"O pensamento é ainda na criança, enquanto é criança, um estado de brincadeira. E o estado de brincadeira é sempre, na criança, um estado de graça”. José Bergamin. A decadência do analfabetismo.
Enquanto sonha com a família do comercial de margarina, com uma esposa que ainda não apareceu em sua história, filhos, talvez gatos e cães soltos no quintal, ele não escreve: trabalha com materiais de escrita, prepara suas aulas, deixa, ou melhor, esconde em um canto da memória sua origem e sua condição de marginal. Escrever e se aventurar eram sinônimos em sua vida, uma paixão consumia a outra, a escrita e o tremor da contingência, um estado infantil de graça em plena maturidade. Mas o tempo de casamentos - desfeitos - e quarentenas cibernetizadas levaram-no à lassidão e à poupança (econômica e existencial). Poupar-se para o melhores anos vindouros, poupar-se para quando a pessoa certa entrasse em sua vida, poupar-se para uma velhice saudável. Os tempos de digladiagem - digladiar e vadiar - haviam se encerrado e, com eles, a fissura da escrita. Menos um poeta inexpressivo em um nicho também inexpressivo, menos um marginal para ser caçado pela polícia ou pelos fascistas, entidades que há muito se indiferenciaram. A escrita fora substituída pelo cálculo e a vida pela espera, alistamento voluntário e febril às hostes dos servos da escatologia do futuro.
Porém, quando o demônio da meia noite e da carnificina bate-lhe à porta na forma do absurdo, ele, só e agoniado, lembra-se, e esta lembrança rápida e viva o salva. Sua madeleine é uma caixa de bóias, sim, a caixa de comidas, dessas que os caminhoneiros usam na lateral das carrocerias dos caminhões. Essas caixas, onde também estão alguns mantimentos, pratos e canecas esmaltadas, talheres e a velha faca de borracheiro.
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Sim, Reinaldo Moraes, não só as frases de caminhão podem nos salvar de desilusões amorosas ou existenciais, o acolhimento no meu caso veio da lembrança de uma cozinha portátil, que talvez expresse a minha condição inescapável no mundo, aquela da qual quero fugir - ou esconder - mas sempre retorno, a do exilado, sem lugar próprio, sem casa, condenado a errar. Aquele que instala - não constrói - acolhimentos provisórios durante a travessia, em lugares para os quais talvez nunca mais volte e provavelmente nunca mais serão por ele lembrados. Uma imagem de juventude que relampeja no momento crítico e perigoso de minha deserção.
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Era o maior entroncamento rodoferroviário do sul do país, lugar de muitas oficinas de caminhão e autopeças, casarios decaídos no centro antigo, arenitos e ventos, pois só com ventos incessantes as rochas do entorno adquiriram as formações mais inusitadas, sendo populares as que se assemelhavam a grande objetos cotidianos, como uma taça, o símbolo geológico da cidade. Passei a morar em um bairro do entorno, eram meus anos de faculdade, vivendo sozinho fora da casa em que passara minha infância. A cidade era uma rota necessária no trabalho de meu pai, caminhoneiro, que transportava material reciclado – cargas altas de papel velho – para São Paulo. Foi em meu novo bairro que ele abriu uma conta de bar na única rua próxima em que ele podia parar o caminhão, um casarão que durante as manhãs servia um café adoçado com pão, preparado por uma senhora atenciosa, mas à noite, e meu pai não sabia deste detalhe, virava um bar mal afamado, frequentado pelas pessoas que não podiam pagar o preço das doses de pinga vendidas mais ao centro. Foi ali que começou minha fama marginal, pois costumava levar colegas da faculdade, pessoas nascidas em famílias de classe média, para o único lugar que naqueles anos me deu crédito, um risca-facas perigoso da Avenida Souza Naves.
Quando estava muito cansado meu pai pedia para acompanhá-lo na viagem. Eu então deixava das modorrentas aulas de direito romano para atravessar a Régis Bittencourt, à época a Rodovia da Morte, com o Mercedes 1313, azul marinho, de propriedade do Sr. Albari, um senhorzinho com barriga d'agua, relógio e bijuterias douradas no pulso, que sofria com um filho dependente químico. O detalhe é que não dormíamos.
A lembrança que guardo comigo: um desjejum tomado à beira da rodovia, com o sol nascendo, a caixa de bóia aberta com as fumaças do café preto e de um virado de feijão. A noite e o dia eram contíguos, o mundo era vasto e o 1313 era uma nau.
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Voltar para a cidade dos arenitos, à rotina regrada e solar de um estudante de direito, ao lado de pessoas engomadas, todas em busca de seriedade e posições no Estado, sabendo que meu pai ainda continuaria a estrada de retorno, deixava-me muito angustiado. Foi nessa época que começou minha evasão, que provavelmente durará enquanto eu estiver vivo.
Também havia os livros velhos retirados da carga e vendidos nos sebos da cidade para eu conseguir ter alguns trocados, além do escambo pelos títulos que realmente eu queria ler. Minha relação com os livros no início da vida adulta foi a do desvio de carga, da interceptação ilegal, da troca clandestina. Mas, acima de tudo, do salvamento de brochuras antes de virarem uma pasta homogênea na fábrica de papel. Minha primeira biblioteca foi construída com o lixo.
Mas é quase manhã em minha memória. É o entorno de uma cidade, naqueles arrabaldes em que a rotina da roça sobrevive nas franjas urbanas. Há uma mata e um brejo ao fundo, há coaxar de sapos e ainda persistem vagalumes, sim, mesmo ao amanhecer e perto da rodovia, eles não sumiram de todo.
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Meu nome vem da estrada. Passar por várias cidades e possuir um nome comum nos anos 80, como João da Silva, era arriscar-se a ser levado para uma delegacia e ter de provar aos tiras que você, forasteiro, não era a mesma pessoa de um homônimo que ali descumpriu a lei, algo que não raro acontecia com meu pai, que também possui um nome comum, alguém que em um único dia poderia atravessar vários estados da federação, em tempos de sistemas estaduais independentes de identificação e quando a internet era algo impensável (os mapas amarelos serviam como GPS, assim como as cartas náuticas dos antigos). Ter um nome como Francisco Barbosa poderia significar prisões indesejáveis, além da suspeita constante que pesava sobre alguém sem origem nobre, calças furadas e tênis chinesinho, assistente de caminhoneiro. Um nome diferente significava não apenas diferenciação forçada, mas acima de tudo proteção contra confusões. Disso, desde o início, minha mãe me salvou. Do bullying entre meus pares, termo que não conhecia à época, defendia-me com socos e pontapés.
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O 1313 é só uma lembrança, meu pai não tem mais idade para atravessar a antiga Estrada da Morte sem dormir, é um trecho que faço hoje com a Mad Max (meu imaginário veículo pós-apocalíptico, apenas uma estilização pop para um ferro velho ambulante), descansando nos lugares que restam de nossas antigas paradas. Uma rodovia interestadual brasileira é uma rota forasteira e perigosa de passagem, mas para quem nela vive há sempre os lugares de abrigo, tão familiares quanto uma casa conhecida, onde se pode tomar um banho, descansar, permanecer. Tais lugares pouco a pouco estão desaparecendo, os antigos donos ou estão muito idosos ou já faleceram, transferindo a filhos que vendem estes antigos comércios para grandes franquias e conglomerados, onde não é possível permanecer sem fazer as honras obrigatórias ao capitalismo imperial de nosso tempo: consumir. Força motriz da uniformidade atroz que assola o mundo, cada vez mais disseminada. O Japonês da Serra do cafezal, da parmegiana em plena madrugada, famosa no trecho, que superava as parmegianas que vim depois a conhecer em São Paulo, com toda a poesia de um comércio japonês especialista em parmegianas, este restaurante, tão caro às minhas memórias de estrada, foi comprado pela rede Graal e transformado em uma loja de conveniência.
Não se pode edulcorar a forma capitalista que quase destruiu o corpo de meu pai, por anos atravessando insone milhares de quilômetros para levar material a ser reciclado, que virou novos utensílios hoje certamente já descartados. Esse capitalismo infernal não foi derrotado, foi conquistado e federado por forças de acumulação ainda mais predatórias e absolutas, sem lugar para arrabaldes ou marginais, sem lugar para improvisos e evasões. Mas um 1313, um Jacaré ou um Fenemê ainda trafegam como mamutes de uma era extinta, com suas caixas de boia. Ao lado do parque temático monstruoso, na estrada de terra, escondidos dos guardas, as tendas ciganas ou um circo mambembe teimam em aparecer, um bar antigo e uma sintonia camarada sobrevivem. Uma chama de vida, mesmo que de um vaga-lume perdido em um jardim cercado por casas e minifúndios, ainda alumia e insiste.
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Sim, era um escritor otimista e crédulo das insistências. Não sabia o que lhe esperava. Pasolini estava certo. Não só os vagalumes desapareceram de sua vida, e não convém criar metáforas distópicas com as faíscas dos cachimbos da minicraco instalada no quarteirão. Assim como os caminhoneiros lumpen de sua infância, mestres da improvisação, dos ilegalismos e do destemor, tornaram-se tão fascistas quanto a polícia militar que os perseguia.
jonnefer francisco barbosa 2/9/22