Entrevista com Roberto Esposito
O senhor elaborou o
conceito de “impolítico” compreendido não como anti-política, mas como
tentativa de uma política mais radical...
O tema do impolítico nasce da sensação de que as categorias
do léxico político contemporâneo estejam, de algum modo, exauridas e não
iluminam realmente aquele âmbito do agir humano que chamamos “política”. As
causas de tais exaurimentos são múltiplas e têm diversas origens, mas encontram
um ponto de enraizamento irruptivo na crise dos anos 20 e 30 deste século [séc.
XX], que não por acaso é o período em que, no âmbito da filosofia, Heidegger
opera a desconstrução da metafísica e Wittgenstein realiza uma tentativa
similar no âmbito da linguagem científica. Naqueles anos, na obra de escritores
como Hermann Broch ou Maurice Blanchot, de filósofos como Simone Weil, Georges
Bataille e Hannah Arendt, de teólogos como Karl Barth, emerge uma linha de
pensamento que, ainda que na extrema diversidade existente entre eles, procura
tomar os conceitos e a realidade da política “pelas costas”, isto é,
observá-los também desde o lado que normalmente o pensamento político clássico
deixa à sombra ou, de modo decisivo, esconde. Essa tentativa é justamente o que
defini “impolítico”, escolhendo tal termo também para marcar a diferença do que
emerge desses autores em relação a outras noções, em aparência afins, como,
p.ex., a anti-política. A relação impolítica, como aliás demonstram as
biografias de quase todos os autores que pesquisei, não é, com efeito,
contrária à política, não é portanto anti-política, mas é uma forma de
radicalização do engajamento político no pensamento. O impolítico, em
substância, é a relação intelectual que por um lado observa a realidade
política – isto é, os conflitos de interesse, o poder – de modo muito realista,
enquanto, por outro lado, não considera essa realidade mesma um valor em si,
não lhe fazendo nenhuma apologia e, assim, ausentando toda teologia e filosofia
da política. O impolítico, em suma, é uma maneira desconstrutiva de observar a
política que traz à luz como, geralmente, a tradição filosófico-política sempre
insistiu no problema da ordem – isto é, em como ordenar a sociedade –, em qual
seja o melhor regime e, assim, sempre acabou por evitar a questão de fundo da
própria política, qual seja, o conflito. No pensamento filosófico-político
moderno, por exemplo, já em Hobbes, que é seu iniciador, a irredutibilidade do
conflito é substancialmente recalcada. Hobbes diz, com efeito, que para que
haja ordem todo tipo de conflito deve desaparecer, portanto, é preciso um
soberano que exercite o poder sem deixar espaço não apenas a alguma forma de
conflitualidade, mas, de fato, a qualquer forma de agregação. A ordem, desse
modo, foi pensada como radicalmente contraposta ao conflito que, assim, foi
visto como eliminável. Ao contrário dessa concepção, o impolítico procura fazer
reemergir a realidade, a irredutibilidade, do conflito pois, como já dizia
Platão, “em cada homem, em cada alma, há uma luta entre diversas partes,
cavalos que levam a biga em direções opostas”. O conflito, como sabiam também
santo Agostinho ou Maquiavel, é uma realidade originária, um costume
irrenunciável da realidade e da civitas, pois
está dentro de cada um de nós.
Mas a ideia do
contrato, como é compreendida pelo liberalismo, não leva em conta essa
originalidade e irredutibilidade do conflito?
A ideia do contrato, formulada por Hobbes, por Rousseau e
por outros pensadores, e que é em grande parte transferida ao liberalismo,
parte do pressuposto de que originariamente, ao menos do ponto de vista lógico,
os homens entre si estejam numa posição de absoluta igualdade e podem, desse
modo, firmar um contrato que, como tal, portanto, implica uma substancial
paridade entre os contraentes. Autores como o já citado Maquiavel, Vico e o
próprio Hegel, objetam contra tal concepção dizendo que, assim como na
realidade essa igualdade originária jamais existiu, é preciso estar ciente de
que as relações de força precedem e determinam a forma da contratação, fato
que, dentre outras coisas, significa que o direito tem a ver com a força. Tendo
em conta tudo isso, é preciso então reconhecer que por certo o liberalismo
propõe-se como uma teoria que elimina, ou ao menos neutraliza, as relações de
força por meio da lei, mas isso não suprime o fato de que, na realidade, mesmo
o liberalismo de algum modo legitima as relações de força preexistentes. Essa
legitimação é devida também ao fato de que o liberalismo coloque como seu
fundamento um modelo individualista do ser humano, e o modelo individualista é,
ao menos no início, um modelo não solidário. Não por acaso Hobbes sustenta que
antes do contrato as relações entre os indivíduos sejam aquelas do homo homini lupus, isto é, relações
agressivas. Também na origem da tradição liberal, portanto, há essa consciência
de que os indivíduos estão em perpétua competição, e, com efeito, o liberalismo
ao mesmo tempo certamente regula e legitima as
forças existentes. No liberalismo esses dois aspectos são, para mim,
inseparáveis, mesmo se tendo a acentuar o segundo, sobretudo em relação àqueles
que apresentam o liberalismo como um Éden, como a solução definitiva.
Se o conflito não é
de nenhum modo reduzível, e se as relações sociais são portanto marcadas pela
força, então também a democracia só pode ser uma técnica de gestão de tal
conflito e não um sistema centrado sobre valores partilhados...
Também com respeito à democracia, como ao contrato social,
existem duas grandes opções teóricas. Uma é aquela que, a partir de Rousseau,
chegando, por certos caminhos, também a Marx, considera a democracia
positivamente, entendendo-a como o sistema social baseado sobre o valor da
igualdade. Por consequência, tal sistema seria mais do que um simples sistema
de regras, pois conteria em si uma opção, um valor, sempre por ser atingido e
que, enquanto tal, orienta-o. A outra linha de pensamento, em particular Weber,
mas também Kelsen, Schumpeter e tantos outros, sustenta, ao invés, que a
democracia não pode ser centrada sobre um valor porque não é possível definir,
justo por reconhecer a igualdade entre os membros da sociedade, qual seja o
valor supremo enquanto faltar qualquer instância superior. Para tais
pensadores, portanto, a democracia só pode ser uma técnica, isto é, um conjunto
de regras e de procedimentos que regulam o confronto político, em cujo interior
os valores sustentados pelos diversos grupos sociais remetem-se entre si. Creio
que o que deve ser evidenciado, em relação a essas duas diferentes opções, é
que entender a democracia como valor – ou ainda, como o maior valor a ser
cumprido –, mesmo que ela seja o contrário do totalitarismo, pode causar o
risco de um deslocamento para uma forma totalitária. Isso acontece porque
compreender a democracia como a encarnação de um valor implica, de algum modo,
que deva haver alguém que assim encarne aquele valor e o faça ser respeitado
também por aqueles que não se sentem representados por tal valor.
Dito isso, entretanto, não se pode esquecer que também a
democracia compreendida como técnica, como conjunto de regras ou de
procedimentos, tem fortíssimos limites. Não se pode esquecer, com efeito, que
mesmo a técnica não é neutra, antes de mais nada porque existe quem tem os
instrumentos práticos e conceituais para gerenciá-la e quem, por outro lado, de
tais instrumentos está privado. Exatamente por considerar os riscos e os
limites dessas diversas concepções da democracia que nasce a minha tese, que,
por um lado, interpreta a democracia de modo essencial como um conjunto de
regras, mas, por outro, sustenta que justo por isso ela sempre deve ter como
pano de fundo um chamado a um “outro de si”, isto é, o chamado impolítico à
comunidade. O que procuro indicar, em suma, é um modo de manter a própria
democracia em um difícil equilíbrio e impedir tanto que ela seja vista como um
valor insuperável quanto que o simples fato de ser uma técnica, que por vezes
gerencia os valores sociais, possa ser visto como uma solução em si.
Mas falar de
“comunidade” não é de per se contraditório
em relação à ideia de política, de polis?
Ao contrário, é preciso estar atento em relação aos termos.
A polis, a esfera política, é o
âmbito, o espaço público, que se constitui colocando em relação entre si os
sujeitos, os indivíduos enquanto tal, sem se perguntar de onde tais indivíduos
vêm, onde se origina a sua “consistência” que a polis deveria colocar em relação. A comunidade, ao menos no modo
como procurei delineá-la no meu último livro, é, ao contrário, aquilo que
coloca em crise a forma do sujeito, mas que a este também é subjacente, pois há
comunidade onde algo da subjetividade, compreendida como uma forma plena e
realizada, rompe-se, e é apenas nessa ruptura que realmente se situa a
comunicação. A comunicação não pode ser, e não é, aquela da esfera pública,
pois na esfera pública a comunicação vem como contratação – no melhor dos casos,
como diálogo, isto é, como reconhecimento recíproco –, enquanto o pensamento
radical da comunidade implica algo a mais, algo que precede a própria
constituição da subjetividade. Em suma, comunidade é o munus, isto é, o “dom” que é também “dever”, que se mostra quando
os sujeitos sentem que não são realmente “proprietários” de si mesmos, que não
são “feitos por si”, mas que são “criaturas”; que aquilo que os faz ser “sujeitos” não depende deles e
que, portanto, a identidade não é uma propriedade. A comunidade, desse modo,
sempre tem a ver com o impróprio, com o anônimo, e justo porque é dom e dever
anônimo, por um lado, jamais existe, jamais é plenamente realizada, enquanto, por outro lado, sempre
existe, pois originariamente somos em comum, somos lançados em um mundo que nos
precede.
Por tudo isso, a comunidade não é realizável como forma
política – quando isso aconteceu, quando uma forma política diz de si mesma “Eu
sou a comunidade, eu a realizo plenamente”, como sabemos, chegou-se ao
totalitarismo, mas sempre por isso, todavia, a comunidade é também o horizonte que
a política deveria afrontar de modo contínuo.
De fato, se devêssemos procurar um lugar onde a comunidade
pode emergir, é mais fácil que tal lugar seja aquele em que haja situações de
extremo mal estar, por exemplo, um campo de refugiados, mais do que em um
parlamento.
O confronto parlamentar, com efeito, é possível apenas
enquanto se baseia na identificação dos sujeitos individuais com seu papel –
parlamentares, deputados, líderes de partido –, de modo que é um confronto no
qual a identidade não está em jogo, justo por basear-se naquela identidade,
que, pelo contrário, eles falam e contratam. De modo oposto, em um encontro
improvisado, em um encontro entre indigentes em um hospital, por exemplo, as
identidades não são mais máscaras, não exprimem mais um papel, e é exatamente
quando a institucionalidade se fragmenta, rompe-se, que a comunidade,
destituindo a instituição, emerge. Tudo isso no plano teórico, pois nas
relações normais certa institucionalidade está sempre presente, mas o
importante é a consciência de que essa institucionalidade não é o todo.
O seu apelo à
comunidade como horizonte da política é, em certo sentido, um modo para manter
constantemente aberto o jogo entre o que define os indivíduos e a representação
que deles é feita...
Que o nosso “existir” [esserci]
seja sempre um “ser com”[essere con],
isto é, que nenhum de nós tenha em si a sua origem, parece-me um fato evidente
que reivindico e defendo, mas é também verdade que, justo em virtude desse
originário “ser com”, esse nosso próprio “existir”[esserci] apenas pode ser sempre representado. Dizíamos antes: não
se sai do papel, daquilo que somos para os outros, e essa impossibilidade faz
parte da nossa historicidade, esta que, entretanto, não exaure o elemento
originário do nosso “existir” [esserci].
Isso, em outras palavras, quer dizer que no ato do nascimento ou no átimo da
morte, isto é, nos dois momentos decisivos da nossa existência – mas também no
instante da absoluta dor – o ato da representação, do papel, daquilo que alguém
representa, quase falta por completo e deixa apenas aquilo que é. Essa é
claramente uma condição limite, uma condição que na vida efetiva é quase
ausente, porém, é uma condição de algum modo pensável. A comunidade é aquilo
que nesse pensamento-limite se mostra, é o munus
– do qual advém, justamente, communitas,
comunidade –, o dom/comprometimento, que nos determina mas que sempre nos
foge, nos ultrapassa. É por isso que a dimensão da comunidade é sempre marcada
pela ausência, pelo vazio, pelo risco, e não por uma presença cuja apropriação
nos seria possível.
A comunidade, ao
menos como o senhor a trata, parece assim uma dimensão dificilmente atingível
nas sociedades contemporâneas, estas que são de todo conformadas nos paradigmas
da modernidade e centradas sobre a técnica...
Sem dúvidas tenho a tendência a ver comunidade e
modernidade em termos prevalentemente opositivos, pois o que a comunidade
indica contrasta com o paradigma fundante da modernidade. De fato, enquanto a
comunidade apela constantemente ao originário “ser com” e ao seu caráter
inapreensível, a modernidade, pelo contrário, afirma-se segundo o paradigma da
imunização e da concretização. Com a modernidade, o indivíduo começa a pensar
sua existência como autofundada por completo, portanto, como substancialmente
bastante a si mesma e que deve salvaguardar como tal e, para tanto, para operar
essa salvaguarda, torna-se necessário construir recintos ao seu redor e é
preciso imunizá-la do contágio e do contato com os outros. Seria possível até
mesmo dizer, pensemos na Aids e também na imigração, que o problema central que
emerge no nosso tempo é o da imunologia em sentido médico, jurídico e político.
Dito isso, entretanto, ainda estou convicto de que, hoje,
pensar a comunidade não quer necessariamente dizer vê-la desde uma perspectiva
nostálgica, como um retorno ao pré-moderno ou a uma fase pré-técnica. Não creio
que comunidade, modernidade e técnica – esta que não me parece remeter apenas à
modernidade – sejam necessária e radicalmente contrapostas, mas, ao contrário,
sou levado a pensar que é preciso imaginar essa ideia de comunidade tanto nos
valores da modernidade quanto na própria técnica.
Por certo, como expuseram Heidegger e outros pensadores, a
técnica, e em particular a técnica moderna, constituiu-se a partir de uma
lógica orientada ao domínio e, desse modo, tem em si elementos potencialmente
destrutivos e impositivos. De outro lado, entretanto, é também verdade que a
dimensão técnica provavelmente é ligada à nossa própria origem como homens. Um
homem fora da dimensão técnica não é pensável.
No fundo, não
realiza também um gesto técnico o homem primitivo de Rousseau quando apanha a
maçã da árvore, isto é, um gesto lançado em vistas de um fim?
Em substância, estou convencido de que pensar a técnica
apenas em sentido negativo, vê-la como má, não nos leva a nenhum lugar. É por
isso que fui levado a presumir que possa existir uma técnica não destrutiva da pietas constitutiva da comunidade; isto
é, uma técnica não agressiva. A dimensão de poder e de domínio presente na
técnica está ligada à prevalência assumida pelo “saber fazer” sobre o simples
“fazer”, ou seja, no predomínio que a sistematização e a operatividade do saber
têm hoje em relação à capacidade do agir humano. Mas se nós conseguíssemos retirá-la
do “saber” e a reconduzisse ao simples “fazer”, não seria de algum modo
possível à centelha que a técnica apagou fulgurar novamente? No fundo, é um
pouco daquilo que dizia também Heidegger quando afirmava que a salvação mora ao
lado do perigo. Tudo isso, contudo, é um discurso aberto; não tenho convicções
definitivas sobre o assunto, apenas sugestões.
Talvez o problema
esteja no fato de que a técnica, a partir de certo momento, não foi mais vista
como o necessário fazer do homem, mas como um operar a serviço de outra coisa
como, por exemplo, a economia...
Em relação a isso estou claramente de acordo: a economia é,
com efeito, a esfera constituída exclusivamente pelo proprium, pela propriedade, pela apropriação, e é por isso que
estou convencido de que uma comunidade jamais possa ser pensada em sentido
econômico, portanto, segundo as categorias que a “ciência econômica” formaliza
e segundo as lógicas inauguradas pelo pensamento da economia como um espaço separado.
São lógicas e categorias tão arraigadas que também o comunismo, nascido pela
necessidade de a ela se opor, acabou por assumir como seu centro as mesmas
categorias de produção e produtividade que queria combater. A comunidade, ao
contrário, é por natureza ineconômica,
aneconômica, justo porque é o que se mostra de um “dom” e de uma
“obrigação” que, como tais, sempre escapam à reificação, portanto, também à
reificação econômica. A única economia pensável no plano da comunidade é, como
Bataille justamente sublinhava quando falava da dépense, aquela do desperdício,
a economia paradoxal que inclui de modo constitutivo a perda, a não
rentabilidade do agir econômico.
E ainda assim a
racionalidade de tipo econômico invade sempre mais todo âmbito, mesmo aquele da
política...
Não há dúvidas de que a política tenha sido “economizada”,
isto é, seja sempre e em toda parte gerida com base em considerações
econômicas, isto que, de fato, está radicalmente em contraste com a ideia de
comunidade. A comunidade, sendo perda, esvaziamento da subjetividade, é algo
que todos, também nós que dela falamos positivamente, temem, pois se colocar em
comum, colocar-se em jogo, é um risco. Uma das maneiras de responder a tal
temor é a economização. Não por acaso as sociedades contemporâneas, sobretudo
as ocidentais, que justo em virtude dos valores da modernidade sentem de modo
profundo o risco comunitário – o contínuo emergir de uma exigência comunitária
–, tendem a disso se salvaguardar acumulando recursos e/ou apropriando-se dos
recursos de outrem, isto é, como dizia antes, com a presumida imunização
representada pela acumulação.
Mas onde se
situaria, nas sociedades ocidentais, tal exigência comunitária?
Para mim, parece que nas milhões de pessoas que
voluntariamente fazem com que essa exigência seja tão facilmente visível. O
voluntariado só se explica com essa exigência comunitária, mesmo se não quero
dizer que apenas esta exista. Para mim, parece que justo porque o político já
foi inteiramente sugado pelo econômico e pelo técnico-especializado é que hoje
tenha ficado de todo descoberto o social, este que (de modo óbvio, sem
enfraquecimento) se tornou o lugar onde, talvez, de maneira mais fácil, seja
possível voltar a praticar uma política que não seja só tática ou puro jogo entre
representações sempre mais distante daquilo que deveriam representar. Além de
tudo, o terreno social é justo aquele em que hoje acontece o encontro com as
culturas não ocidentais, e isso remete, mais uma vez, ao munus que, como dizia antes, acomuna todos os homens. Por certo uma
realização efetiva e completa da comunidade não é possível, mas levando em
conta aquilo que ela indica, é possível notar como muito do que acontece no
terreno social seja particularmente significativo. Paris, por exemplo, é uma cidade
que, mesmo com todas as suas contradições e violências, me faz pensar que no
seu interior de algum modo a comunidade lampeje. Em Paris, por uma série de motivos históricos, culturais e de
outros gêneros, realizou-se uma efetiva fusão entre as várias culturas e civilizações; o amarelo, o negro, o
branco estão em todas as dimensões sociais e, pelas ruas, é possível ver com
frequência rapazes negros abraçados com moças brancas. Com isso, repito, não
quero dizer que em Paris esteja sendo realizada “a comunidade”, mas por certo
dela se tem o sentido, sobretudo em alguns ambientes. Para que isso aconteça
não basta colocar juntas as diversas culturas, pois também nas cidades
americanas as culturas são tantas mas, diferentemente de Paris, estão
restringidas dentro de pedaços definidos da cidade, de modo que há o bairro
chinês, o japonês e assim por diante, cada um fechado em si mesmo e
tendencialmente em conflito com os outros, como se viu bem durante as desordens
de Los Angeles. Procurando colocar-se desde o ponto de vista da comunidade, a
questão do multiculturalismo é particularmente complexa e deve ser tratada com
muita atenção. O meu livro sobre a comunidade nasce também um pouco em polêmica
com o neocomunitarismo americano, que se preocupa apenas com a definição de
quais deveriam ser as relações permitam a coexistência das diversas culturas,
tomando a existência destas como um dado de fato que é aceito em si, no seu
aparente fechamento, do mesmo modo com o qual o liberalismo, como vimos no
início, aceita as relações de força que preexistem ao contrato. Mas se “multiculturalismo”
significa apenas que toda parte deve ter os seus direitos, que deve ter sua
bandeira, parece-me que está indo na direção de todo oposta àquela comunitária,
para a qual, ao invés, “multiculturalismo” só pode significar a efetiva fusão, a contínua contaminação, entre os
homens e as culturas.
Imagem: Francisco de Goya e Lucientes. A forja. 1819. Frick Collection, New York.