quinta-feira, 29 de novembro de 2007

A Consciência de Zeno

Henry Darger

A vida atual está contaminada até as raízes. O homem usurpou o lugar das árvores e dos animais, contaminou o ar, limitou o espaço livre. Mas o pior está por vir. O triste e ativo animal pode descobrir e pôr a seu serviço outras forças da natureza. Paira no ar uma ameaça deste gênero. Prevê-se uma grande riqueza... no número de homens. Cada metro quadrado será ocupado por ele. Quem se livrará da falta de ar e de espaço? Sufoco só de pensar nisto!

E infelizmente não é tudo.

Qualquer esforço de restabelecer a saúde será vão. Esta só poderá pertencer ao animal que conhece apenas o progresso de seu próprio organismo. Desde o momento em que a andorinha compreendeu que para ela não havia outra vida possível senão emigrando, o músculo que move as suas asas engrossou-se, tornando-se a parte mais considerável de seu corpo. A toupeira enterrou-se e todo o seu organismo se conformou a essa necessidade. O cavalo avolumou-se e seus pés se transformaram em cascos. Desconhecemos as transformações por que passaram alguns outros animais, mas elas certamente existiram e nunca lhes puseram em risco a saúde.

O homem, porém, este animal de óculos, ao contrário, inventa artefatos alheios ao seu corpo, e se há nobreza e valor em que os inventa, quase sempre faltam a quem os usa. Os artefatos se compram, se vendem, se roubam e o homem se torna cada vez mais astuto e fraco. Compreende-se mesmo que sua astúcia cresça na proporção de sua fraqueza. Suas primeiras máquinas pareciam prolongamentos de seu braço e só podiam ser eficazes em função de sua própria força, mas, hoje, o artefato já não guarda nenhuma relação com os membros. E é o artefato que cria a moléstia por abandonar a lei que foi a criadora de tudo o que há na Terra. A lei do mais forte desapareceu e perdemos a seleção salutar. Precisávamos de algo melhor do que a psicanálise: sob a lei do possuidor do maior número de artefatos é que prosperam as doenças e os enfermos.

Talvez por meio de uma catástrofe inaudita, provocada pelos artefatos, havemos de retornar à saúde. Quando os gases venenosos já não bastarem, um homem feito como todos os outros, no segredo de sua câmara qualquer neste mundo, inventará um explosivo incomparável, diante do qual os explosivos de hoje serão considerados brincadeiras inócuas. E um outro homem, também feito da mesma forma que os outros, mas um pouco mais insano que os demais, roubará esse explosivo e penetrará até o centro da Terra para pô-lo no ponto em que seu efeito possa ser o máximo. Haverá uma explosão enorme que ninguém ouvirá, e a Terra, retornando à sua forma original de nebulosa, errará pelos céus, livre dos parasitas e das enfermidades.



Italo Svevo. A Consciência de Zeno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. pp. 421-422. Tradução: Ivo Barroso.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

I´m so tired



I'm so tired, I haven't slept a wink
I'm so tired, my mind is on the blink
I wonder should I get up and fix myself a drink
No,no,no.

I'm so tired I don't know what to do
I'm so tired my mind is set on you
I wonder should I call you but I know what you would do

You'd say I'm putting you on
But it's no joke, it's doing me harm
You know I can't sleep, I can't stop my brain
You know it's three weeks, I'm going insane
You know I'd give you everything I've got
for a little peace of mind

I'm so tired, I'm feeling so upset
Although I'm so tired I'll have another cigarette
And curse Sir Walter Raleigh
He was such a stupid get.

You'd say I'm putting you on
But it's no joke, it's doing me harm
You know I can't sleep, I can't stop my brain
You know it's three weeks, I'm going insane
You know I'd give you everything I've got
for a little peace of mind
I'd give you everything I've got for a little peace of mind
I'd give you everything I've got for a little peace of mind.

(Lennon/McCartney)

terça-feira, 20 de novembro de 2007

O tecido quebradiço das ilusões. Nietzsche sobre a origem da arte e da linguagem


"vocês deveriam (...) aprender a rir, meus jovens amigos, a menos que vocês queiram permanecer pessimistas por inteiro; talvez vocês, enquanto sorridentes, em algum momento mandem todo consolo metafísico para o inferno".


"há apenas um mundo e ele é falso, cruel, contraditório, sedutor, sem sentido. (...) Um mundo assim é o verdadeiro mundo (...). Precisamos da mentira para triunfarmos sobre essa realidade, essa "verdade", i.e., para viver. (...) Que a mentira seja necessária para se viver é parte desse caráter terrível e questionável da existência"



Texto de Mirko Wischke disponível em


segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Aviso de naufrágio



O que será do destroço em que fui arremessado?
Sou consumido em suas cinzas de morte
Peço por socorro, clamo por saídas
Mas meus gritos não são capazes de ultrapassar os estrondos do mar

Já não sei se grito ou a voz moribunda e gutural
Que exalo submergindo nas águas
É um apelo animal frente ao predador
Ato grosseiro da natureza em dilaceração

Diluição.

EL GOLEM


Si (como el griego afirma en el Cratilo)
El nombre es arquetipo de la cosa,
En las letras de rosa está la rosa
Y todo el Nilo en la palabra Nilo.
Y, hecho de consonantes y vocales,
Habrá un terrible Nombre, que la esencia
Cifre de Dios y que la Omnipotencia
Guarde en letras y sílabas cabales.
Adán y las estrellas lo supieron
En el Jardín. La herrumbre del pecado
(Dicen los cabalistas) lo ha borrado
Y las generaciones lo perdieron.
Los artificios y el candor del hombre
No tienen fin. Sabemos que hubo un día
En que el pueblo de Dios buscaba el Nombre
En las vigilias de la judería.
No a la manera de otras que una vaga
Sombra insinúan en la vaga historia,
Aún está verde y viva la memoria
De Judá León, que era rabino en Praga.
Sediento de saber lo que Dios sabe,
Judá León se dio a permutaciones
de letras y a complejas variaciones
Y al fin pronunció el Nombre que es la Clave.
La Puerta, el Eco, el Huésped y el Palacio,
Sobre un muñeco que con torpes manos
labró, para enseñarle los arcanos
De las Letras, del Tiempo y del Espacio.
El simulacro alzó los soñolientos
Párpados y vio formas y colores
Que no entendió, perdidos en rumores
Y ensayó temerosos movimientos.
Gradualmente se vio (como nosotros)
Aprisionado en esta red sonora
de Antes, Después, Ayer, Mientras, Ahora,
Derecha, Izquierda, Yo, Tú, Aquellos, Otros.
(El cabalista que ofició de numen
A la vasta criatura apodó Golem;
Estas verdades las refiere Scholem
En un docto lugar de su volumen.)
El rabí le explicaba el universo
"Esto es mi pie; esto el tuyo; esto la soga."
Y logró, al cabo de años, que el perverso
Barriera bien o mal la sinagoga.
Tal vez hubo un error en la grafía
O en la articulación del Sacro Nombre;
A pesar de tan alta hechicería,
No aprendió a hablar el aprendiz de hombre,Sus ojos, menos de hombre que de perro
Y harto menos de perro que de cosa,
Seguían al rabí por la dudosa
penumbra de las piezas del encierro.
Algo anormal y tosco hubo en el Golem,
Ya que a su paso el gato del rabino
Se escondía. (Ese gato no está en Scholem
Pero, a través del tiempo, lo adivino.)
Elevando a su Dios manos filiales,
Las devociones de su Dios copiaba
O, estúpido y sonriente, se ahuecaba
En cóncavas zalemas orientales.
El rabí lo miraba con ternura
Y con algún horror. ¿Cómo (se dijo)
Pude engendrar este penoso hijo
Y la inacción dejé, que es la cordura?
¿Por qué di en agregar a la infinita
Serie un símbolo más? ¿Por qué a la vana
Madeja que en lo eterno se devana,
Di otra causa, otro efecto y otra cuita?
En la hora de angustia y de luz vaga,
En su Golem los ojos detenía.
¿Quién nos dirá las cosas que sentía
Dios, al mirar a su rabino en Praga?


Jorge Luis Borges



Imagem: L'Ange du foyer ou Le Triomphe du surréalisme.1937. Max Ernst.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

KARÚMI & MU-GA, MU-I




KARÚMI (a leveza)
‘karui’, adjetivo, é ‘leve’. Como uma pluma. Em seus últimos anos, dizem, Bashô insistia muito neste conceito. ‘Karúmi’ é não pesar a mão. Não deixar a arte aparecer, na obra de arte. ‘Karúmi’ é fazer as coisas de tal forma que o necessário e o arbitrário, que estão sempre indissoluvelmente ligados na obra de arte, não possam ser distinguidos. É conseguir dar a impressão que um haikai que levou muito tempo para atingir sua forma final pareça nascido na hora, ‘espontaneamente’. É ocultar a arte, fazer desaparecer o processo, fazer a arte parecer não-arte. ‘Karúmi’ é a qualidade que, dissolvendo e dissipando a fronteira entre natureza e cultura, faz o artefato cultura parecer e aparecer como um produto da natureza. ‘Heiter ist die Kunst’ límpida é a arte, disse o poeta alemão Schiller.
MU-GA, MU-I (o não-Eu, o não-fazer)
Intimamente ligados ao conceito de ‘karúmi’ os conceitos artísticos, mas religiosos na base, de ‘muga’ e ‘mu-i’. ‘Mu-ga’ é ‘não-Eu’. ‘Mu-i’ é não-Fazer’. São conceitos taoístas incorporados pelo Zen Budismo. ‘Mu-ga’ é ‘despersonalização”, a condição para a verdadeira criação artística, que se dá, pura, quando a ‘persona’, a máscara convencional do nosso eu cai e aflora a força original e indeterminada da nossa natureza, genérica e coletiva, impessoal e anônima. A arte ocidental (principalmente a poesia) sempre colocou ênfase exagerada na expressão do ‘eu’, tendência exacerbada pelo romantismo. ‘Mu-i’, ‘não-fazer’, é um conceito tipicamente taoísta. E é um princípio dinâmico. Um fazer taoísta é um fazer conforme o Tao, conforme a lógica intima do processo das coisas, (...) vale dizer, um não-fazer. No terreno da criação artística, ‘mu-i’ favorece a espontaneidade sábia, a entrega ao processo, a obliteração e anulação de um ego que quer fazer algo, dando lugar a um criar que se assemelha mais aos processos da natureza, um deixar-se ir, uma Abertura. Tributário desta concepção, o músico de vanguarda americano John Cage, que usa as indeterminações aleatórias do I-Ching, como método de disciplinamento (a mortificação) do Ego. A obra é um fruto de conjunções e conjunturas que independem de um eu que quer e, como quer, faz. Disse um sábio chinês: ‘faça as coisas como elas mesmas fariam, se pudessem'.




LEMINSKI, Paulo. Ventos ao vento. Rabiscos em direção a uma estética. In: Ensaios e anseios crípticos. (Organização e seleção Alice Ruiz e Áurea Leminski). Curitiba : Pólo editorial do Paraná : 1997. pp. 87-88. Foto: E. Erwitt.