A A.F.
Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo
sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia
depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um
parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais
diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, desco-
bria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava
impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o
que fazer...
Herberto Helder
Já se disse que "existe história precisamente porque nenhum legislador primitivo pôs as palavras em harmonia com as coisas". Mas o que querem das coisas as palavras? Ou, melhor dizendo, o que queremos nós, com palavras, das coisas? O nome muito estrangeiro de Amor difunde uma multiplicação de mãos em meio às noites, numa plantação de espelhos, refletindo nossas imagens bêbadas de mãos, suor, toques, risos, sons, cores. Corremos sem sono, numa dança que emoldura os espelhos, para dentro da noite. Nenhuma harmonia entre palavras e coisas, só um frouxo deleite em que ousamos contar histórias que nos indicam não um futuro, mas um devir, um porvir a nós de todo desconhecido, a nós completamente estrangeiro. Não dizemos nenhum nome ao apontarmos com nossos dedos em uníssono a noite escura que se avoluma. Acabamos por nos dar conta de que todos os lugares continuam sendo no estrangeiro e, ainda assim, estamos aqui, nesta plantação de espelhos onde deitamos fora nossas distâncias e chamamos um superlativo que diz interior intimo meo. Desenhamos então um nome, intimidade, o qual nos contém por completo mas que é incapaz de nos retirar do estrangeiro. E nenhum legislador primitivo pode harmonizar este prazer que se alonga entre palavras e coisas pois permanecemos na noite, na difusão das mãos que, mais do que nomear, tentam segurar esta coisa, de nome estrangeiro, sempre em fuga e que a nós se mostra, sorridente, de espelho em espelho. A coisa, ou seu nome, não podemos segurar nem nomear e, talvez por isso, também corremos nós soltos, felizes, com um gosto doce na boca, neste desconhecido campo onde nos vemos per speculum et aenigmate, mas, ao mesmo tempo, sub specie aeternitatis.
Imagem: Hieronymus Bosch. Jardim das delícias terrestres (detalhe). 1500. Museo del Prado, Madrid.