quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Redescubramos a ética. Agamben: "Tentem viver segundo suas ideias"



Entrevista de Giorgio a Franco Marcoaldi

Em que acreditamos? Quais são as crenças civis, religiosas, políticas, científicas sobre as quais se estrutura a sociedade? A resposta mostra-se particularmente difícil em um mundo como o nosso, o qual vê as crenças tradicionais – objeto de uma constante erosão – transformarem-se em substitutivas, com a consequente propagação das mais diversas formas de superstição. Ou ainda, pelo contrário, o triunfo de um ceticismo e de uma indiferença que beiram o niilismo.
Tentaremos tratar da questão "crer, crença" afrontando-a desde diversos pontos de vista. E, para isso, pediremos a ajuda de um filósofo italiano de fama internacional: Giorgio Agamben. "Em nossa cultura existem dois modelos de experiência da palavra. O primeiro modelo é de tipo assertivo: dois mais dois são quatro, Cristo ressuscitou no terceiro dia, os corpos caem segundo a lei da gravidade. Esse gênero de proposições é caracterizados pelo fato de que dizem respeito sempre a um valor de verdade objetivo, à dupla verdadeiro-falso. E podem ser submetidas a verificação graças a uma adequação entre palavras e fatos, enquanto o sujeito que as pronunciam é indiferente ao êxito.
Existe, no entanto, um outro e imenso âmbito da palavra, do qual parece que nos esquecemos e que remete, para usar a intuição de Foucault, à ideia de “veridição". Nele, valem outros critérios, que não respondem à separação dura entre verdadeiro e falso. Nele, o sujeito que pronuncia certa palavra se coloca em jogo naquilo que disse. Melhor ainda, o valor de verdade é inseparável de seu pessoal envolvimento."


O sentido profundo do crer deveria ser procurado especificamente nesse segundo modelo?

Certamente. Mesmo se, ao longo do tempo, o triunfo do primeiro modelo, o assertivo, tem de fato apagado o segundo. Causam-me risos os confrontos, hoje muito em voga, entre crentes e não-crentes: verdadeiros diálogos entre surdos, visto que padres e cientistas partilham de visões opostas em relação ao mesmo modelo de verdade. Pouco importa que se discuta sobre leis físicas ou teológicas, que naturalmente elidem-se entre si. Trata-se, em todo caso, de proposições assertivas. A confusão entre aquilo que se pode crer, esperar e amar e aquilo que somos obrigados a considerar verdadeiro, hoje, nos paralisa.


Quando teria sido apagado o segundo tipo de experiência com a palavra?
Na tradição do Ocidente, foi Aristóteles a afirmar que a filosofia deve se ocupar apenas das proposições que podem ser verdadeiras ou falsas. Ainda que existisse, e exista, uma outra experiência da palavra: a da promessa, da oração, do comando, da invocação, e que foi excluída da reflexão filosófica. Naturalmente, isso não significa que não tenha continuado a agir: o direito e a religião se fundam sobre ela.

Um exemplo?

O mais importante de todos: São Paulo, que ao definir a palavra da fé não faz nenhuma referência a critérios de verdade, mas fala da proximidade entre coração e lábios. É significativo que, exceto uma vez, ele sempre use a expressão, por ele inventada, "crer em Jesus Cristo” e não, como seria normal em grego, crer que Jesus é o filho unigênito de Deus etc.. A diferença é substancial. A Igreja, por meio de seus concílios, procurou fixar a fé em dogma, numa experiência de tipo assertivo. E assim desapareceu um traço fundamental da natureza humana, que exige uma fé estranha a uma lógica puramente factual. A verdadeira fé não adere a um princípio pré-estabelecido, e é singular que justamente a Igreja, que devia preservar essa ideia, tenha se esquecido dela. Daí a fórmula “Creio porque é absurdo”.

Quais são os reflexos negativos dessa lógica assertiva sobre nossa vida social?

Infinitos. Pense na ética: afirma-se que para agir bem é preciso dispor de um sistema de crenças pré-fixado. Assim, agiria bem apenas aquele que tem uma série de princípios a que deve se conformar. É o modelo kantiano, ainda imperante, que define a ética como dever de obedecer uma lei. Quando trabalhava sobre a ideia de “testemunho”, me tocou a história de uma moça que, submetida à tortura da Gestapo, refutou-se a revelar os nomes de seus companheiros. Perguntada, mais tarde, em nome de quais princípios tinha conseguido fazer isso, ela responde: “assim o fiz porque me agradava”. A ética não significa obedecer um dever, significa colocar-se em jogo: naquilo que se pensa, se diz e se crê.


Mesmo porque, ultrapassada uma crença na infalibilidade de certa lei, resta um campo de ruínas.
Cedo ou tarde todos têm crenças de tipo objetivo. Na verdade: as crenças políticas foram literalmente esmigalhadas e as teológico-religiosas se fossilizam em dogmas contraditórios. Quanto às científicas: elas acabam completamente sem relação com a vida ética dos indivíduos singulares.


Em Crer e não crer Nicola Chiaromonte formula uma pergunta seca: pode-se crer sozinho?

É uma pergunta pertinente e que eu formularia do seguinte modo: como é possível partilhar uma verdade ou uma fé que não sejam de tipo assertivo? Penso que isso aconteça nos territórios da existência onde nos colocamos em jogo de maneira pessoal. Se a veridição é relegada às margens e o único modelo de verdade e de fé se tornam a ciência e o dogma, então a vida se torna invivível. Daí a indiferença e o ceticismo generalizado, além da depressão social galopante. Apenas procedendo à contrapelo, procurando essa diversa experiência da palavra, é possível voltar à relação originária com a verdade, irredutível a qualquer institucionalização.
Deixo um exemplo: a ciência observa a passagem do primata ao homem falante unicamente em termos cognitivos, como se fosse apenas uma questão de inteligência e de volume cerebral. Mas não há apenas esse aspecto. A transformação deve ter sido tão gigantesca quanto também do ponto de vista ético, político, sensível. O homem não é apenas homo sapiens. É um animal que, de modo diverso dos outros viventes, os quais não parecem dar importância às suas linguagens, decidiu ir até o fundo no jogo da palavra. E daí nasceu a consciência, mas também a promessa, a fé, o amor que extrapolam a dimensão puramente cognitiva.


É ainda um caminho aberto?
O homem ainda não terminou de se tornar humano; a antropogênese está sempre em curso. Menandro escreveu: “como é gracioso – isto é, capaz de gratuidade – o homem quando é verdadeiramente humano". É essa gratuidade que devemos redescobrir. Ainda mais porque os modelos de crença que nos são propostos não mais nos persuadem. São, como dizia Chiaromonte, mantidos à força, com má-fé.


Tentemos traçar um perímetro do grupo dessas crenças mais genuínas, mesmo se subterrâneas, submersas.
Tomemos a política: por que, finalmente, não se interroga sobre a vida das pessoas? Não a vida biológica, a vida nua, que hoje está continuamente em questão nos debates, com frequência em vão, sobre a bioética, mas as diversas formas de vida, o modo que cada um se liga a um uso, a um gesto, a uma prática. Ainda: por que a arte, a poesia, a literatura, são museificantes e relegadas a um mundo à parte, como se fossem política e existencialmente irrelevantes?


Também o escritor russo Alexandr Herzen lamentava, a seu modo, o apagamento da experiência vital subjetiva: afirmando que cremos em tudo, exceto em nós mesmos.
Vivemos em sociedades habitadas por um Eu hipertrofiado, gigantesco, no qual, no entanto, ninguém, tomado de modo singular, pode se reconhecer. Seria preciso voltar ao último Foucault, quando refletia sobre o "cuidado de si”, sobre a “prática de si”. Hoje, é raríssimo encontrar pessoas que experimentem aquilo que Benjamin denominava como a droga que tomamos sozinhos: o encontro consigo mesmo, com as próprias esperanças, as próprias lembranças e esquecimentos. Nestes momentos, assiste-se a uma espécie de afastamento do Eu, acede-se a uma forma de experiência que é o exato contrário do solipsismo. Sim, penso que seria possível partir daí para repensar uma ideia diversa do crer: formas de vida, práticas de si, intimidades. Essas são as palavras-chave de uma nova política.



Disponível em:
http://www.lavocedifiore.org/SPIP/article.php3?id_article=5078&fbclid=IwAR0KkjNTe6VlB5ypoN5GNvuZX1aRdriWs-3n8oJ53vvWqvX7ScTqzByIZR0 Publicado originalmente no jornal La Repubblica, em 09 de fevereiro de 2011.
(Trad.: Vinícius Nicastro Honesko) 

Imagem: Fra Angelico. Cristo no limbo (1441-1442). Convento de São Marcos, Florença

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Pequeno parágrafo à margem da alegria




A Ruy Belo

Há uns dias perguntava numa folha ao final de um caderno ainda incompleto: por que retomar a escrita? Qual o sentido da inscrição quando já não há motes para baixar a cabeça e encarar o caderno que parece não mais querer acabar? Há alguma retomada no gesto da escrita, ou esta tomou, nestes meses em que o caderno permaneceu silencioso, outros caminhos, outras vozes (se é que de vozes se trata)? Nos arredores, o canto dos homens parece ecoar suas verdades há tempos caladas. E, diante disso, mais uma pergunta: há modos de contra isso se insurgir na escrita? "Não sei se a vida vale um pouco mais que a vida / que a impertubabilidade de quem olha o céu / e se encomenda aos deuses da loucura / e vã é a palavra do poeta / se não atenuar a dor da vida e preparar / a serenidade visual visível na iminência do futuro". A dor da vida não se escreve e as letras antes vistas no caderno eram só o invisível a desvelar-se em sua charada mais habitual: o presente fugidio e apressado, aquele em que nem mesmo nos é dado a chance de dizer adeus. E o poeta de nome Belo despia-se da vida com o vinho que lhe abria o presente: por que então escrevia?

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

A realidade potencial - Visões do possível e do impossível


 

Eduardo Pellejero


Não somos mantidos vivos por legisladores e militares, isso é relativamente óbvio. Somos mantidos vivos por homens de fé, homens de visão. Eles são como germes vitais no processo sem fim de nos tornarmos qualquer coisa.



Henry Miller




Não escolhemos o tempo que nos toca viver. Estar lançados no mundo é próprio da existência humana, conforme uma das marcas da finitude e constitui uma das dimensões da nossa historicidade - a mais evidente, a mais dura, a mais difícil de aceitar. Não escolhemos o tempo que nos toca viver.   
Porém, o próprio tempo não é simples. Sob a sua configuração histórica num estado de coisas concreto, além do seu rebatimento sobre o presente, o tempo não deixa de fluir, segundo uma pluralidade de linhas intempestivas, que dependem para devir-mundo da nossa adesão ou do nosso compromisso - e essa é outra das dimensões da nossa historicidade. Podemos trabalhar o tempo, no tempo, contra o tempo, em proveito de um tempo por vir.
Entretanto - o tempo é sempre um conjunto de tempos heterogêneos, de variações, de modulações, de singularidades; isto é, de virtualidades num devir composto que assombra a linearidade da história, o seu fechamento à conta de um sistema qualquer de representação, deixando entrever nos seus interstícios, nas suas falhas, figuras da realidade potencial; quero dizer, dando conta da contingência da existência, da abertura do ser, do mistério da liberdade.

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Habitualmente o tempo se nos apresenta sob a forma das condições da experiência possível, dos limites da experiência possível. De tanto fazer essa experiência, internalizamos a necessidade de reconhecer tais limites - o que é possível e o que não é, o que está ao nosso alcance o que não. Abrimos assim mão do impossível, da imponderável potência do mundo, e de todas as dimensões do tempo que abrem a experiência à experimentação.
Neste contexto, experimentação quer dizer colocar em causa o sistema da representação. O possível e o impossível, como assinala Badiou, só ganham sentido no marco de algum sistema particular de representação. O tempo pode desempenhar um papel estratificador em cada um desses sistemas, como quando falamos, com pesar ou resignação, do tempo que nos toca viver; mas também pode ser solidário desses pequenos acontecimentos que fazem ruir o próprio sistema da representação quando conduzimos a experiência além dos seus limites ordinários, permitindo que o não representado, o impossível de ser representado, venha à representação, abra um horizonte de pesquisas, nos dote de novos órgãos.  
Na experimentação o tempo não é marco, mas desvio, e promove acontecimentos tanto no interior dos indivíduos como na espessura da sociedade, dando lugar a novas relações com o meio, com as instituições, com os outros, com a natureza, com a cultura, com o trabalho, com a linguagem e o corpo - e, em última instância, com o próprio tempo. Na experimentação o tempo manifesta “a força de contestação própria da vida poética”, como diria Deleuze, isto é, através de mil deslocamentos, recusa, confronta, desafia, e algumas vezes torna inúteis os dispositivos do saber e do poder que tendem a canalizá-lo (os dispositivos do tipo crise, reconciliação, ameaça comunista ou inimigo interior, terrorismo, etc.).

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A fabulação é um dos modos de conceituar essas experiências que fazemos com o tempo, e também com a linguagem e a verdade, com o corpo e as imagens, com o devir e a história, com o possível e o real.
A criação e a resistência, a imaginação e a revolta, estão intimamente ligadas à fabulação, na medida em que a ruptura com o tempo que nos toca viver, com as condições da experiência possível, passa por autênticas visões da realidade potencial, isto é, pela apreensão súbita de singularidades, relações e afetos que insistem sob as figuras históricas que dominam o campo da ação, o horizonte da percepção e o palco das ideias.
Visões não quer dizer fantasias. A razão rebelde manteve sempre um profundo compromisso com o real. Por exemplo, a força de Lawrence - a observação é de Deleuze - não está na sua imaginação (sobre a qual o próprio Lawrence tinha sérias dúvidas), mas no modo em que Lawrence soube projetar no real imagens arrancadas ao real (a si mesmo e aos seus amigos árabes).
Em verdade, o que se faz ao fabular não é afirmar algo que não é real - não se trata de um simples devaneio, nem de um erro, nem muito menos de uma confusão. O que se faz ao fabular é afirmar que o real não se esgota nas totalizações estratégicas do sistema da representação - trazendo à tona tudo aquilo que é negligenciado ou depreciado, omitido ou descartado: todos esses elementos dos quais o sistema da representação não quer ou não pode dar conta.
Noutras palavras, a fabulação é um movimento, não de correspondência ao real, mas de produção ou mobilização do real; um movimento expressivo pelo qual somos capazes de recolher tudo aquilo que escapa à linguagem, tudo aquilo que excede os limites do possível e do realizável, do verdadeiro e do consensual, em ordem a pôr em comum esses fragmentos esparsos na experiência.
Enquanto fluxo de palavras criadoras de universos inexistentes, mas insistentes, isto é, integrantes da realidade humana, na fabulação confluem a virtualidade e a potência.

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Sempre existem, em todo o momento, em toda a sociedade, pontos fora do marco da representação - não importa o tempo que nos toque viver. À força de trabalho e de imaginação, esses pontos vão abrindo o tempo ao tempo, isto é, a história ao devir, a linguagem ao real, e o nosso destino à tarefa e à festa da liberdade. Longe de furtar-nos às responsabilidades que nos impõe a atualidade histórica, a fabulação nos convoca a agenciar os signos e as coisas, os corpos e as ideias segundo uma lógica cujo valor só pode ser conferido a posteriori - nas figuras às que possa vir a dar lugar: nos encontros, nos movimentos, nas obras e nas instituições que de algum modo se insinuam nas falhas da ordem que pesa sobre nós e que o nosso trabalho e a nossa criatividade podem vir a atualizar.

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As mulheres saem à rua e fabulam relações já não determinadas pelas estruturas do patriarcado. Os estudantes se reúnem em plenárias e fabulam caminhos para a emancipação intelectual. Os migrantes caminham rumo ao norte e fabulam um mundo de fronteiras abertas.
Certamente, o sujeito de enunciação da fabulação é paradoxal, a meio caminho entre a desujeição do mundo que procura deixar atrás e a subjetivação imponderável na qual se encontra envolvido.
Logo, a sua palavra é imprópria, como assinala Rancière sempre que fala dessas cenas de desidentificação através das quais os seres humanos rompem com o lugar que lhes é atribuído numa partilha qualquer.
Por fim, o porvir que abre é indeterminado, diferenciado mas indeterminado, real sem ser atual. Essa irresolução prática não é um defeito, uma falha no seu funcionamento, mas o correlato dos princípios que estabelecem a sua potência. Carmen Rivera Parra me lembrava que Virginia Woolf considerava que o caráter escuro do futuro, o caráter incerto e indefinido do futuro, longe de preocupar-nos, devia animar-nos a pensar, porque essa escuridão significa que o futuro não se encontra fechado, que ainda está em jogo, mesmo se não somos capazes de entrever claramente como se configura o futuro: para que o futuro venha à luz temos que adentrar-nos no escuro!

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            Porque não são a expressão de um sujeito constituído, e porque se endereçam sem pressupor a sua adequação ou a sua verdade, as imagens que projeta a fabulação são uma espécie muito particular de fantasmas; possuem a elusiva consistência dos fantasmas, articulando indiscernivelmente espectros do passado e assombrações do futuro. Com um olho nas ruínas que o progresso deixa ao seu passo, como o anjo de Benjamin, e o outro nas alternativas ignoradas que balizam o seu porvir, como o vidente de Rimbaud, a fabulação tece relações intempestivas, estabelece familiaridades artificiais, projeta precursores obscuros e indetermina o curso do tempo.
Antecipando-se à atualização dos agenciamentos que esboça, agenciamentos que, à falta de condições necessárias, existem apenas como “potências diabólicas do futuro ou como forças revolucionárias por construir-se”, a fabulação complica o mapa da realidade. Coloca assim em questão as estruturas que dão forma ao mundo e um sentido à história. Mas não troca uma imagem do futuro por outra. As suas imagens são tateantes. Não prefiguram: movem.

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Conjurada no burburinho das ruas ou na solidão do quarto próprio, a fabulação é sempre da ordem da expressão do comum, do que em comum temos e colocamos em jogo (o mundo, os outros, etc.). Antropologia especulativa, a denominava Juan José Saer, que definia o seu âmbito de intervenção ao nível das representações que dominam a nossa vida imaginária e, a partir desta, a nossa vida real.
Como esclarece Deleuze, a fabulação não é uma forma de escapar do mundo que existe; é um modo de criar as condições para a expressão de outros mundos possíveis, por sua vez capazes de desencadear a transformação do mundo existente. Contra a posição particular que ocupamos como sujeitos na história, presos nas malhas do saber e do poder, as palavras e a vida encontram na fabulação a potência do devir, da mudança, da transformação - “seiva que faz florescer uma e outra vez, contra qualquer intempérie, invencivelmente, a árvore do imaginário”.
Cada vez que a configuração do tempo que nos toca viver parece decidir de forma palmatória e terminante o que podemos fazer como indivíduos e como sociedade (e o que não, o que é possível (e o que não), o que deve entender-se por real e quais são os limites da verdade, cada vez que isso acontece, digo, essa atividade genérica que define os animais que somos manifesta a sua intrínseca potência, trabalhando os elementos que constituem historicamente os núcleos de interpretação do real, desprendendo dos grandes conglomerados conceituais pequenas percepções que insinuam uma multiplicidade de relações diferenciais entre si: redes de afeto, matrizes de ideias, esquemas de agenciamento - envolvem mundos, essas pequenas percepções, uma pluralidade de mundos possíveis!

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A resistência e a criação são sempre da ordem do acontecimento e estão acompanhadas de visões. O acontecimento é sempre a ruína do sistema da representação; as visões, o princípio de um ato de fabulação. Seja o caso de Maio de 68. Deleuze escreve: “Maio de 68 é em princípio da ordem de um acontecimento puro, livre de qualquer causalidade normal ou normativa... Houve muitas agitações, gesticulações, palavras, idiotices, ilusões em 68, mas isto não é o que conta. O que conta é que foi um fenómeno de vidência, como se uma sociedade visse de repente tudo o que continha de intolerável e visse também a possibilidade de outra coisa. É um fenómeno coletivo sob a forma: Algo possível, ou me asfixio...”.
Resistir e criar começam necessariamente por um fenômeno de percepção. Uma pessoa pode aceitar o tempo que lhe toca viver, aceitar o inferno e tornar-se parte dele, como dizia Calvino, até deixar de percebê-lo. Mas uma pessoa também pode recusar esse tempo, negar que a vida seja possível enquanto tenhamos que viver contemplando esse inferno. Ser de esquerda não é uma questão de moral, é uma questão de percepção. Tal era a tese de Deleuze: simplesmente não é possível viver vendo certas injustiças, não é possível viver enquanto certos problemas não encontrem uma solução adequada.
Por isso mesmo, a resistência e a criação devem prolongar-se na procura dos arranjos necessários para mudar o horizonte da nossa percepção, dando corpo a essas fugazes visões de novos espaços de liberdade. Recusar o tempo que nos toca viver é, sim, em primeiro lugar, ver tudo de repente, lançar um olhar enviesado sobre tudo aquilo de que a nossa época se orgulha e entrever os trabalhos e as festas de outros mundos possíveis; mas é também, imediatamente, abraçar tudo aquilo que, no tempo, anuncia outro tempo, e cuidar disso para que prolifere, ganhe força, floresça. Isto é, mais uma vez, como dizia Calvino: “reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir-lhe espaço”.
Quero dizer que para que essas aberturas de possível que caraterizam as descontinuidades históricas sejam algo mais do que um fenômeno de vidência, para que essas novas sensibilidades que associamos aos pequenos acontecimentos da percepção possam desenvolver-se e amadurecer, é necessário articular arranjos apropriados.
Essa criação de laços, conexões e redes, era para Deleuze a tarefa própria da pragmática militante a que abria espaço a sua filosofia, porque mesmo que os acontecimentos escapem, em maior ou menor medida, à nossa vontade comprometida, envolver-nos neles e com eles, agenciar o nosso desejo com o que dão a ver, está sempre ao nosso alcance - ainda que possa representar muito trabalho, grandes sacrifícios, isto é, o tempo que nos resta viver.

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Necessitamos do possível - e, ainda mais importante, do impossível - para respirar. Mas ao mesmo tempo ao (im)possível há que fazê-lo. A fabulação pode clarear momentaneamente zonas do real ou parcelas do social que o sistema da representação ignorava ou preteria, mas o seu devir-mundo depende sempre e para sempre de nós.
Tive este sonho: andava pela selva fechada a golpes de facão. Onde a folha golpeava, abria-se o mato e eu via um caminho. Mas cada vez que olhava para trás para medir o meu avanço constatava que a vegetação voltara a levantar-se como um muro e era como se nunca tivesse passado ninguém por esses cantos.
Já cuidaram alguma vez de um jardim no sertão? Com o devido cuidado isso é possível. A terra é fértil, o sol não falta, as plantas prendem e florescem. Porém, basta um dia em que, por cansaço ou negligência, uma pessoa não cuide da rega para que tudo volte a confundir-se na mudez mineral do deserto.
Felizmente somos muitos e entre todos damos conta de muito do muito que é importante, ainda que por vezes nos distraiamos e algo que valorizávamos, algo que cuidáramos por gerações, algo que dávamos por assegurado, de repente desapareça e seja necessário começar tudo de novo (como aconteceu com os direitos laborais em tantos lugares do mundo), ou, todavia, nem sequer seja possível recomeçar, porque não restou nada (como aconteceu com o Museu Nacional no Rio).

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Alguns momentos só adquirem sentido pelos rodeios aos que nos obrigam, pela tensão que nos impõem, e - a longo prazo - pela percepção a que nos abrem. O incêndio do Museu Nacional iluminou fugazmente a noite em que nos adentramos - algumas pessoas (muitas) contra-efetuaram esse acontecimento trágico e iluminaram e des(cons)truíram outras zonas sensíveis da nossa atualidade. Guardamos uma dívida com eles. No meio do desastre as suas palavras nos iluminaram e aqueceram. Que a noite não se abata definitivamente sobre nós depende de uma infinidade de gestos análogos, que desafiam, ingênua mas essencialmente, as leis da entropia (a fabulação é também, como Foucault dizia da ficção, a negentropia do mundo).
O curso da história obedece em certo sentido às leis da sucessão e da causalidade, mas a resistência ao curso da história, as suas invenções e os seus acontecimentos, os seus lutos e as suas lutas, coexistem como elementos heterogêneos que compõem um plano temporal singular do tipo constelação. Nesse plano singular estamos juntos de um modo imediato e definitivo, sempre que nos envolvemos num ato de criação ou de resistência, toda a vez que recuperamos a nossa fé em nós e nos outros, e acreditamos no mundo, “suscitando pequenos acontecimentos que escapam ao controlo, ou fazendo nascer novos espaço-tempos, mesmo de superfície ou de volume reduzido”.
Não escolhemos o tempo - este tempo - que nos toca viver. A este tempo dizemos não. Mas não devemos esquecer que essa negação é produto de uma afirmação anterior e em certo sentido essencial: a afirmação do tempo como espaço de variação, a afirmação das visões que lançam o tempo sempre além de si mesmo (e a nós com ele), a afirmação das pequenas percepções e das grandes ideias que envolvem e desenvolvem tempos no tempo, contribuindo para a atualização da nossa liberdade. 
Alguém dirá que, perante a insuportável configuração da realidade, fabulo. Como poderão entender, não me interessa negar isso. Não acalento a pretensão de estar no verdadeiro. Mas também não sinto que me encontre no falso. Se erro, o faço junto a todos, como todos - de olhos bem abertos ao que é, e também ao que não é, pelo menos à primeira vista, visível. E falo do que vejo, apenas falo do que vejo. Quiçá nem sempre com justiça e justeza, mas sim, sempre, com honestidade. Tomara que, nas minhas palavras, consigam entrever vislumbres de outras ordens de relações possíveis, e encontrem em vocês a força necessária para que um dia venham a ganhar corpo e valor.

 Imagem: Adriano Choque





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sábado, 22 de setembro de 2018

Migrar, uma condição de existência do vivente

Por Gilles Clément, jardineiro, Emanuele Coccia, filósofo e conferencista na EHESS, Antoine Kremer,  geneticista e diretor de pesquisas na unidade mista de pesquisas Biogeco, na Inra de Bordeaux, Jacques Tassin, agrônomo, ecólogo e pesquisador do Cirad, Sébastian Thiéry, politólogo, coordenador de ações do Pôle d'exploration des ressources urbaines (Perou).

Biólogos, ecólogos, geneticistas e paleontólogos estão de acordo em um ponto: os animais e os vegetais respondem às mudanças ambientais adaptando-se ou ajustando a distribuição espacial de suas populações. Esse ajuste, operado por uma fração juvenil apta à dispersão, procede de uma migração com frequência imperceptível e contínua, por vezes repentina, que reforma os mapas do vivo, transgride as fronteiras e miscigena as populações. Nesse sentido, as invasões biológicas sempre representaram uma chance para a manutenção da vida diante dos sedentarismos mortíferos. As migrações são uma condição da existência. A própria evolução é uma forma de migração do vivente em busca de formas e de funcionalidades novas, melhor ancoradas em um mundo que, sempre, se recompõe.
Essa verdade primeira também é válida para os homens? A biologia não é a política e a analogia com as migrações humanas em curso é complicada. Estas raramente são desencadeadas por uma degradação progressiva dos habitats usuais, mas, na maioria das vezes, por catástrofes que tornam esses habitats brutalmente insuportáveis à vida. Os povos obrigados a migrar, aspirando a condições toleráveis de vida, partem não em direção a espaços familiares equivalentes, mas para o estranho e o desconhecido de mundos possivelmente melhores. Nada disso, para ser exato, entre as feras e as plantas que, ao exemplo dos sapos e dos carvalhos durante as últimas glaciações, à medida do possível acompanharam a mudança de seus ambientes.
Há, no entanto, mais do que uma analogia entre os deslocamentos que acontecem entre os não-humanos e os humanos. Em particular, há a promessa de uma riqueza na transformação de nossa visão dos “migrantes”, termo este tão redutor. Mais do que não existir espécie migrante enquanto tal, não existe população humana em si. Toda migração viva é apenas a expressão temporal de uma contingência. Pensá-la como autônoma seria justamente fazer dela uma abstração, isto é, assimilar certos povos maltratados a portadores de coletes salva-vidas. Por trás do termo migrante não há nada. Por trás do homem que o termo designa há uma travessia do mundo. E por trás de toda selva, qualquer que seja o objeto que designa esse termo, há a emergência mesma de um mundo em devir.
Mais do que de migração, é uma questão de ambientes que são abandonados, de outros que descobrimos e ajudamos a se refazer, de confrontação entre populações, de posturas hostis e acolhedoras. Trata-se de contextos, de nuances em relação às quais a ideia ansiosa da grande substituição ou da aniquilação possível de nossas fundações não resiste nem um segundo. Trata-se também de riquezas novas, de recombinações, de forças conjuntas que geram planos de recomposição. Há apenas devires, escrevia Jean Borreil em A Razão nômade. Estes é que precisamos ver.
O mundo de hoje é um vasto jardim crioulo do qual nós já somos os frutos. Nós podemos tentar retardar seu advento, dissimular suas manifestações, calar os sofrimentos que ele recobre. Também podemos alimentar a destruição, fetichizar nossas fronteiras, enrijecer nossas identidades que contradizem nossas existências múltiplas e ceder às ditaduras ideológicas contemporâneas que, enquanto tais, ameaçam seriamente aniquilar o mundo. Por outro lado, podemos, diante de um movimento constitutivo do vivo e que ninguém saberia conter, acompanhar as transformações em curso em favor de um mundo vivível para todos. Entre as plantas e os animais, a migração que se vê de espécies pouco móveis e o enriquecimento da diversidade local já são empreitadas para facilitar a adaptação do vivo a um futuro que a mudança climática torna incerto. Pensar as migrações humanas também é pensar o acompanhamento do vivo. As migrações humanas exigem uma superação de si, tanto por parte dos homens que tomam seus barcos como daqueles que veem o desconhecido encalhar em suas praias. As experiências agradáveis testemunhadas por nossos concidadãos que acolhem “migrantes” também resultam dessa superação. Não é nem prudente nem fecundo tomar o fio da vida ao contrário.
As migrações convidam a reformular nosso mundo para além de toda indignação e a fazer comum sem fazer como um, isto é, sem ceder a nenhuma hegemonia do medo. Aquilo de que temos medo hoje é apenas o mecanismo mais banal da história do planeta e de seus habitantes. Agora é importante reintroduzir tanto o passado em nosso futuro como o futuro em nosso passado. Com a mudança climática, o deslocamento dos ambientes que operou no passado joga-se mais uma vez diante de nossos olhos: levará plantas, bestas e Homo sapiens, sem distinção. No fim das contas, uma só constatação se impõe: como para todos os outros seres vivos, que só podem sobreviver em um ambiente que, de uma maneira ou de outra, aceita e integra a presença e o devir, a hospitalidade se mostra como o único meio propício ao futuro de nossa espécie. (1)



(1) Este texto foi escrito após o colóquio sobre “Miscigenações planetárias" organizado por Patrick Moquay, Véronique Mure e Sébastien Thiéry em Cerisy, entre os dias 1º e 8 de agosto de 2018, com as contribuições de: Sylvain Allemand, Maxime Aumon, Serge Bahuchet, Ruedi Baur, Martin Bombal, Raphaël Caillens, Cécilia Claeys, Gilles Clément, Mathilde Clément, Sarah Clément, Emanuele Coccia, Olivier Darné, Hélène Deléan, Nicolas Delporte, Anne-Marie Fixot, Christian Grataloup, Antoine Hennion, Olivier Filippi, Sylvie Glissant, Emmanuelle Hellio, Antoine Kremer, Yann Lafolie, Camille Louis, Kendra McLaughlin, Bulle Meignan, André Micoud, Marie-José Mondzain, Dimitri Robert-Rimsky, Adrien Sarels, Jacques Tassin, Dénètem Touam Bona, Tom Troïanowski, Bénédicte Vacquerel, Sarah Vanuxem, e Camille Zéhenne. 
Original em francês disponível em: https://www.liberation.fr/debats/2018/09/20/migrer-une-condition-d-existence-du-vivant_1680151 (tradução: Vinícius N. Honesko)
Imagem: Miguel Medina.

terça-feira, 24 de julho de 2018

A erótica dos trovadores - Giorgio Agamben


 
A recente reimpressão, em uma coleção de bolso, de um livro que há anos havia se tornado inencontrável, L'érotique des troubadours, de René Nelli, insere-se em um renovado interesse pela poesia medieval e, em particular, occitânica, que já há alguns anos caracteriza a cultura francesa. O primeiro despertar dos estudos provençais na França – depois das pesquisas dos críticos românticos, de Raynouard a Fauriel[1] –, na época de Anglade e de Jeanroy[2], fora caracterizado por uma sordidez em face da lírica trovadora; e essa incompreensão logo na sequência aumentou pela progressiva substituição do pseudo-problema do amor cortês pelo único problema real, aquele do entendimento do que a experiência poética trovadora tinha de único e próprio.
A matriz desse estudo de Nelli – ao qual se deve, em conjunto com Lavaud, também uma ampla antologia de textos provençais[3] – é declaradamente sociológica: "Nous entendons par Erotique provençale", diz ele, “l'ensemble des théories et des conduites socialisées qui, dans le Midi de la France et dans les divers pays d’Europe influencés par la culture occitane, ont pendant trois cent ans – du début du XII siècle à la fin du XIV – regularisé la tendance sexuelle et donné un sens nouveau à l'idée d'Amour... l’érotique provençale ne se réduit absolument pas à la littérature qu’elle a suscitée... L'Amour provençal est donc un phenomène social qui doit être étudié et explique comme tel[4]. O objetivo de sua pesquisa é, portanto, "retrouver sous les mythes poétiques lucidement elaborés les comportements cérémoniels primitifs qui l’ont fondé dans le social[5].
Em conformidade com esses princípios, Nelli oferece uma espécie de síntese das pesquisas sobre a erótica cortês, enriquecida por paralelos etnográficos e folclóricos e, nessa perspectiva, seus resultados com frequência são convincentes (observe-se, nesse sentido, seu equilibrado exame das teses sobre a origem árabe da erótica provençal, sobre a qual arabistas e filólogos românicos frequentemente discutiram com muito pouca serenidade). Mas a parte mais original da pesquisa de Nelli por certo é aquela em que, por meio de uma análise diacrônica das fontes poéticas, reconstrói, talvez com mais rigor do que até hoje já tenha sido feito, a formação e a estrutura do cerimonial erótico trovador. No capítulo sobre a erótica dos trovadores clássicos (clássica é aí definida a geração poética que vai de Bernart de Ventadorn a Uc de Saint Circ, e que compreende alguns dos mais prestigiosos trovadores citados por Dante, de Giraut de Bronelh a Bertran de Born), ele sublinha assim o caráter ao mesmo tempo casto e perverso, fantasmático e cerimonial de uma relação amorosa que, mesmo que permanecendo dominada por um ideal de castidade, não excluía o tener, o baizr, o abrasssar, o manejar e implicava, como fase suprema, a prova singular (asag) que era a contemplação da mulher nua[6].
Se essa exploração da erótica dos trovadores certamente é sugestiva, o limite do trabalho de Nelli está no fato de que, ao longo de sua pesquisa, jamais o problema específico da poesia trovadora foi levantado enquanto tal. Se à primeira vista isso parece justificado pela perspectiva sociológica de sua pesquisa, voltada a encontrar o comportamento social sob o mito poético, esse limite, todavia, dá testemunho de uma singular incompreensão do próprio objeto. Se, com efeito, algo caracteriza de forma exemplar o fenômeno occitânico, é justamente que Eros e poesia nele estão conjugados de modo indissolúvel; e isso não por que a poesia trovadora seja expressão de certo comportamento social cujo desconhecimento faz com que ela permaneça ininteligível, mas porque Eros e poesia aí estão entrelaçados e envolvidos (entrebescat, para usar um termo trovador) em um círculo no interior do qual tanto o texto poético aparece como o único lugar oferecido à realização do desejo erótico quanto a experiência erótica como o fundamento e o sentido da poesia. O poemeto Lo chastel d’amors parece exprimir essa união em uma alegoria até demasiadamente explícita:


Quest chastel hai fatz ab sen
ab gran costz de...
e ab tal enchantamen
que hom no-l ve se no-l ten
de ditz e de pessamen
.........

Dinaz lo chastel seguranh
estan cellas a cui tanh
cui presz ni joi no sofranh
toz lur sojorn e lur banh
son ditz e messatg’ estranh
qi da loing lur son trames.
[7]

E o próprio joi, esse termo tão discutido no qual se reassume a plenitude edênica do Eros trovador, não é inteligível senão no interior da experiência poética em que o situam os trovadores[8], e, se a hipótese de Camproux[9] é exata, ele é também etimologicamente conexo a uma prática linguística (Joi de Jocus, oposto, como jogo de palavras, a ludus, jogo corpóreo).
A arbitrária fratura entre uma realidade social do amor cortês, por um lado, e uma série de textos poéticos em que esse amor teria encontrado expressão, por outro, impede justamente de apreender o centro da experiência trovadora, na qual o amor se liga à palavra poética segundo uma tradição à qual ainda Dante é fiel quando declara, na Vita nova, que o fim e a beatitude de seu amor está "naquelas palavras que louvam a minha mulher”[10]. A herança que a civilização occitânica transmitiu à cultura ocidental não é tanto certa concepção do amor (que, de resto, apesar das análises de Nelli, permanece obscura) quanto o nexo Eros-linguagem poética, o entrebescamen de desejo e poesia. E caso se quisesse procurar, nos traços exemplares de Spitzer, um trait éternel da poesia românica, é certo que justamente esse nexo poderia fornecer o paradigma capaz de explicar tanto o troblar clos, como "tendência especificamente românica para a forma preciosa”[11], quanto a análoga tendência da poesia românica para uma autossuficiência e uma dimensão absoluta do texto poético. O trobar é clos porque é em seu fechado círculo que se celebra a união sem fim do desejo e de seu fantasmático objeto, enquanto a concepção tipicamente medieval do caráter fantasmático do amor encontra sua resolução e seu apagamento em uma prática poética (o "gioi che mai non fina”, de Guittone). O texto poético é o único asilo oferecido a um amor de lonh “que não quer possuir o próprio estado de não possuído”[12], porque é em seu fechado espaço que Eros procura apropriar-se poeticamente do que de outro modo não poderia ser nem apreendido nem gozado. Enquanto esse essencial entrebescamen textual de desejo e palavra poética não for compreendido e explorado, qualquer tentativa de reconstituir um suposto costume erótico occitânico passa simplesmente ao lado do fenômeno trovador.

Se a França – herdeira, de Scève a Mallarmé, do trobar clos provençal – assiste hoje a um despertar do interesse pela poesia occitânica, e se a cultura inglesa moderna desta se aproximou na época de Pound, ainda que com equívocos talvez inevitáveis, na Itália, apesar de uma escola de filologia românica que nos deu alguns das mais resistentes edições críticas de textos trovadores, a experiência dos trovadores não chegou nem mesmo a arranhar a cultura poética moderna. Esse recalque já está presente no projeto de De Sanctis de uma história literária nacional, na qual nenhum espaço é deixado às "vazias generalidades dos trovadores”, e isso é ainda mais aberrante uma vez que a poesia italiana é geneticamente ligada à provençal por um vínculo que ainda é vivo e operante em Dante. A ruptura acontece apenas ao longo dos séculos XIV e XV, entre Petrarca e o despertar dos estudos provençais no século XVI com Cariteo, Bembo e Barbieri.
Uma relação autêntica com a experiência trovadora deve, portanto, ser religada no ponto em que a deixou Dante, no qual ele estabelece sua relação pessoal com Arnaut Daniel e com o mundo provençal, isto é, formalmente, no trobar clos das Rime Petrose, e, criticamente, no canto XXVI do Purgatório. Não é por acaso que Arnaut, como representante por excelência do projeto erótico-poético trovador, seja situado por Dante no limite da montanha do Purgatório, exatamente no limiar intransitável do Éden, e Matilda, a “mulher enamorada” que Dante aí encontra, é, de fato, o símbolo da inocência edênica e, ao mesmo tempo, a cifra do objeto impossível da poesia e do eros trovador: por isso, ela, verdadeiro senhal, é apresentada por Dante em termos estilizados e impessoais, e por isso, como já foi observado, todo o episódio lembra muito a “pastorella” provençal e cavalcantiana[13]. O "pecado hermafrodita"[14] e o “não servimos humana lei”, que Guido Guinizelli remete a si e a Arnaut, aludem ao projeto trovador de atingir em uma experiência terrena o "doce jogo” do inocente amor edênico, a joi que para o Dante da Comédia permanece interditada à condição humana.
É aí, no limiar do Éden, na tensão atualíssima em direção a um projeto impossível, que uma tradição poética italiana que tivesse tomado consciência de si e das próprias origens poderia retomar o diálogo suspenso com a experiência dos trovadores. 
 

Resenha crítica de L’erotique des troubadours, de René Nelli (Paris: Union Génerale d'edition, 1974) publicada por Agamben na revista "Settanta", anno 6, n. 1, CEI, Milano, gennaio-marzo 1975, pp. 85-88.
Trad.: Vinícius N. Honesko 



[1] Raynouard: Choix des poésies originale des troubadours. Paris: 1816-1821, 6 vol. Fauriel: Histoire de la poésie Provençale. Paris: 1846, 3 vol.
[2] Anglade: Les troubadours, Toulouse-Paris: 1934, 2 vol.
[3] Les troubadours, textes et traductions par R. Nelli e R. Lavaud. Paris: 1966.
[4] Nelli: L'érotique des troubadours. cit., p. 11. ("Entendemos por erótica provençal o conjunto das teorias e das condutas socializadas que, no sul da França e em diversos países da Europa influenciados pela cultura occitânica, durante trezentos anos – do início do século XII ao fim do XIV – regularizam a tendência sexual e deram um novo sentido à ideia de Amor... a erótica provençal por nada pode ser reduzida à literatura que ela suscitou... O Amor provençal é, portanto, um fenômeno social que deve ser estudado e explicado como tal.")
[5] Op. Cit. p. 24. ("encontrar sob os mitos poéticos lucidamente elaborados os comportamentos cerimoniais primitivos que os fundaram no social.")
[6] Nelli cita paralelos etnográficos a essa prática ascética; todavia, o medievo cristão oferece paralelos suficientemente iluminantes, como o costume das virgines subintroductae que coabitavam com os ascetas cristãos. A passagem do Roman de la rose (17022-28) sobre a lendária castração de Orígenes alude, com o nome de dames de religion, a uma prática desse gênero:
Origenés, qui les coillons
se copa, po me reprisa
quant a ses mains les ancisa
por server en devocion
les dames de religion...

[7] "Esse castelo o fiz com o sentido / com grande custo de... / e com tal encanto / que ninguém pode vê-lo se dele não toma posse / através de palavras e imagens mentais / ... No castelo seguro / estão aquelas a que pertenço / que jamais faltam Joi e valor / toda sua estada e seu banho / são palavras e mensagens estranhas / que de longe são mandados"
[8] Cf. Wettstein: Mezura, l'ideal des troubadours. Zurich: 1945: “le joi est sentiment ésthetique de la perfection de l’être, don't l'expression plus intime est le chant”. ("a joi é sentimento estético da perfeição do ser cuja expressão mais íntima é o canto”)
[9] Cf.: Camproux: La joie civilisatrice des troubadours. La table ronde, n. 97; gennaio 56.
[10] Vita Nova, XVIII.
[11] L. Spitzer: L'interpretazione linguistica delle opere letterarie. Trad. it. in. Critica stilistica e semântica storica, Bari: 1965.
[12] L. Spitzer: L'amour lointain de Jaufré Rudel et le sens de la poésie des troubadours. Studies in the romance language and literature, V, 1944.
[13] Cf. as observações de Singleton em Journey to Beatrice. Cambridge: 1958, cap. XII, e de Barnes: Dante’s Matelda, Italian studies, XXVIII, 1973.
[14] É singular que essa expressão seja com tanta frequência compreendida ainda hoje pelos comentadores apenas como sinônimo de amor intersexual. Muito melhor era a visão de Landino, que em seu comentário alude a um amor perverso no qual “um e outro se unem enquanto macho e fêmea, de forma que possam ser chamados hermafroditas”. Na realidade, parece lícito entrever aí uma referência à passagem do Evangelho de Tomás sobre o reino dos céus (log. 22): “quando fizerdes de dois um, e o interior como exterior... e quando fizerdes uma só do macho e da fêmea, de modo que o macho não será mais macho e a fêmea não será mais fêmea...".