domingo, 30 de setembro de 2007
Rizoma II (A linguagem lacunar)
Não está em questão - no enunciar - tão somente o emprego representacional calcado no fundamento fixo. Não se trata de aplicação de regras anteriormente dadas, silogismo sintático-semântico - dedução mecânica - de algo estrutural e previamente delimitado, certo, unívoco.
Enunciar é acima de tudo entrincheirar-se no não-lugar da língua, perfurar o espectro linguageiro e, no vazio, ser capaz de vencer o silêncio clínico.
Fazer um espaço de permanência no buraco aberto, pela própria escritura ou pela fala, no interior do murmúrio indizível e do oceano informe. O que não implica sujeição do informe à forma, domesticação do indizível ao bem dito.
Enunciar é lançar uma tênue teia de funâmbulo nos abismos da linguagem.
É tentar transpor esse abismo sabendo-se desde sempre nele arremessado.
quinta-feira, 27 de setembro de 2007
Rizoma
Escrever a n, n-1, escrever por intermédio de slogans: faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha! Seja rápido, mesmo parado! Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite um General em você! Nunca idéias justas, justo uma idéia (Godard). Tenha idéias curtas. Faça mapas, nunca fotos nem desenhos. Seja a Pantera-cor-de-rosa e que vossos amores sejam como a vespa e a orquídea, o gato e o babuíno. Diz-se do velho homem rio:
He don´t plant tatos
Don´t plant cotton
Them that plants them is soon forgotten
But old man river he just keeps rollin along.
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo "ser", mas o rizoma tem como tecido a conjunção "e...e...e.." Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para onde vai você? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. Fazer tábula rasa, partir ou repartir de zero, buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção da viagem e do movimento (metódico, pedagógico, iniciático, simbólico...). Kleist, Lenz ou Büchner têm outra maneira de viajar e também de se mover, partir do meio, pelo meio, entrar e sair, não começar nem terminar. Mas ainda, é a literatura americana, e já inglesa, que manifestaram este sentido rizomático, souberam mover-se entre as coisas, instaurar uma lógica do E, reverter a ontologia, destituir o fundamento, anular fim e começo. Elas souberam fazer uma pragmática. É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio.
(Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol. I. São Paulo: Ed. 34, 1995. pp. 36-37. Tradução: Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa.)
terça-feira, 25 de setembro de 2007
O fim do pensamento
Acontece como quando caminhamos no bosque e, subitamente, surpreende-nos a variedade inaudita das vozes animais. Silvo, trilo, chilro, lascas de lenha e metais estilhaçados, assobios, cochichos, cicios: cada animal tem seu som, nascido imediatamente de si. Ao fim, a nota dúplice do cuco ri de nosso silêncio, divulgando nosso ser insustentável, o único sem voz no coro infinito das vozes animais. Então, provamos do falar, do pensar.
Em nossa língua, a palavra pensamento tem por origem o significado de angústia, de ímpeto ansioso, que se encontra ainda na expressão familiar: stare in pensiero (estar atormentado). O verbo latino pendere, de onde deriva a palavra nas línguas romanas, significa estar suspenso. Agostinho utiliza-o neste sentido para caracterizar o processo do conhecimento: “O desejo que há na procura procede de quem busca e, de alguma maneira, permanece suspenso (pendet quodammodo), até repousar na união com o objeto enfim encontrado”.
Que coisa está suspensa, que coisa pende no pensamento? Pensar, na linguagem, não podemos, porque a linguagem é e não é a nossa voz. Eis uma pendência, uma questão não resolvida na linguagem: será nossa a voz, como o zurro a voz do burro e o trilo a voz do grilo? Por isto, ao falar, somos constrangidos a pensar e manter suspensas as palavras. O pensamento é a pendência da voz na linguagem.
(No seu trilo, é claro: o grilo não pensa).
À noite, passeando pelo bosque, a cada passo, sentimos animais invisíveis rastejarem por entre as moitas que ladeiam o caminho: se lagartos ou ouriços, tordos ou serpentes, não sabemos. O mesmo acontece quando pensamos: não tem importância o caminho da palavra que percorremos, mas a confusa agitação que sentimos ao redor, como a de um animal em fuga ou a de qualquer coisa que, de repente, acorda com os barulhos dos passos.
O animal em fuga, que percebemos rumorejar pelas palavras, – foi dito –, é a nossa voz. Pensamos – temos as palavras suspensas e nós mesmos estamos como que suspensos na linguagem – porque esperamos, assim, reencontrar, ao fim, a voz. Um dia, – foi dito –, a voz se inscreve na linguagem. A procura da voz na linguagem é o pensamento.
Que a linguagem surpreenda e sempre antecipe a voz, que a pendência da voz na linguagem não haja mais fim: este é o problema da filosofia. (Como cada um resolve esta pendência é a ética).
Mas a voz, a voz humana não é. Não é nossa a voz que podemos seguir no traçado da linguagem, colhendo-a – para recordá-la – no ponto em que ela se desfaz no nome, se inscreve na letra. Nós falamos com a voz que não temos, que jamais foi escrita (agrapta nomima, Antígona, 454). E a linguagem é sempre “letra morta”.
Pensar, podemos apenas se a linguagem não é a nossa voz, apenas se, nisso, medimos o insondável de nossa afonia. O que chamamos de mundo é este abismo.
A lógica mostra que a linguagem não é a minha voz. A voz – ela diz – foi, mas já não é, nem poderá mais ser. A linguagem tem lugar no não-lugar da voz. Isto significa dizer que o pensamento nada há de pensar da voz. Esta é a sua piedade.
Então, a fuga, a pendência da voz na linguagem deve ter fim. Podemos deixar de ter a linguagem, a voz, em suspensão. Se a voz jamais foi, se o pensamento é pensamento da voz, ele não tem mais nada a pensar. O pensamento cumprido não tem mais pensamento.
Do termo latino que, por séculos, designou o pensamento, cogitare, na nossa língua, restou apenas um traço na palavra tracotanza[1]. Ainda no século XIV, coto, cuitanza, queria dizer: pensamento. Através do provençal oltracuidansa, tracotanza provém do latino ultracogitare: exceder, passar o limite do pensamento, sobrepensar, spensare.
O que foi dito poderá ser dito de novo. Mas o que foi pensado não poderá mais ser dito. Da palavra pensamento, tu te despedes para sempre.
Caminhamos no bosque: de repente, sentimos um fremir de asas ou de ervas agitadas. Um faisão voa e mal temos tempo de vê-lo desaparecer por entre os galhos, um porco-espinho se embrenha no mato mais denso, a serpente faz as folhas secas crepitarem sob si. Não o encontro, mas esta fuga de animais selvagens invisíveis, é o pensamento. Não, não era a nossa voz. Nós nos avizinhamos da linguagem o quanto era possível, quase a roçamos, em suspensão: mas o nosso encontro não ocorreu, e, agora, retornamos, impensadamente, desta vizinhança, para a casa.
A linguagem, portanto, é a nossa voz, a nossa linguagem. Como tu agora falas – eis a ética.
Em nossa língua, a palavra pensamento tem por origem o significado de angústia, de ímpeto ansioso, que se encontra ainda na expressão familiar: stare in pensiero (estar atormentado). O verbo latino pendere, de onde deriva a palavra nas línguas romanas, significa estar suspenso. Agostinho utiliza-o neste sentido para caracterizar o processo do conhecimento: “O desejo que há na procura procede de quem busca e, de alguma maneira, permanece suspenso (pendet quodammodo), até repousar na união com o objeto enfim encontrado”.
Que coisa está suspensa, que coisa pende no pensamento? Pensar, na linguagem, não podemos, porque a linguagem é e não é a nossa voz. Eis uma pendência, uma questão não resolvida na linguagem: será nossa a voz, como o zurro a voz do burro e o trilo a voz do grilo? Por isto, ao falar, somos constrangidos a pensar e manter suspensas as palavras. O pensamento é a pendência da voz na linguagem.
(No seu trilo, é claro: o grilo não pensa).
À noite, passeando pelo bosque, a cada passo, sentimos animais invisíveis rastejarem por entre as moitas que ladeiam o caminho: se lagartos ou ouriços, tordos ou serpentes, não sabemos. O mesmo acontece quando pensamos: não tem importância o caminho da palavra que percorremos, mas a confusa agitação que sentimos ao redor, como a de um animal em fuga ou a de qualquer coisa que, de repente, acorda com os barulhos dos passos.
O animal em fuga, que percebemos rumorejar pelas palavras, – foi dito –, é a nossa voz. Pensamos – temos as palavras suspensas e nós mesmos estamos como que suspensos na linguagem – porque esperamos, assim, reencontrar, ao fim, a voz. Um dia, – foi dito –, a voz se inscreve na linguagem. A procura da voz na linguagem é o pensamento.
Que a linguagem surpreenda e sempre antecipe a voz, que a pendência da voz na linguagem não haja mais fim: este é o problema da filosofia. (Como cada um resolve esta pendência é a ética).
Mas a voz, a voz humana não é. Não é nossa a voz que podemos seguir no traçado da linguagem, colhendo-a – para recordá-la – no ponto em que ela se desfaz no nome, se inscreve na letra. Nós falamos com a voz que não temos, que jamais foi escrita (agrapta nomima, Antígona, 454). E a linguagem é sempre “letra morta”.
Pensar, podemos apenas se a linguagem não é a nossa voz, apenas se, nisso, medimos o insondável de nossa afonia. O que chamamos de mundo é este abismo.
A lógica mostra que a linguagem não é a minha voz. A voz – ela diz – foi, mas já não é, nem poderá mais ser. A linguagem tem lugar no não-lugar da voz. Isto significa dizer que o pensamento nada há de pensar da voz. Esta é a sua piedade.
Então, a fuga, a pendência da voz na linguagem deve ter fim. Podemos deixar de ter a linguagem, a voz, em suspensão. Se a voz jamais foi, se o pensamento é pensamento da voz, ele não tem mais nada a pensar. O pensamento cumprido não tem mais pensamento.
Do termo latino que, por séculos, designou o pensamento, cogitare, na nossa língua, restou apenas um traço na palavra tracotanza[1]. Ainda no século XIV, coto, cuitanza, queria dizer: pensamento. Através do provençal oltracuidansa, tracotanza provém do latino ultracogitare: exceder, passar o limite do pensamento, sobrepensar, spensare.
O que foi dito poderá ser dito de novo. Mas o que foi pensado não poderá mais ser dito. Da palavra pensamento, tu te despedes para sempre.
Caminhamos no bosque: de repente, sentimos um fremir de asas ou de ervas agitadas. Um faisão voa e mal temos tempo de vê-lo desaparecer por entre os galhos, um porco-espinho se embrenha no mato mais denso, a serpente faz as folhas secas crepitarem sob si. Não o encontro, mas esta fuga de animais selvagens invisíveis, é o pensamento. Não, não era a nossa voz. Nós nos avizinhamos da linguagem o quanto era possível, quase a roçamos, em suspensão: mas o nosso encontro não ocorreu, e, agora, retornamos, impensadamente, desta vizinhança, para a casa.
A linguagem, portanto, é a nossa voz, a nossa linguagem. Como tu agora falas – eis a ética.
Giorgio Agamben
Tradução Alberto Pucheu. In: Terceira Margem. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, ano VIII, número 11, 2004. p.157-159.
[1] Arrogância, prepotência, insolência, atrevimento, petulância, presunção. [N.T]
domingo, 23 de setembro de 2007
O mistério da economia
Pietro da Cortona (1633-1639),
afresco no Palazzo Barberini, Roma
A preocupação que tinha guiado os Padres que primeiramente tinham elaborado a doutrina da oikonomia era, segundo toda evidência, aquela de evitar uma fratura do monoteísmo que teria reintroduzido uma pluralidade de figuras divinas e, com estas, o politeísmo. É para fugir desta conseqüência extrema da tese trinitária que Hipólito tem o cuidado de reafirmar que Deus é uno segundo a dynamis (isto é, na terminologia estóica da qual ele se serve, segundo a ousia) e tríplice apenas segundo a economia, e Tertuliano opõe com firmeza a Praxéas que a simples “disposição” da economia não significa de modo algum a separação da substância. O ser divino não é cindido, porque a triplicidade da qual falam os Padres se situa sobre o plano da oikonomia e não sobre aquele da ontologia.
A cesura que se tinha querido evitar a todo custo sobre o plano do ser reaparece, no entanto, como fratura entre Deus e a sua ação, entre ontologia e práxis. Uma vez que distinguir a substância ou a natureza divina da sua economia equivale a separar em Deus o ser e o agir, a substância e a práxis. É este o secreto dualismo que a doutrina da oikonomia insinuou no cristianismo, algo como um originário germe gnóstico, que não concerne tanto à cesura entre duas figuras divinas, quanto àquela entre Deus e o seu governo do mundo.
Tome-se a teologia que Aristóteles desenvolve ao fim do livro L da Metafísica. Distinguir, no Deus que é aqui descrito, entre ser e práxis seria simplesmente impensável. Se o Deus aristotélico move, como um motor imóvel, as esferas celestes, isto é porque esta é a sua natureza e não há nenhuma necessidade de hipostasiar uma especial vontade ou uma atividade particular dirigida ao cuidado de si e do mundo. O cosmo clássico – o seu “fado” – repousa sobre a perfeita unidade de ser e práxis.
É esta unidade que a doutrina da oikonomia põe radicalmente em questão. A economia através da qual Deus governa o mundo é, de fato, totalmente distinta do seu ser e não é dedutível deste. Pode-se analisar sobre o plano ontológico a noção de Deus, elencar-lhe atributos ou negar-lhe, como em teologia apofática, um a um todos os predicados para chegar à idéia de um ser puro, cuja essência coincide com a existência: mas isto não dirá rigorosamente nada da sua relação com o mundo nem de como ele teria decidido governar o curso da história humana. Como muitos séculos depois Pascal verá lucidamente para o governo profano, a economia não tem nenhum fundamento na ontologia e o único modo de fundá-la é esconder-lhe a origem (PASCAL I, p. 51)[1]. Por isso, tanto mais misteriosa quanto a natureza de Deus é agora a sua livre decisão de governo do mundo; o verdadeiro mistério, que “estava escondido por séculos em Deus” e que foi revelado aos homens em Cristo, não é aquele do seu ser, mas aquele da sua práxis salvífica: o “mistério da oikonomia”, portanto, segundo a decisiva inversão estratégica do sintagma paulino. O mistério que, a partir deste momento, não cessará de suscitar a maravilha e a desconfiança dos teólogos e dos filósofos, não é de natureza ontológica, mas prática.
Paradigma econômico e paradigma ontológico são, na sua gênese teológica, perfeitamente distintos e somente pouco a pouco a doutrina da providência e a reflexão moral procurarão, sem jamais plenamente conseguir, lançar uma ponte entre estes. Que o trinitarismo e a cristologia, antes de assumirem a forma dogmático-especulativa, tenham sido concebidos em termos “econômicos” é algo que continuará obstinadamente a assinalar o seu desenvolvimento sucessivo. A ética, em sentido moderno, com o seu cortejo de indissolúveis aporias, nasce, neste sentido, da fratura entre ser e práxis que se produz ao fim do mundo antigo e tem na teologia cristã o seu lugar eminente. Se a noção de livre vontade, de toda forma marginal no pensamento clássico, torna-se a categoria central primeiramente da teologia cristã e depois da ética e da ontologia da modernidade, isto é porque estas têm naquela fratura o seu lugar original e deverão com ela confrontar-se até o fim. Se a ordem do cosmo antigo “não é tanto vontade dos deuses, quanto a sua própria natureza, impassível e inexorável, portadora de todo bem e de todo mal, inacessível à prece [...] e muito parca em misericórdia” (SANTILLANA, p. II)[2], a idéia de uma vontade de Deus que, ao contrário, decide livre e providentemente as próprias ações e é até mesmo mais forte do que sua onipotência, é a prova inconfundível da quebra do fado antigo e, ao mesmo tempo, a tentativa desesperada de dar um fundamento à esfera anárquica da práxis divina. Desesperada porque vontade só pode significar: infundamento da práxis, ou seja, que não há no ser nenhum fundamento para agir.
A cesura que se tinha querido evitar a todo custo sobre o plano do ser reaparece, no entanto, como fratura entre Deus e a sua ação, entre ontologia e práxis. Uma vez que distinguir a substância ou a natureza divina da sua economia equivale a separar em Deus o ser e o agir, a substância e a práxis. É este o secreto dualismo que a doutrina da oikonomia insinuou no cristianismo, algo como um originário germe gnóstico, que não concerne tanto à cesura entre duas figuras divinas, quanto àquela entre Deus e o seu governo do mundo.
Tome-se a teologia que Aristóteles desenvolve ao fim do livro L da Metafísica. Distinguir, no Deus que é aqui descrito, entre ser e práxis seria simplesmente impensável. Se o Deus aristotélico move, como um motor imóvel, as esferas celestes, isto é porque esta é a sua natureza e não há nenhuma necessidade de hipostasiar uma especial vontade ou uma atividade particular dirigida ao cuidado de si e do mundo. O cosmo clássico – o seu “fado” – repousa sobre a perfeita unidade de ser e práxis.
É esta unidade que a doutrina da oikonomia põe radicalmente em questão. A economia através da qual Deus governa o mundo é, de fato, totalmente distinta do seu ser e não é dedutível deste. Pode-se analisar sobre o plano ontológico a noção de Deus, elencar-lhe atributos ou negar-lhe, como em teologia apofática, um a um todos os predicados para chegar à idéia de um ser puro, cuja essência coincide com a existência: mas isto não dirá rigorosamente nada da sua relação com o mundo nem de como ele teria decidido governar o curso da história humana. Como muitos séculos depois Pascal verá lucidamente para o governo profano, a economia não tem nenhum fundamento na ontologia e o único modo de fundá-la é esconder-lhe a origem (PASCAL I, p. 51)[1]. Por isso, tanto mais misteriosa quanto a natureza de Deus é agora a sua livre decisão de governo do mundo; o verdadeiro mistério, que “estava escondido por séculos em Deus” e que foi revelado aos homens em Cristo, não é aquele do seu ser, mas aquele da sua práxis salvífica: o “mistério da oikonomia”, portanto, segundo a decisiva inversão estratégica do sintagma paulino. O mistério que, a partir deste momento, não cessará de suscitar a maravilha e a desconfiança dos teólogos e dos filósofos, não é de natureza ontológica, mas prática.
Paradigma econômico e paradigma ontológico são, na sua gênese teológica, perfeitamente distintos e somente pouco a pouco a doutrina da providência e a reflexão moral procurarão, sem jamais plenamente conseguir, lançar uma ponte entre estes. Que o trinitarismo e a cristologia, antes de assumirem a forma dogmático-especulativa, tenham sido concebidos em termos “econômicos” é algo que continuará obstinadamente a assinalar o seu desenvolvimento sucessivo. A ética, em sentido moderno, com o seu cortejo de indissolúveis aporias, nasce, neste sentido, da fratura entre ser e práxis que se produz ao fim do mundo antigo e tem na teologia cristã o seu lugar eminente. Se a noção de livre vontade, de toda forma marginal no pensamento clássico, torna-se a categoria central primeiramente da teologia cristã e depois da ética e da ontologia da modernidade, isto é porque estas têm naquela fratura o seu lugar original e deverão com ela confrontar-se até o fim. Se a ordem do cosmo antigo “não é tanto vontade dos deuses, quanto a sua própria natureza, impassível e inexorável, portadora de todo bem e de todo mal, inacessível à prece [...] e muito parca em misericórdia” (SANTILLANA, p. II)[2], a idéia de uma vontade de Deus que, ao contrário, decide livre e providentemente as próprias ações e é até mesmo mais forte do que sua onipotência, é a prova inconfundível da quebra do fado antigo e, ao mesmo tempo, a tentativa desesperada de dar um fundamento à esfera anárquica da práxis divina. Desesperada porque vontade só pode significar: infundamento da práxis, ou seja, que não há no ser nenhum fundamento para agir.
[1] BLAISE PASCAL, Pensées, ed. Lafuma, Paris, Seuil, 1962.
[2] GIORGIO DE SANTILLANA, Fato antico e fato moderno, in "Tempo presente", VIII, n. 9-10, 1963.
(AGAMBEN, Giorgio. Il Regno e la Gloria. Per una genealogia teologica dell´economia e del governo. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2007. pp. 69-71. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
quarta-feira, 19 de setembro de 2007
O "Programa Sistemático"
(...) uma ética. Como a metafísica inteira no futuro desemboca na moral (Kant com seus dois postulados práticos deu apenas um exemplo disso, não esgotou nada), essa ética não será outra senão um sistema completo de todas as Idéias ou, o que é o mesmo, de todos os postulados práticos. A primeira Idéia é naturalmente a representação de mim mesmo como um ser absolutamente livre. Com o ser livre, consciente de si, surge ao mesmo tempo um mundo inteiro - do nada -, a única verdadeira e cogitável criação a partir do nada. Aqui descerei aos domínios da física; a questá é esta: Como tem de ser um mundo para um ser moral? À nossa física vagarosa, que avança laboriosamente com experimentos, eu haveria de dar asas outra vez.
Assim, se a filosofia fornece as Idéias e a experiência, os dados, podemos afinal adquirir a física em grande escala que eu espero de épocas futuras. Não parece que a física de agora possa satisfazer um espírito criador, como o nosso é ou deve ser.
Da natureza passo à obra humana. Com a Idéia de humanidade à frente, quero mostrar que não há nenhuma Idéia do Estado, porque o Estado é algo mecânico, assim como não há Idéia de uma máquina. Somente o que é objeto da liberdade se chama Idéia. Temos, pois, de ultrapassar o Estado! - Pois todo Estado tem de tratar homens livres como engrenagens mecânicas; e isso ele não deve fazer: portanto, deve cessar. Vocês vêem por vocês mesmos que aqui todas as Idéias de paz perpétua etc. são apenas Idéias subordinadas a uma Idéia superior. Ao mesmo tempo, quero aqui assentar os princípios para uma história da humnaidade e desnudar até à pele toda a miserável obra humana de Estado, constituição, legislação. Por fim vêm as Idéias de um mundo moral, divindade, imortalidade - subversão de toda pseudofé, perseguição da classe sacerdotal, que hoje em dia se dá ares de razão, pela própria Razão. - Absoluta liberdade de todos os espíritos, que carregam em si o mundo intelectual e não têm o direito de buscar nem Deus nem imortalidade fora de si.
Por último, a Idéia que unifica tudo, a Idéia da beleza, tomada a palavra em seu sentido superior, platônico. Pois estou convicto de que o ato supremo da Razão, aquele em que ela engloba todas as Idéias, é um ato estético, e de que verdade e bondade só estão irmanadas na beleza. O filósofo tem de possuir tanta força estética quanto o poeta. Os homens sem senso estético são nossos filósofos da letra. Não se pode ter espírito em nada, mesmo sobre a história não se pode raciocinar com espírito - sem senso estético. Aqui deve ficar patente o que propriamente falta aos homens que não entendem Idéias - e com bastante sinceridade confessam que para eles tudo é obscuro, tão logo vá além de tabelas e registros.
A poesia adquire com isso uma dignidade superior, torna-se outra vez no fim o que era no começo - mestra da humanidade; pois não há mais filosofia, não há mais história, a arte poética sobreviverá a todas as outras ciências e artes.
Ao mesmo tempo, ouvimos tantas vezes dizerem que a grande massa precisa ter uma religião sensível. Não só a grande massa, o filósofo também precisa dela. Monoteísmo da razão e do coração, politeísmo da imaginação e da arte, é disso que precisamos.
Falarei aqui pela primeira vez de uma Idéia que, ao que sei, ainda não ocorreu a nenhum espírito humano - temos de ter uma nova mitologia, mas essa mitologia tem de estar a serviço das Idéias, tem de se tornar uma mitologia da Razão.
Enquanto não tornarmos as Idéias mitológicas, isto é, estéticas, elas não terão nenhum interesse para o povo; e vice-versa, enquanto a mitologia não for racional, o filósofo terá de envergonhar-se dela. Assim, ilustrados e não-ilustrados precisarão, enfim, estender-se as mãos, a mitologia terá de tornar-se filosófica e o povo racional, e a filosofia terá de tornar-se mitológica para tornar sensíveis os filósofos. Então reinará eterna unidade entre nós. Nunca mais o olhar de desprezo, nunca mais o cego tremor do povo diante de seus sábios e sacerdotes. Só então, esperar-nos-á uma igual cultura de todas as forças, em cada um assim como em todos os indivíduos. Nenhuma força mais será reprimida. Então reinará universal liberdade e igualdade dos espíritos! Será preciso que um espírito superior, enviado dos céus, funde entre nós essa nova religião; ela será a última obra, a máxima da humanidade.
Assim, se a filosofia fornece as Idéias e a experiência, os dados, podemos afinal adquirir a física em grande escala que eu espero de épocas futuras. Não parece que a física de agora possa satisfazer um espírito criador, como o nosso é ou deve ser.
Da natureza passo à obra humana. Com a Idéia de humanidade à frente, quero mostrar que não há nenhuma Idéia do Estado, porque o Estado é algo mecânico, assim como não há Idéia de uma máquina. Somente o que é objeto da liberdade se chama Idéia. Temos, pois, de ultrapassar o Estado! - Pois todo Estado tem de tratar homens livres como engrenagens mecânicas; e isso ele não deve fazer: portanto, deve cessar. Vocês vêem por vocês mesmos que aqui todas as Idéias de paz perpétua etc. são apenas Idéias subordinadas a uma Idéia superior. Ao mesmo tempo, quero aqui assentar os princípios para uma história da humnaidade e desnudar até à pele toda a miserável obra humana de Estado, constituição, legislação. Por fim vêm as Idéias de um mundo moral, divindade, imortalidade - subversão de toda pseudofé, perseguição da classe sacerdotal, que hoje em dia se dá ares de razão, pela própria Razão. - Absoluta liberdade de todos os espíritos, que carregam em si o mundo intelectual e não têm o direito de buscar nem Deus nem imortalidade fora de si.
Por último, a Idéia que unifica tudo, a Idéia da beleza, tomada a palavra em seu sentido superior, platônico. Pois estou convicto de que o ato supremo da Razão, aquele em que ela engloba todas as Idéias, é um ato estético, e de que verdade e bondade só estão irmanadas na beleza. O filósofo tem de possuir tanta força estética quanto o poeta. Os homens sem senso estético são nossos filósofos da letra. Não se pode ter espírito em nada, mesmo sobre a história não se pode raciocinar com espírito - sem senso estético. Aqui deve ficar patente o que propriamente falta aos homens que não entendem Idéias - e com bastante sinceridade confessam que para eles tudo é obscuro, tão logo vá além de tabelas e registros.
A poesia adquire com isso uma dignidade superior, torna-se outra vez no fim o que era no começo - mestra da humanidade; pois não há mais filosofia, não há mais história, a arte poética sobreviverá a todas as outras ciências e artes.
Ao mesmo tempo, ouvimos tantas vezes dizerem que a grande massa precisa ter uma religião sensível. Não só a grande massa, o filósofo também precisa dela. Monoteísmo da razão e do coração, politeísmo da imaginação e da arte, é disso que precisamos.
Falarei aqui pela primeira vez de uma Idéia que, ao que sei, ainda não ocorreu a nenhum espírito humano - temos de ter uma nova mitologia, mas essa mitologia tem de estar a serviço das Idéias, tem de se tornar uma mitologia da Razão.
Enquanto não tornarmos as Idéias mitológicas, isto é, estéticas, elas não terão nenhum interesse para o povo; e vice-versa, enquanto a mitologia não for racional, o filósofo terá de envergonhar-se dela. Assim, ilustrados e não-ilustrados precisarão, enfim, estender-se as mãos, a mitologia terá de tornar-se filosófica e o povo racional, e a filosofia terá de tornar-se mitológica para tornar sensíveis os filósofos. Então reinará eterna unidade entre nós. Nunca mais o olhar de desprezo, nunca mais o cego tremor do povo diante de seus sábios e sacerdotes. Só então, esperar-nos-á uma igual cultura de todas as forças, em cada um assim como em todos os indivíduos. Nenhuma força mais será reprimida. Então reinará universal liberdade e igualdade dos espíritos! Será preciso que um espírito superior, enviado dos céus, funde entre nós essa nova religião; ela será a última obra, a máxima da humanidade.
Em relação à autoria do "Programa sistemático" discute-se. O que se sabe no entanto com certeza é que o texto pode ser atribuído a um grupo de três (ou a um dentre os três) jovens ex-estudantes de Teologia do Instituto de Tübingen: Friedrich Hölderlin, Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling e Georg Wilhelm Friedrich Hegel.
O presente texto encontra-se publicado na coleção Os Pensadores. Schelling. São Paulo: Nova Cultural, 1989. pp. 42-43.
O presente texto encontra-se publicado na coleção Os Pensadores. Schelling. São Paulo: Nova Cultural, 1989. pp. 42-43.
Pinturas: William Blake (ilhado)...
terça-feira, 18 de setembro de 2007
Um confronto à ortodoxia produtivista
O método desviante
Por Jeanne Marie Gagnebin
Algumas teses impertinentes sobre o que não fazer num curso de filosofia
Como uma boa e velha professora de filosofia, prefiro cercear o assunto, amplo demais, por caminhos negativos, desvios e atalhos que não parecem levar a lugar algum. Digo “professora de filosofia”, porque meu território de atuação é, primeiramente, a sala de aula e a dinâmica com os estudantes, com todas as vantagens e todas as restrições que o ensino universitário no Brasil traz consigo. E digo também uma “velha” professora de filosofia porque posso me permitir, hoje, nesse momento de minha carreira acadêmica, algumas provocações que não vão (pelo menos, assim o espero!) colocar em questão nem meu contrato nem meu emprego. Imagino que os jovens colegas, com ou sem vaga ainda, não ousariam pensar de tal maneira, pelo menos explicitamente, porque têm que assegurar primeiro seu lugar no sol. Ofereço a eles um pequeno descanso na sombra.
Primeira regra para o reto ensino, em particular, o reto ensino da filosofia: não temer os desvios, não temer a errância. Os programas e “cronogramas” somente servem de esboços utópicos do percurso de uma problemática. Não esquecer que o tempo é múltiplo: não é somente “chronos” (uma concepção linear que induz falsamente a uma aparência de causalidade), mas é também “aiôn” (esse tempo ligado ao eterno, que, confesso, ainda não consegui entender...) e, sobretudo, “kairos”, tempo oportuno, da ocasião que se pega ou se deixa, do não previsto e do decisivo. Quando algo acontece na aula, quando algo pode ser, subitamente, uma verdadeira questão (para todos: estudantes e professor, não só para este último), aí vale a pena demorar, parar, dar um tempo, descrever o impasse e, talvez, perceber que algo está começando a ser vislumbrado, algo que ainda não tinha sido pensado (não por ninguém na tradição filosófica inteira, isso é abstrato, mas por ninguém dos participantes concretos agora e aqui na aula), algo novo e, portanto, que não sabemos ainda como nomear.
Segunda regra para o reto ensino, já cheio de desvios: não ter medo de “perder tempo”, não querer ganhar tempo, mas reaprender a paciência. Essa atitude é naturalmente muito diferente, imagino, num ensino dito técnico, no qual os estudantes devem aprender várias técnicas, justamente, vários “conteúdos”, ensino essencial para o bom funcionamento de várias profissões. Mas, no ensino da filosofia (e talvez de mais disciplinas se ousarmos pensar melhor), paciência e lentidão são virtudes do pensar e, igualmente, táticas modestas, mas efetivas, de resistência à pressa produtivista do sistema capitalista-mercantil-concorrencial etc. etc. (esqueci de dizer que a velha professora tinha 20 anos em 1968). Lyotard disse isso lindamente: “Si l’un des principaux critères de la réalité et du réalisme est de gagner du temps, ce qui est, me semble-t-il, le cas aujourd’hui, alors le cours de philosophie n’est pas conforme à la réalité d’aujourd’hui. Nos difficultés de professeurs de philosophie tiennent essentiellement à l’exigence de la patience. Qu’on doive supporter de ne pas progresser (de façon calculable, apparente), de ne faire que commencer toujours, cela est contraire aux valeurs ambiantes de prospective, de développement, de ciblage, de performance, de vitesse, de contrat, d’exécution, de jouissance” 1 (« Le Postmoderne Expliqué aux Enfants », Galilée, 1986, Paris, pp. 158/159).
Terceira regra desviante: não querer ser “atual”, estar na moda, up to date, mas assumir o anacronismo produtivo, uma não-conformidade ao tempo (Unzeitgemässheit, dizia Nietzsche), não correr atrás das novidades (mercadorias intelectuais ou não), mas perceber o surgimento do devir no passado antigo ou no presente balbuciante, hesitante, ainda indefinido e indefinível. Deixar que essa hesitação possa desabrochar. Não procurar por normas e imperativos, mesmo na desorientação angustiante, mas conseguir dizer, de maneira diferenciada, as dúvidas. (Caro leitor, você já percebeu a quantos imperativos somos submetidos, somente andando 10 km na cidade ou lendo uma revista? O tempo do imperativo é o da propaganda).
Resistir, portanto à tentação do professor e do “intelectual” em geral de ter de encontrar uma saída, uma solução, uma lei, uma verdade, um programa de partido ou não. Agüentar a angústia. Adorno dizia que essa dimensão era uma dimensão de resistência não só ao sistema dominante do mundo administrado, mas também aos sonhos de dominação do pensamento. Não querer colocar uma ordem necessária onde há primeiro, desordem, não confundir “taxinomia”, arranjo em várias gavetas com pensamento -pois pensar é, antes de mais nada, duvidar, criar caminhos, perder-se na floresta e procurar por outro caminho, talvez inventar um atalho.
Quarta regra de método desviante (“Método é desvio”, dizia um velho mestre quase chinês, Walter Benjamin): não se levar tão a sério assim, só porque estudou latim e grego ou fez doutorado na Alemanha ou consegue entender Heidegger. Mais radicalmente: não levar demais a sério as “opiniões” pessoais, em particular as suas. São, no melhor dos casos, somente a ocasião de ir além delas, do reino dito encantado das “idéias” e “crenças” subjetivas. Não cair na ilusão liberal de que a liberdade se esconde nas escolhas individuais, arbitrárias e/ou manipuladas. Se há algo que a reflexão filosófica pode realmente ajudar a pensar é a necessidade de ultrapassar, de ir além -isto é de “transcender”- os pequenos narcisismos individuais para vislumbrar “o vasto oceano da Beleza” (dizia o velho Platão), o Reino do Espírito, dizia outro velho senhor idealista, hoje talvez digamos o “enigma do Real” ou, então, as linhas de fuga e os acontecimentos.
Essa dimensão “objetiva” (não em oposição ao “sujeito”, mas levando em questão a materialidade e a historicidade das “coisas” que nos resistem e nos atraem) do pensamento justifica a exigência, imprescindível, da diferenciação conceitual, isto é, do esforço e da ascese (askesis, ou exercício, em grego) conceituais: não se trata de malabarismos intelectuais complicados, mas de tentativas sempre reiteradas de compreender o “real” sem violentá-lo. Esse esforço, essa “paciência do conceito”, vai, de novo, contra a pressa reinante, e também contra os “achismos” tão prezados na imprensa e na televisão, nos meios ditos de “comunicação”. Também resiste à ilusão de que o debate de idéias, como se diz, seja um enfrentamento de dois ou mais oradores brilhantes (ou não) que tentam, cada um, fazer prevalecer sua opinião sobre a opinião do outro.
A ascese conceitual também implica o aprendizado de um certo despojamento da vontade individual e concorrencial de auto-produção perpétua em detrimento dos outros. Não se trata de ser melhor que os outros, mas de estar atento às possibilidades de transformação da realidade, portanto, de não passsar ao lado dela, de compreendê-la melhor, na sua possível mutabilidade. Isso implica, aliás, que, muitas vezes, não sei, não posso dizer nada que ajude, portanto também ouso calar-me, não cedo à tentação de falar sobre tudo e qualquer coisa.
Conclusão: não se dobrar aos imperativos mercantis-intelectuais da “produção” de “papers” e da contagem de pontos nos inúmeros “curricula” e relatórios administrativos-acadêmicos: se tiver que contar “pontos”, conte para que lhe deixem em paz, mas não confunda isso com trabalho intelectual ou mesmo espiritual. Já que temos o privilégio de lecionar filosofia, isto é, uma coisa de cuja utilidade sempre se duvidou, vamos aproveitar esse grande privilégio (de classe, de profissão, de tempo livre) e solapar alguns imperativos ditos categóricos e racionais: contra a pressa, a produtividade, a concorrência, a previsibilidade, a especialização custe o que custar, as certezas e as imposições. Podemos exercer, treinar, mesmo numa sala de aula, sim, pequenas táticas de solapamento, exercícios de invenção séria e alegre, exercícios de paciência, de lentidão, de gratuidade, de atenção, de angústia assumida, de dúvida, enfim, exercícios de solidariedade e de resistência.
Conclusão: não se dobrar aos imperativos mercantis-intelectuais da “produção” de “papers” e da contagem de pontos nos inúmeros “curricula” e relatórios administrativos-acadêmicos: se tiver que contar “pontos”, conte para que lhe deixem em paz, mas não confunda isso com trabalho intelectual ou mesmo espiritual. Já que temos o privilégio de lecionar filosofia, isto é, uma coisa de cuja utilidade sempre se duvidou, vamos aproveitar esse grande privilégio (de classe, de profissão, de tempo livre) e solapar alguns imperativos ditos categóricos e racionais: contra a pressa, a produtividade, a concorrência, a previsibilidade, a especialização custe o que custar, as certezas e as imposições. Podemos exercer, treinar, mesmo numa sala de aula, sim, pequenas táticas de solapamento, exercícios de invenção séria e alegre, exercícios de paciência, de lentidão, de gratuidade, de atenção, de angústia assumida, de dúvida, enfim, exercícios de solidariedade e de resistência.
(Publicado em 3/12/2006)
Jeanne Marie Gagnebin é professora titular de filosofia na PUC/SP e livre docente no departamento de teoria literária da Unicamp, autora, entre outros, de "História e Narração em Walter Benjamin" (Perspectiva, 1994) e de "Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História" (Imago, 1997).
Jeanne Marie Gagnebin é professora titular de filosofia na PUC/SP e livre docente no departamento de teoria literária da Unicamp, autora, entre outros, de "História e Narração em Walter Benjamin" (Perspectiva, 1994) e de "Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História" (Imago, 1997).
1 - “Se um dos principais critérios da realidade e do realismo é ganhar tempo, o que é, me parece, o caso hoje em dia, então o curso de filosofia não se ajusta à realidade de hoje. Nossa dificuldade de professores de filosofia concerne essencialmente à exigência de ser paciente. Que se deva suportar não progredir (de maneira calculável, aparente), ter que começar sempre, isso é contrário aos valores dominantes de prospectiva, de desenvolvimento, de alvo, de performance, de velocidade, de contrato, de execução, de gozo.” (tradução da Redação)
Publicado originalmente em Trópico/Documenta
(Fotos: Filosofia em uma situação ameaçadora
Verão da árvore da filosofia
- paisagens de Biel, Hokkaido, Japão ).
sábado, 15 de setembro de 2007
Gordon Pym
24 de Julho. Acordamos grandemente revigorados e até com uma certa frescura de espírito. Não obstante nossa situação calamitosa - desconhecendo nossa geografia de curso, mas certos de que estávamos longe da costa; sem mais reservas de alimentos do que o estritamente necessário para uma quinzena, mesmo com um regime rigorosamente racionado; praticamente sem água e vagando ao sabor das ondas e do vento, num mero casco sem mastro, leme ou velas -, mesmo assim, as angústias e perigos infinitamente piores dos quais tínhamos tão providencialmente escapado levavam-nos a encarar o que agora se nos ocorria como não mais do que um contratempo de rotina, tão relativo é o juízo que governa o bem e o mal.
(Edgar Allan Poe. O Relato de Arthur Gordon Pym.)
sexta-feira, 14 de setembro de 2007
Pequeno (poema) burguês
quinta-feira, 13 de setembro de 2007
Orégano
Cuando aprendí con lentitud
a hablar
creo que ya aprendí la incoherencia:
no me entendía nadie, ni yo mismo,
y odié aquellas palabras
que me volvían siempre
al mismo pozo,
al pozo de mi ser aún oscuro,
aún traspasado de mi nacimiento,
hasta que me encontré sobre un andén
o en un campo recién estrenado
una palabra: orégano,
palabra que me desenredó
como sacándome de un laberinto.
No quise aprender más palabra alguna.
Quemé los diccionarios,
me encerré en esas sílabas cantoras,
retrospectivas, mágicas, silvestres,
y a todo grito por la orilla
de los ríos,
entre las afiladas espadañas
o en el cemento de la ciudadela,
en minas, oficinas y velorios,
yo masticaba mi palabra orégano
y era como si fuera una paloma
la que soltaba entre los ignorantes.
Qué olor a corazón temible,
qué olor a violetario verdadero,
y qué forma de párpado
para dormir cerrando los ojos:
la noche tiene orégano
y otras veces haciéndose revólver
me acompañó a pasear entre las fieras:
esa palabra defendió mis versos.
Un tarascón, unos colmillos (ibansin duda a destrozarme)
los jabalíes y los cocodrilos:
entonces
saqué de mi bolsillo
mi estimable palabra: orégano,
grité con alegría,
blandiéndola en mi mano temblorosa.
Oh milagro, las fieras asustadas
me pidieron perdón y me pidieron
humildemente orégano.
Oh lepidóptero entre las palabras,
oh palabra helicóptero,
purísima y preñada
como una aparición sacerdotal
y cargada de aroma,
territorial como un leopardo negro,
fosforescente orégano
que me sirvió para no hablar con nadie,
y para aclarar mi destino
renunciando al alarde del discurso
con un secreto idioma, el del orégano.
Pablo Neruda (em "Defectos Escogidos")
terça-feira, 11 de setembro de 2007
Lisbon Revisited (1926)
Nada me prende a nada.
Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.
Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.
Correram cortinas por dentro de todas as hipóteses que eu poderia ver na rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram,
Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...
Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago;
ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.
Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.
Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...
Outra vez te revejo,
Sombra que passa através das sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...
Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!...
Álvaro de Campos - 15.01.1928.
Pintura Mário Eloy (1900 - 1950), Bailarico no bairro - 1936
domingo, 9 de setembro de 2007
Um rabisco
mescla de vozes e sons e ruídos no turvo da linguagem
conduzem ao não-estado de torpor, de não fazer, de não viver
de estar entre os destroços
de ser um destroço
na iminência do desastre
são rabiscos travestidos em formas-de-vida
informes inacabados inacabáveis
infames ao estar preso do ego
infames à infâmia do sou
perfurantes projéteis
proliferantes restos de poeira pedregosa
Atravessar a linguagem, estilhaçar a liguagem
para encontrar a vida, sim ainda é velhavida!, até então teatralmente mascarada
tragicomicamente mascarada em morte.
quinta-feira, 6 de setembro de 2007
Terror ao caos
Os Sistemas, como dizia Péguy, são sistemas de tranquilidade, que amamos porque nos sentamos sobre eles. É uma forma de vivermos tranqüilos, protegidos dos perigos e ciladas do Caos, da obscuridade, do mistério, do mais além. São bastiões contra a angústia que se instaura, mal assomamos um pouco a cabeça nessa terra pavorosa. Refugiamo-nos nos Sistemas, nas Igrejas, nos Partidos, nas Ortodoxias, como crianças nas saias da mãe. São, em suma, manifestações de covardia.
O homem livre, o herético, tem de estar possuído de um valor quase demencial.
O homem livre, o herético, tem de estar possuído de um valor quase demencial.
(SÁBATO, Ernesto. Heterodoxia. Campinas: Papirus, 1993. p. 77.)
quarta-feira, 5 de setembro de 2007
Um aforismo
sábado, 1 de setembro de 2007
Celestial Echoes
I. Fantasia e experiência
Nada pode dar idéia da dimensão da mudança ocorrida no significado da experiência como a reviravolta que ela produz no estatuto da imaginação. Dado que a imaginação, hoje eliminada do conhecimento como sendo "irreal", era para a antiguidade o medium por excelência do conhecimento. Enquanto mediadora entre sentido e intelecto, que torna possível, no fantasma, a união de forma sensível e intelecto possível, ela ocupa, na cultura antiga e medieval, exatamente o mesmo lugar que a nossa cultura confere à experiência. Longe de ser algo irreal, o mundus imaginabilis tem a sua plena realidade entre o mundus sensibilis e o mundus intellegibilis, e é, aliás, a condição de sua comunicação, ou seja, do conhecimento. E, a partir do momento em que é a fantasia que, segundo a antiguidade, forma as imagens dos sonhos, explica-se a relação particular que, no mundo antigo, o sonho mantém com a realidade (como na adivinhação per somnia) e com o conhecimento eficaz (como na terapia médica per incubazione). Isto ainda é verdadeiro nas culturas primitivas. Devereus relata que os mohave (nisto não dissímeis das outras culturas xamânicas) crêem que os poderes xamânicos e o conhecimento dos mitos, assim como das técnicas e dos cantos que a eles se referem, são adquiridos no sonho. E não só: se viessem a ser adquiridos em estado de vigília, permaneceriam estéreis e ineficazes até que fossem sonhados: “assim um xamã, que me permitira anotar e aprender os seus cantos terapêuticos rituais, explicou-me que eu não teria igualmente poder de curar, pois não havia potencializado e ativado os seus cantos através do aprendizado onírico.”
Na fórmula em que o aristotelismo medieval sintetiza esta função mediadora da imaginação ("nihil potest homo intelligere sine phantasmate"), a homologia entre fantasia e experiência é ainda perfeitamente evidente. Mas, com Descartes e o nascimento da ciência moderna, a função da fantasia é assumida pelo novo sujeito do conhecimento: o ego cogito (é preciso notar que, no vocabulário da filosofia medieval, cogitare significava antes o discurso da fantasia que o ato da inteligência). Entre o novo ego e o mundo corpóreo, entre res cogitans e res extensa, não há necessidade de nenhuma mediação. A expropriação da fantasia, que daí decorre, manifesta-se na nova maneira de caracterizar a sua natureza: enquanto ela não era – no passado – algo de , mas era, sobretudo, a coincidência entre subjetivo e objetivo, de interno e externo, de sensível e de inteligível, agora é o seu caráter combinatório e alucinatório, que a antiguidade relegava ao plano de fundo, a emergir em primeiro plano. De sujeito da experiência, o fantasma se torna o sujeito da alienação mental, das visões e dos fenômenos mágicos, ou melhor, de tudo aquilo que fica excluído da experiência autêntica.
(AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005. pp. 33-34.)
Nada pode dar idéia da dimensão da mudança ocorrida no significado da experiência como a reviravolta que ela produz no estatuto da imaginação. Dado que a imaginação, hoje eliminada do conhecimento como sendo "irreal"
Na fórmula em que o aristotelismo medieval sintetiza esta função mediadora da imaginação ("nihil potest homo intelligere sine phantasmate"
(AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005. pp. 33-34.)
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