Henry Darger
A vida atual está contaminada até as raízes. O homem usurpou o lugar das árvores e dos animais, contaminou o ar, limitou o espaço livre. Mas o pior está por vir. O triste e ativo animal pode descobrir e pôr a seu serviço outras forças da natureza. Paira no ar uma ameaça deste gênero. Prevê-se uma grande riqueza... no número de homens. Cada metro quadrado será ocupado por ele. Quem se livrará da falta de ar e de espaço? Sufoco só de pensar nisto!
E infelizmente não é tudo.
Qualquer esforço de restabelecer a saúde será vão. Esta só poderá pertencer ao animal que conhece apenas o progresso de seu próprio organismo. Desde o momento em que a andorinha compreendeu que para ela não havia outra vida possível senão emigrando, o músculo que move as suas asas engrossou-se, tornando-se a parte mais considerável de seu corpo. A toupeira enterrou-se e todo o seu organismo se conformou a essa necessidade. O cavalo avolumou-se e seus pés se transformaram em cascos. Desconhecemos as transformações por que passaram alguns outros animais, mas elas certamente existiram e nunca lhes puseram em risco a saúde.
O homem, porém, este animal de óculos, ao contrário, inventa artefatos alheios ao seu corpo, e se há nobreza e valor em que os inventa, quase sempre faltam a quem os usa. Os artefatos se compram, se vendem, se roubam e o homem se torna cada vez mais astuto e fraco. Compreende-se mesmo que sua astúcia cresça na proporção de sua fraqueza. Suas primeiras máquinas pareciam prolongamentos de seu braço e só podiam ser eficazes em função de sua própria força, mas, hoje, o artefato já não guarda nenhuma relação com os membros. E é o artefato que cria a moléstia por abandonar a lei que foi a criadora de tudo o que há na Terra. A lei do mais forte desapareceu e perdemos a seleção salutar. Precisávamos de algo melhor do que a psicanálise: sob a lei do possuidor do maior número de artefatos é que prosperam as doenças e os enfermos.
Talvez por meio de uma catástrofe inaudita, provocada pelos artefatos, havemos de retornar à saúde. Quando os gases venenosos já não bastarem, um homem feito como todos os outros, no segredo de sua câmara qualquer neste mundo, inventará um explosivo incomparável, diante do qual os explosivos de hoje serão considerados brincadeiras inócuas. E um outro homem, também feito da mesma forma que os outros, mas um pouco mais insano que os demais, roubará esse explosivo e penetrará até o centro da Terra para pô-lo no ponto em que seu efeito possa ser o máximo. Haverá uma explosão enorme que ninguém ouvirá, e a Terra, retornando à sua forma original de nebulosa, errará pelos céus, livre dos parasitas e das enfermidades.
Italo Svevo. A Consciência de Zeno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. pp. 421-422. Tradução: Ivo Barroso.