvidos de Virgílio.
(Por que memória quando tudo há de escorrer?)
Desfaça-se a vida em ritmo poético
pois sei que os nomes só nos dizem
os silêncios que ousam o amor.
E tudo se vai em poemas falhos:
terra, mares, sonhos e qualquer memória
que se queira inesquecível.
Imagem: Eugène Delacroix. A barca de Dante. 1822. Museu do Louvre, Paris.