domingo, 23 de setembro de 2007

O mistério da economia

Il trionfo della divina provvidenza
Pietro da Cortona (1633-1639),
afresco no Palazzo Barberini, Roma

A preocupação que tinha guiado os Padres que primeiramente tinham elaborado a doutrina da oikonomia era, segundo toda evidência, aquela de evitar uma fratura do monoteísmo que teria reintroduzido uma pluralidade de figuras divinas e, com estas, o politeísmo. É para fugir desta conseqüência extrema da tese trinitária que Hipólito tem o cuidado de reafirmar que Deus é uno segundo a dynamis (isto é, na terminologia estóica da qual ele se serve, segundo a ousia) e tríplice apenas segundo a economia, e Tertuliano opõe com firmeza a Praxéas que a simples “disposição” da economia não significa de modo algum a separação da substância. O ser divino não é cindido, porque a triplicidade da qual falam os Padres se situa sobre o plano da oikonomia e não sobre aquele da ontologia.
A cesura que se tinha querido evitar a todo custo sobre o plano do ser reaparece, no entanto, como fratura entre Deus e a sua ação, entre ontologia e práxis. Uma vez que distinguir a substância ou a natureza divina da sua economia equivale a separar em Deus o ser e o agir, a substância e a práxis. É este o secreto dualismo que a doutrina da oikonomia insinuou no cristianismo, algo como um originário germe gnóstico, que não concerne tanto à cesura entre duas figuras divinas, quanto àquela entre Deus e o seu governo do mundo.
Tome-se a teologia que Aristóteles desenvolve ao fim do livro L da Metafísica. Distinguir, no Deus que é aqui descrito, entre ser e práxis seria simplesmente impensável. Se o Deus aristotélico move, como um motor imóvel, as esferas celestes, isto é porque esta é a sua natureza e não há nenhuma necessidade de hipostasiar uma especial vontade ou uma atividade particular dirigida ao cuidado de si e do mundo. O cosmo clássico – o seu “fado” – repousa sobre a perfeita unidade de ser e práxis.
É esta unidade que a doutrina da oikonomia põe radicalmente em questão. A economia através da qual Deus governa o mundo é, de fato, totalmente distinta do seu ser e não é dedutível deste. Pode-se analisar sobre o plano ontológico a noção de Deus, elencar-lhe atributos ou negar-lhe, como em teologia apofática, um a um todos os predicados para chegar à idéia de um ser puro, cuja essência coincide com a existência: mas isto não dirá rigorosamente nada da sua relação com o mundo nem de como ele teria decidido governar o curso da história humana. Como muitos séculos depois Pascal verá lucidamente para o governo profano, a economia não tem nenhum fundamento na ontologia e o único modo de fundá-la é esconder-lhe a origem (PASCAL I, p. 51)[1]. Por isso, tanto mais misteriosa quanto a natureza de Deus é agora a sua livre decisão de governo do mundo; o verdadeiro mistério, que “estava escondido por séculos em Deus” e que foi revelado aos homens em Cristo, não é aquele do seu ser, mas aquele da sua práxis salvífica: o “mistério da oikonomia”, portanto, segundo a decisiva inversão estratégica do sintagma paulino. O mistério que, a partir deste momento, não cessará de suscitar a maravilha e a desconfiança dos teólogos e dos filósofos, não é de natureza ontológica, mas prática.
Paradigma econômico e paradigma ontológico são, na sua gênese teológica, perfeitamente distintos e somente pouco a pouco a doutrina da providência e a reflexão moral procurarão, sem jamais plenamente conseguir, lançar uma ponte entre estes. Que o trinitarismo e a cristologia, antes de assumirem a forma dogmático-especulativa, tenham sido concebidos em termos “econômicos” é algo que continuará obstinadamente a assinalar o seu desenvolvimento sucessivo. A ética, em sentido moderno, com o seu cortejo de indissolúveis aporias, nasce, neste sentido, da fratura entre ser e práxis que se produz ao fim do mundo antigo e tem na teologia cristã o seu lugar eminente. Se a noção de livre vontade, de toda forma marginal no pensamento clássico, torna-se a categoria central primeiramente da teologia cristã e depois da ética e da ontologia da modernidade, isto é porque estas têm naquela fratura o seu lugar original e deverão com ela confrontar-se até o fim. Se a ordem do cosmo antigo “não é tanto vontade dos deuses, quanto a sua própria natureza, impassível e inexorável, portadora de todo bem e de todo mal, inacessível à prece [...] e muito parca em misericórdia” (SANTILLANA, p. II)[2], a idéia de uma vontade de Deus que, ao contrário, decide livre e providentemente as próprias ações e é até mesmo mais forte do que sua onipotência, é a prova inconfundível da quebra do fado antigo e, ao mesmo tempo, a tentativa desesperada de dar um fundamento à esfera anárquica da práxis divina. Desesperada porque vontade só pode significar: infundamento da práxis, ou seja, que não há no ser nenhum fundamento para agir.
[1] BLAISE PASCAL, Pensées, ed. Lafuma, Paris, Seuil, 1962.
[2] GIORGIO DE SANTILLANA, Fato antico e fato moderno, in "Tempo presente", VIII, n. 9-10, 1963.

(AGAMBEN, Giorgio. Il Regno e la Gloria. Per una genealogia teologica dell´economia e del governo. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2007. pp. 69-71. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

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