segunda-feira, 28 de abril de 2014
Lágrimas
Brotam-me lágrimas
com um sentimento visceral
indiscernível, impronunciável.
Toda palavra é vã
a força da vida precária se desfaz
nenhum mistério, nenhuma sombra.
Só uma luz branca e ofuscante,
as pálpebras fazem seu trabalho
nenhuma palavra diz o peso de uma lágrima.
Me derramo como nuvem
em chuva de estilhaços indizíveis.
Crua, vida, crua.
Nenhum tempero, só a dor
do vazio existir.
Querer algum é válido.
Explosão.
Minhas vísceras jamais serão lidas
Onde estava enquanto me esvaia?
Só um silêncio
inóspito, estrangeiro silêncio
das lágrimas que me brotam.
E seus sais destroem minha carne
inútil ilusão: a vida.
Sopram ventos hostis
E só me vem o silêncio.
Imagem: Tiziano. Maria Madalena. 1532. Galleria Palatina (Palazzo Pitti), Firenze.
sexta-feira, 25 de abril de 2014
Prefácio em prosa
Falo a vocês, homens das antípodas,
falo de homem a homem,
com o pouco que em mim permanece do homem,
com o pouco de voz que me resta na garganta,
meu sangue está nas estradas, possa, possa ele
não gritar vingança!
A caça é certa, as bestas estão cercadas,
deixe-me falar com essas mesmas palavras
que tínhamos em comum -
pouco restam inteligíveis!
Virá um dia, é certo, da sede saciada,
estaremos além da lembrança, a morte
terá terminado o trabalho do ódio,
serei um buquê de urtigas aos seus pés,
- então, bem, saibam que eu tinha um rosto
como vocês. Uma boca que suplicava, como vocês.
Quando poeira, ou mesmo um sonho, entrava
no olho, esse olho chorava um pouco de sal.
E quando um mau espinho arranhava minha pele,
daí saía um sangue tão vermelho como o seu!
É certo, como vocês era cruel, tinha
sede de ternura, de poder,
de ouro, de prazer e de dor.
Como vocês eu era ruim e angustiado
sólido na paz, ébrio na vitória,
e titubeante, desvairado à hora da derrota!
Sim, eu era um homem como os outros homens,
nutrido de pão, de sonho, de desespero. E sim,
amei, chorei, odiei, sofri,
comprei flores e nem sempre
paguei meu aluguel. Domingo ia ao campo
pescar, sob o olhar de Deus, peixes irreais,
me banhava no rio
que cantava nos juncos e comia fritas
de noite. Depois, depois, ia me deitar
fadigado, o coração exausto e cheio de solidão,
pleno de piedade de mim, pleno de piedade do homem,
procurando, procurando em vão sobre um ventre de mulher
essa paz impossível que nós tínhamos perdido
outrora, num grande pomar onde florescia,
no centro, a árvore da vida...
Li como todos vocês os jornais, todos os livros,
e nada compreendi no mundo
e nada compreendi no homem,
ainda que com frequência chegava a afirmar
o contrário. E quando a morte, a morte veio, talvez
pretendi saber o que era ela mas, verdade,
posso lhes dizer nesta hora, ela entrou toda em meus olhos atônitos,
atônitos por tão pouco compreender
- vocês compreenderam melhor do que eu?
E todavia não!
eu não era um homem como vocês.
Vocês não nasceram nas ruas,
ninguém jogou no esgoto seus pequenos
como gatos ainda sem visão,
vocês não erraram de cidade em cidade
perseguidos pelos polícias,
vocês não conheceram os desastres da aurora,
os vagões de bestas
e o soluço amargo da humilhação,
acusados de um delito que vocês não cometeram,
de uma morte ainda sem cadáver,
mudando de nome e de rosto,
para não carregar um nome vaiado
um rosto que tinha servido a todo mundo
de escarrador!
Um dia virá, sem dúvida, quando o poema lido
se encontrará diante dos seus olhos. Ele não pede
nada! Esqueçam-no, esqueçam-no! É
só um grito, que não se pode colocar em um poema
perfeito, tenho então tempo de terminá-lo?
Mas quando vocês esmagarem esse buquê de urtigas
que tinha sido eu, em um outro século,
em uma história a vocês expirada,
lembrem-se apenas que eu era inocente
e que, assim como vocês, mortais naquele dia,
tivera, eu também, um rosto marcado
pela cólera, pela piedade e alegria,
um rosto de homem, simplesmente.
1942
Benjamin Fondane. Préface en prose. trecho de L'Exode (Super flumina Babylonis), publicado na antologia Le mal de fantômes. Edição organizada por Patrice Beray e Michel Carassou com a colaboração de Monique Jutrin. Paris: Éditions Verdier, 2006. pp. 149-153. Também disponível no site do Instituto Fondane: http://fondane.net/2009/08/09/benjamin-fondane-l-exode-preface-en-prose/ (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Man Ray. Benjamin Fondane.
quarta-feira, 23 de abril de 2014
Alguns poemas de Antonio Gamoneda
*
Teve um tempo em que minhas únicas paixões eram a pobreza e a chuva.
Agora sinto a pureza dos limites e minha paixão não existiria se dissesse seu nome.
*
Lembro do frio do amanhecer, os círculos dos insetos sobre os copos imóveis, a possibilidade de um abismo cheio de luz sob as janelas abertas para a ventilação da enfermidade, o odor triste da soda cáustica.
*
Alguém entrou na memória branca, na imobilidade do coração.
Vejo uma luz debaixo da neblina e a doçura do erro me faz cerrar os olhos.
É a ebriedade da melancolia; como aproximar o rosto de uma rosa enferma, indecisa entre o perfume e a morte.
*
Não tenho medo nem esperança. Em um hotel fora do destino, vejo uma praia negra e, distante, as grandes pálpebras de uma cidade cuja dor não me concerne.
Venho do metileno e do amor; tive frio sob os tubos da morte.
Agora contemplo o mar. Não tenho medo nem esperança.
*
Eras sábio e covarde, estás ferido entre as mulheres úmidas, teu pensamento é apenas lembrança da ira.
Vejo as rosas temíveis.
Ah caminhante, ah confusão de pálpebras.
*
Pousa teus lábios nas cânulas como faz o deus que chora em teus armários, o que fala entre unhas amarelas; silvo do sofrimento nas cânulas e, na pureza das horas vazias, lembras da zaragatoa de teu pai, a solidão das pombas extraviadas na eternidade.
*
Lençol negro na misericórdia:
tua língua em um idioma ensanguentado.
Lençol ainda na substância inferma,
a que chora em tua boca e na minha
e, atravessando docemente feridas,
ata meus ossos a teus ossos humanos.
Não morras mais em mim, sal de minha língua.
Dá-me a mão para entrar na neve.
*
Ame todas as perdas.
Ainda retumba o rouxinol no jardim invisível.
*
Todas as árvores puseram-se a gemer dentro de meu espírito ao lembrar de tuas calcinhas na penumbra, a luz debaixo de tua pele, tuas pétalas viventes.
Atravessando aniversários, às vezes viajam as pombas ébrias.
Venha desnuda tua misericórdia, ah pomba mortal, filha do campo
*
Nossos corpos se penetram com cada vez mais tristeza, mas eu amo essa púrpura desolada.
Ah a flor negra dos dormitórios, ah os comprimidos do amanhecer.
*
Veio tua língua; está em minha boca
como uma fruta na melancolia.
Tem piedade em minha boca: suga, lambe,
meu amor, a sombra.
*
Na umidade me amas
e eras azul em teus mamilos. Falas
suavemente em meus lábios e regressas
à tua prisão na melancolia.
*
Teus cabelos embranquecem entre minhas mãos e, como águas silenciosas, nos abandonam as lembranças. Sinto a frieza da existência mas teu odor se espalha pelos quartos e tua lascívia vive em meu coração e entra meu pensamento em tuas feridas.
*
Poemas de "Aún" e "Pavana Impura", presentes no volume Antonio Gamoneda. Lengua y herida. Selección y prólogo de Vicente Muleiro. Buenos Aires: Ediciones Colihue, 2004. pp. 145-159. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko).
domingo, 20 de abril de 2014
Da oração
A oração em voz alta, que tanta importância tem no culto religioso, prolonga e desenvolve a linguagem egocêntrica infantil. Desta herda certas funções salientes e retoma, descaradamente, mesmo que a complicando de modo desmesurado, as típicas modalidades: a massa dos fieis, que pretende louvar ou suplicar, dá lugar a uma sequência de "monólogos coletivos" nos quais predominam a ecolalia, a fabulação, o anúncio daquilo que se está fazendo ou se quer fazer.
Vimos antes (§10) que a linguagem egocêntrica da criança, de maneira contrária à hipótese de Vygotskij, não se transforma por inteiro no silencioso pensamento verbal do adulto. Muitos de seus traços cruciais - justo aqueles de que dependem a formação da autoconsciência e o princípio da individualização - são indissoluvelmente conexos, com efeito, à vocalização. Os estigmas do perceptível solilóquio infantil resurgem muito mais nos discursos de fato pronunciados, nos quais um falante experiente e astuto se limita a afirmar: "Eu falo". Ressurgem, portanto, nos jogos linguísticos marcados pela produção de um performativo absoluto. Desse ponto de vista, exemplares são os monólogos exteriores com que o adulto, falando consigo, exorta ou faz advertências a si mesmo: "Agiu mal, não pode continuar assim", "Pare!", "Senhor, piedade" etc.. Assim, exatamente essas erupções fonológicas, com as quais se infringe o silêncio do pensamento verbal, podem ser equiparadas a justo título à oração religiosa.
A semelhança mais vistosa entre a oração proferida no templo e o monólogo ressoante de um adulto perturbado consiste no seu caráter supérfluo. Lembremo-nos das observações de Husserl (cfr. §10.2): já que quando fala a si mesmo o locutor por certo não se comunica aqueles "vividos psíquicos" que já conhece de cor, o monólogo é uma "expressão sem sinal" de todo inútil no que diz respeito à questão informativa. Também a oração é pleonástica; também no seu caso pode parecer que se fala apenas por fingimento. Como quem faz um monólogo não tem nenhuma necessidade de informar-se acerca dos próprios "vividos psíquicos", assim também quem ora não tem nenhuma necessidade de notificar Deus a respeito do que pensa e deseja, uma vez que Deus já está ciente disso. No De Magistro, Agostinho de Hipona debruça-se sobre o caráter redundante da oração verbalizada: "Agostinho - Não te parece, assim, que a linguagem tenha sido instituída apenas para ensinar ou para fazer lembrar? Adeodato - Poderia parecer para mim, se não me restasse dúvidas do fato de que para orar, não importa como, falamos. É absurdo pensar que nós ensinamos ou fazemos Deus lembrar de algo" (De Mag., I, 2). Poucas linhas depois, esclarece que a oração, estéril como é de mensagens comunicativas, é sonoramente pronunciada "não por que Deus escuta, mas por que os homens escutam e, por um comum acordo, por meio desse chamar à memória, elevam-se a Deus" (ibid.). Os dialogantes concordam, por fim, com o fato de que, "na oração a Deus, a respeito do qual não podemos pensar que receba um ensinamento ou que seja levado a lembrar, as palavras servem a exortar a nós mesmos" (ibid., 7, 19).
A oração, quanto ao resto supérflua, é proferida não obstante o objetivo de representar-se como falante. A elevação a Deus e a íntima exortação se apoiam de fato sobre essa representação autorreflexiva. O que conforta e purifica o locutor piedoso é justamente a exposição de si tal qual fonte de enunciação ou disparo da voz significante. Também nas "expressões da vida psíquica isolada" não se faz mais, segundo Husserl, que se reconhecer "como pessoas que falam e comunicam". Tanto quem diz a si mesmo "Agiu mal, não pode continuar a se comportar assim", quanto quem ora exclamando "Meu Deus, perdoai-me", limita-se a colocar em cena a própria faculdade de linguagem, a dar prova de poder falar. As duas formas de discurso são, na realidade, a mesma. A oração religiosa regula e potencia os solilóquios verbalizados do adulto, conferindo sua aparência cultual. Mas uma vez que esses solilóquios perpetuam muitas características peculiares da linguagem egocêntrica infantil, também seria possível dizer que a oração é uma linguagem egocêntrica de segundo grau.
13.1. A representação de si mesmo como falante, ônus e bônus da oração, constitui também o ponto do princípio de individualização. A criança se separa da vida pré-individual enquanto se manifesta, aos outros e a si mesma, como "portadora" singular da faculdade de linguagem, particular substrato da potência biológica de falar. A oração renova essa separação. Valoriza ou restaura, portanto, a individualização do falante. Todavia, é evidente que a necessidade de valorizar ou restaurar é sentida apenas quando se está lutando com uma crise. A oração religiosa é um excelente documento das crises periódicas às quais vai de encontro a individualização e, ao mesmo tempo, um modo eficaz de afrontá-las e superá-las. Pronunciar em voz alta palavras supérfluas, que nada comunicam, assinala o ofuscamento da singularidade do falante, mas, ao mesmo tempo, concorre para restabelecê-la. Enquanto mostra o desfazer-se da individualização, a oração é uma ontogênese invertida, ou melhor, uma marcha para trás, em direção à realidade pré-individual da qual se emancipou parcialmente durante a infância. Por outro lado, enquanto assegura uma redenção da crise, confirmando mais uma vez a individualização, esta é uma ontogênese ritualmente duplicada.
13.2. Ora com abandono (ou, de modo mais servil, explode em uma exclamação dirigida a si mesmo, algo como "Não pode continuar assim") aquele que sente ameaçada a própria singularidade. A pressão da vida pré-individual parece, por um momento, insustentável. O "Eu" bem diferenciado não é mais uma certeza inquestionável: antes, tem-se a impressão de que ele flua ao mundo de todos e de ninguém (cfr. infra, cap. 3, § 3).
A oração reflete a situação ambígua em que vige uma fusão mais ou menos acentuada entre indivíduo e espécie, ou, ainda, entre Eu e Deus. Escreve Eugène Minkowski: "É falso começar dizendo que na oração há um Deus e um eu que àquele se dirige; isso já seria decompor o fenômeno a que nos propomos estudar" (Minkowski, 1968, p. 105). Primária e intransponível é a viscosa unidade dos dois polos, portanto, a indistinção entre emitente e destinatário. Paul Tillich nota o quão bizzaro e até mesmo estridente é "falar para alguém a quem não se pode falar porque não é 'alguém' [...]; dizer 'tu' a quem é mais próximo do Eu do que o Eu de si mesmo" (Tillich, 1952, pp. 134 sg.). Em uma direção, o Deus suplicado se coloca às antípodas da individualidade ("não é 'alguém'"); em outra, ele todavia é tão próximo que permanece ao máximo familiar ("mais próximo do Eu do que o Eu de si mesmo"). Quem ora registra com desânimo e maravilha a intimidade do pré-individual, ou melhor, a prevalência das características biológicas da espécie até os mais recônditos caminhos da sua psique. Há pois um caso extremo. Enquanto se dá conta da fugacidade do Eu, quem ora pode também decidir sair da incerteza radicalizando a crise da individualização. Tem-se, então, a resoluta conversão a uma existência impessoal: em vez de temê-la, anseia por ela e a bendiz. Simone Weil, que cultivou de modo tenaz tal perspectiva, escreve: "Não possuímos nada no mundo - uma vez que o acaso pode nos tirar tudo - a não ser o poder de dizer Eu. É isso que é preciso doar a Deus, isto é, destruir" (Weil, 1947, p. 35). E, ainda: "Uma vez que compreendemos ser nada, o escopo de todos os esforços é ser nada. É com esse fim [...] que se ora. Meu Deus, concedei-me tornar-se nada" (ibid., p. 44). Para Weil, a divindade entra em contato com o indivíduo humano apenas com a condição de que este cesse de ser tal; portanto, somente com a condição de que ele revogue, mediante a oração, a própria volumosa singularidade.
Se a oração religiosa (como a linguagem egocêntrica) é um falar a si mesmo, é preciso entretanto acrescentar que esse "si mesmo" assume, aqui, características instáveis e inseguras.
13.3. Quando parece que a nossa singularidade tenha sido sugada na informe vida pré-individual, tentamos, no máximo (com o risco de não partilhar a inclinação de Simone Weil, que fique claro), reativar o princípio da individualização. Com tal objetivo recorremos à própria linguagem egocêntrica de segundo grau, a oração, que, ao contrário, mostra a fragilidade e as fissuras da individualização. Essa reação apotropaica não consiste por certo em exprimir as características distintivas de um certo Eu: isso que agora parece duvidoso, e é salvaguardado, é, com efeito, o Eu como substrato unitário cuja ligação lembra bem incrustadas e incomparáveis notas biográficas. A oração ainda não é uma ação individual, uma vez que sua tarefa consiste em emancipar de modo ritual quem fala da experiência impessoal que o impregna. Ela é muito mais uma ação individualizante. Evoca mais uma vez e renova a passagem do anônimo pronome "si" ao "eu". A glossolalia, que então é um modo fervoroso de orar, esclarece bem o ponto: nada de menos individual do que uma sequência de sons insignificantes, mas, ao mesmo tempo, nada de mais individualizante do que a pura tomada de palavra com a qual o fiel exibe o caráter inerente do genérico poder-dizer ao seu único corpo vivente. De resto, não são individuais mas individualizantes todos os enunciados cujo sentido primeiro e último seja "Eu falo".
Justo por que pleonástica e supérflua enquanto comunicativa (Deus já sabe o que lhe é dito), a oração religiosa consente ao falante representar mais uma vez a si mesmo como "portador" individual da faculdade de linguagem, como contingente e irrepetível personificação da potência biológica de falar. Na oração cultual se cumpre mais uma vez, depois de dela ter experimentado a provisória decadência, a encarnação do Verbo em um corpo efêmero. O núcleo deliciosamente naturalístico do princípio de individualização é condensado no versículo mais enigmático de João: Et verbum caro factum est.
Paolo Virno. Quando il verbo si fa carne. Linguaggio e natura umana. Torino: Bollati Boringhieri, 2003. pp. 68-72. (Trad.: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Giotto. Cenas da vida da Virgem. 1304-1306 Cappella Scrovegni, Padova.
sábado, 19 de abril de 2014
Pequeno delírio em parágrafo XVIII
Brincando com sonhos aprendi a inventar o universo. Nada escapava às mãos da criança que ainda sorria ao acordar e perceber que deixara um imenso mundo para trás. Era uma perda, mas, ainda assim, havia um outro mundo por desbravar. O silêncio da manhã ocupava todo o espaço desse grande nada demasiado cheio que era o dia que se iniciava. Como podia estar há pouco num campo de imagens descontroladas e, de repente, às luzes e cheiros do dia, tudo era trespassado por um nada de imaginação? O mundo do dia era muito complexo na sua falta de sentido; restava-me, portanto, apenas o desejo da próxima noite e, assim, as novas brincadeiras com a imensidão da imaginação (os jogos, que Huizinga pensara ser um elemento fundamental à constituição dessa abstração chamada "homem"). Enquanto isso, a ânsia de tentar, neste mundo aniquilado que ainda assim devia ser descoberto, constituir sentidos. A literatura, ao postular o universo (a complexidade, diria Borges), podia ser alento às luzes da vigília. Os primeiros poemas que tentavam dizer um sentimento, o desconforto com as sensações intransmissíveis, a ausência (de tudo e do nada que lhe fazia companhia) como primeiro motor da angústia; perceber que o mundo do dia era, segundo a convenção dos adultos, inequívoco, exato, coerente. Hoje, sob os ventos da memória ou do esquecimento (ambos inventivos), talvez pense que a falha persista - e, é possível, há nesse pensamento uma dose amarga de vitalidade. Qualquer mundo por desbravar se mostra fraudulento; todo sonho não é senão a porta de ingresso nos jogos da invenção; e os dias, submetidos às práticas da memória e do esquecimento, passam, e só me resta continuar a invenção do meu universo...
Imagem: Coreggio. A educação do Cupido. 1528. National Gallery, Londres.
quinta-feira, 17 de abril de 2014
Intimidade
A unidade em si, a
intimidade sem fora: levando-se ao seu máximo de concentração, de penetração,
de recolhimento e de meditação (ruminação, retorno interminável à única
fundamental impossibilidade de "se" apreender), ela torna a si mesma fora
e torna-se então abertura, e, em seguida, saída, excesso, generosidade ou
heroísmo, mas, ainda mais longe, abandono, fuga, isto é, alienação, exclusão,
exílio.
Mas, segundo
uma persistência incessante, no seio desses valores demasiado e com frequência
colocados de maneira unilateral, do absolutamente um e íntimo: esse
absolutamente um e íntimo como aquilo que não cessa de se afirmar e de se
intensificar nesse pôr fora, fora de si, fora de tudo.
E, para começar: a
intimidade é sempre, de início e talvez sempre, absolutamente, intimidade com
um outro, intimidade entre intimidades, e não intimidade de alguém só em relação a si mesmo. O íntimo, superlativo do "interior" (já citamos Agostinho
dirigindo-se a Deus: "Interior intimo meo"), é um superlativo
que, por si mesmo, refere-se sempre a um comparativo: porque estou no máximo da
interioridade, o mais próximo de "mim mesmo", ou, ainda, o mais
próximo e também no mais secreto, "desse mundo", "da terra",
toco ainda mais: aquilo que, desde tal momento, toca-me a partir de um fora [ailleurs] que posso de modo indiferente considerar como "em" mim ou
"fora" de mim, como neste mundo ou fora dele, uma vez que toco o
limite. Ora, tocar o limite é também passá-lo, inevitavelmente. E só o passo
tocando em um outro – outra pessoa, outro ente, outro vivente, e mesmo a pedra
dura, cuja resistência opaca leva-me para mais longe fora de mim.
Toda intimidade é
"interior intimo meo". Sendo o mais profundo, ela é também
aquilo que, por sua vez, é sem fundo. Em Agostinho e, a partir dele, para uma
tradição muito longa, "Deus" terá sido o nome do sem-fundo. Tocar o
sem fundo é tocar aquilo que não se deixa tocar senão fugindo para mais longe -
numa hipérbole, em suma, da lei do tocar que quer que só toquemos através de uma
abertura; caso contrário, penetramos, mas se penetramos, é por que há aí alguma
substância: ora, aqui não há nada disso, há o incomensurável dessa fuga
infinita do fundo no fora, o fora [ailleurs] absoluto.
É esse tocar que
nomeamos "espiritual": o sopro que vem aflorar "o heterogêneo na
origem[1]".
O espírito vem tocar esse fora que é mais “fora” do que toda reunião acoplada
de “dentro/fora”: ele está mesmo fora do fora. Ele é fora de tudo: nada, isto
é, a realidade de toda coisa considerada em si, absolutamente, isto é, destacada
de tudo. Mas a coisa considerada absolutamente – como o pode ser um acorde
musical, uma nuance de cor, uma inflexão de voz, um rosto, um seixo, uma árvore
– absorve nesse “nada” a totalidade da consideração, transporta o espírito em
si, muda-o em som, em cor, em olhar ou em opacidade suave. Tal é a adoração:
intimidade desse transporte.
[1] J. Derrida, De l’esprit, Paris, Galilée, 1987, p.
176.
Jean-Luc Nancy. L'Adoration. (Déconstruction du christianisme, 2). Paris: Galilée, 2010. pp. 110-111. (Trad.: Vinícius N. Honesko)
Imagem: Francesco del Cairo. Maria Madalena em êxtase. 1650.
terça-feira, 15 de abril de 2014
Pequena carta em parágrafo
A J.L.F.
Um poeta português disse, certa vez, que a missão das folhas é definir o vento. Para qualquer lado que sopre, o vento, esse vento inscrito nas folhas, só pode ser dito na poesia. Os antepassados do poeta, em sinal de total submissão à poesia, deixaram-se guiar pelo vento e, atentos à missão das folhas, gravaram em cartas - essas folhas às vezes com destinatário, às vezes voltadas ao futuro - seus desejos pelo desconhecido. Os mapas, agora ilimitados e sem o taxativo non plus ultra de outrora, passaram então a ser o desenho do desejo por essa aventura naquilo que era então o indizível, o silêncio do além dos limites do mundo. Os portugueses eram assim iniciados no silêncio do oeste e, tal como Ulisses chorando à beira-mar - diante desse grande deserto de sal -, tomaram ciência da impossibilidade de uma cartografia geral, de uma escrita desse silêncio que se exige enquanto tal, para além de todo esboço e de todo desenho. Eles se deram conta de que esse silêncio, por mais que sempre paire sobre toda fala, exige permanecer desconhecido, como o absolutamente outro, o ponto a partir do qual definir, a cada vez, o vento. Hoje, do convés de minha embarcação, olho ao horizonte e percebo o azul do céu tomar do mar os limites aos desejos. Tendo em mãos velhos mapas de portugueses, leio que "ler é sonhar pela mão de outrem" e, talvez, quando este pequeno mapa for lido, meu silêncio possa de algum modo permanecer um sonho possível. Mas porventura esta pequena carta não diga mais do que aquilo que cantava um outro navegante, não dos mares, mas dos morros: o velho Cartola: agora, olhando para esse horizonte, meus olhos falam o que não veem, mas neles você compreende o que quero dizer.
Imagem: Van Gogh. Barcos de pesca na praia de Saintes-Maries. 1888. Vincent van Gogh Museum, Amsterdam.
sábado, 12 de abril de 2014
A comunidade afrontada
O estado presente do
mundo não é o de uma guerra de civilizações. É uma guerra civil: é a guerra
civil intestina de uma cidade, de uma civilidade e de uma urbanidade que estão
se desenvolvendo até os limites do mundo e, de tal fato, até à extremidade de
seus próprios conceitos. Na extremidade um conceito se quebra, uma figura
distendida explode, uma lacuna aparece.
Também não é uma
guerra de religiões, ou então toda guerra dita de religiões é uma guerra
intestina ao monoteísmo, esquema religioso do Ocidente e, nele, de uma divisão
que se leva, também aí, às bordas e às extremidades: para o Oriente do Ocidente
e até à quebra e à fratura bem no meio do divino. Tanto que o Ocidente só teria
sido a exaustão do divino, em todas as formas do monoteísmo e que seja a exaustão
por ateísmo ou por fanatismo.
O que chega até nós
é uma exaustão do pensamento do Um e de uma destinação única do mundo: isso se
exaure em uma única ausência de destinação, em uma expansão ilimitada da
equivalência geral ou, ainda, por consequência, nos sobressaltos violentos que
reafirmam a onipotência e a onipresença de um Um tornado [devenu] – ou retornado [redevenu] – sua própria
monstruosidade.[1]
Como, por fim, ser séria, absoluta e incondicionalmente ateus sendo capazes de,
a partir disso, fazer sentido e verdade? Como não sair da religião – pois, no
fundo, isso já foi feito e as imprecações dos fanáticos contra isso nada podem
(elas são, isso sim, o sintoma, como o “deus” gravado no dólar) –, mas sair do
monolitismo de pensamento que permaneceu o nosso (simultaneamente, História,
Ciência, Capital, Homem e/ou Nulidade...). Isto é, como ir ao fundo do
monoteísmo e de seu ateísmo constitutivo (ou daquilo que poderíamos nomear seu
“ausenteísmo”) para aí apreender, ao contrário de seu esgotamento, aquilo que
seria capaz de se extrair do niilismo, de sair de seu interior? Como pensar o nihil sem transformá-lo em
monstruosidade onipotente e onipresente?
*
A lacuna que se
forma é a do sentido, da verdade ou do valor. Todas as formas de fratura e de ruptura
– social, econômica, política, cultural – têm nessa lacuna sua condição de
possibilidade e seu esquema fundamental. Não podemos ignorar: o desafio
primordial deve ser tomado como um desafio do pensamento, inclusive quando se
trata de suas implicações mais materiais (a morte por AIDS na África, ou a
miséria na Europa, ou as lutas pelo poder nos países árabes, por exemplo, entre
centenas de outros). A estratégia política e militar é necessária, a regulação
econômica e social também o é, a obstinação na exigência de justiça, a
resistência e a revolta também o são. Mas, entretanto, é preciso pensar sem
tréguas um mundo que saia, de maneira lenta e brutal ao mesmo tempo, de todas
as suas condições adquiridas de verdade, de sentido e de valor.
O enorme desequilíbrio
econômico, isto é, o desequilíbrio da vida, da fome, da dignidade, do
pensamento, é o corolário do desenvolvimento de um mundo que não mais se
reproduz (que não conduz mais nem sua própria existência nem seu próprio
sentido) mas que produz uma ilimitação [illimitation]
de sua própria globalidade, de modo que ela parece apenas poder implodir ou
explodir: pois no centro da ilimitação se alarga um fosso que não é outro senão
uma desigualdade do mundo em relação a si mesmo, uma impossibilidade de se dotar
de sentido, de valor ou de verdade, uma precipitação na equivalência geral que,
progressivamente, torna a civilização obra de morte. Não apenas uma forma de
civilização, mas a civilização, a história do homem talvez, e, talvez com ela,
a da natureza. E sem outra forma no horizonte, nem nova nem antiga.
De um lado e do
outro, queremos tapar a ferida com os curativos habituais: deus ou dinheiro,
petróleo ou músculo, informação ou encantamento, isso que acaba sempre por
significar uma forma ou outra de onipotência e de onipresença.
Onipotência e
onipresença são sempre o que requeremos da comunidade ou o que procuramos nela:
soberania e intimidade, presença a si sem falha e sem fora. Queremos o
“espírito” de um “povo” ou a “alma” de uma assembleia de “fiéis”, queremos a
“identidade” de um “sujeito” ou sua “propriedade”.
Não é suficiente,
longe disso, denunciar aqui um imperialismo e nele um fundamentalismo
(designações que, aliás, podemos colocar em quiasma). Essas denúncias são
justas, assim como é justo denunciar também o efeito de uma exploração e de uma
humilhação de populações inteiras, tornadas assim disponíveis para outras
explorações e instrumentalizações. Mas, por fim, desde 1939 as guerras não mais
aconteceram como afrontamentos no interior de um mundo que lhes dá lugar (mesmo
se tal lugar é desastroso): a guerra tornou-se guerra de um mundo que está
dividido, pois falta-lhe ser ou falta-lhe fazer aquilo que deve ser: um mundo,
isto é, um espaço de sentido, seja ele de sentido perdido ou de verdade vazia.[2]
Falar de “sentido” e
de “verdade” em meio à agitação militar, aos cálculos geopolíticos, aos
sofrimentos, às caras de indignação ou de mentira não é “idealista”: é atacar a
coisa mesma.
De lado a lado da
lacuna do mundo, expandida sob o nome de “globalização”, está a comunidade que
é separada e afrontada por si mesma. Antes, as comunidades puderam se pensar
distintas e autônomas, sem procurar sua assunção em uma humanidade genérica.
Mas desde que o mundo acabou por se tornar global, e desde que o homem acabou
por se tornar humano (é também nesse sentido que ele se torna “o último
homem”), desde que “a” comunidade se pôs a gaguejar uma estranha unicidade
(como se devesse haver apenas uma e como se devesse haver uma essência única do
comum), então “a” comunidade compreende que é ela que está escancarada –
abertura escancarada à sua unidade e à sua essência ausentes – e que ela
afronta nela mesma essa fenda. É comunidade contra comunidade – estrangeiro
contra estrangeiro e familiar contra familiar – rompendo si mesma ao romper as
outras que são, elas também, sem possibilidade de comunicação nem de comunhão.
O monoteísmo em si mesmo afrontado por si mesmo, como teísmo e como ateísmo, é,
por essa razão, o esquema de nossa condição atual.
Que tal afrontamento
consigo possa ser uma lei do ser-em-comum e seu sentido próprio, eis o que está
no programa do trabalho do pensamento – imediatamente acompanhado desse outro
programa: que o afrontamento, compreendendo a si mesmo, compreenda que a
destruição mútua destrói até mesmo a possibilidade do afrontamento e, com ela,
a possibilidade do ser-em-comum ou do ser-com.
Pois se o “comum” é
o “com”, o “com” designa o espaço sem onipotência e sem onipresença. No “com”
pode haver apenas forças que se afrontam em razão de seu jogo mútuo e das
presenças que se separam em razão do fato de que elas sempre têm de se tornar
outra coisa do que puras presenças (objetos dados, sujeitos confortados nas
suas certezas, mundo da inércia e da entropia).
Como tornar-se
capazes de olhar de frente para nossa lacuna e nosso afrontamento, não para
colocá-los à sombra, mas para deles extrair, apesar de tudo, a força de nos
afrontar, de início, com conhecimento de causa e, em seguida, de maneira a
realmente nos encarar – sem o que o afrontamento não passa de um turbilhão
indistinto e cego?
Todavia, olhar de
frente para um abismo e afrontar o olhar não são sem analogia, se o olhar do
outro não se abre senão ao insondável: para a estraneidade absoluta, para uma
verdade que não pode ser verificada, mas que, contudo, é preciso tomar.
Tripla estraneidade:
a do outro distante, a do mesmo afastado, a da história voltada ao
não-acontecido [inarrivé], talvez, ao
insustentável. É preciso tomar, contra uma moral “altruísta” muito
maliciosamente recitada, a severidade da relação com o estrangeiro, cuja
estraneidade é condição estrita de existência e de presença. E é preciso se
fixar naquilo que, diante de nós, expõe-nos à influência nebulosa de nosso
próprio devir e de nossa própria ruptura.
Não se trata de
culpabilizar o Ocidente nem de reivindicar um Oriente mítico: trata-se de
pensar um mundo em si e por si mesmo fraturado, por uma ruptura que provém do
mais remoto de sua história e que deve, de uma maneira ou de outra, para o pior
e talvez – quem disse? – para um pouco menos pior, constituir hoje seu sentido
obscuro, um sentido não obscurecido, mas do qual o obscuro é o elemento. É
difícil, é necessário. É nossa necessidade nos dois sentidos da palavra: é
nossa pobreza e nossa obrigação.
Jean-Luc Nancy. La Communauté affrontée. Paris: Galilée,
2001. pp. 11-20. (trad.: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Giovanni Serodine. Encontro de São Pedro e São Paulo antes do martírio. 1625-6 Galleria Nazionale d'Arte Antica, Roma.
[1] Não é por acaso que as regiões do
mundo que até agora permanecem mais observadoras da guerra (sendo, de todo modo,
também partes da globalização, por sua crença ou empobrecimento) são aquelas
onde a dialética ou a desconstrução do monoteísmo não se realizou, seja por que
o cristianismo (aqui, latino-americano) nela estruturou o pensamento de modo
diferente (de maneira mais “pagã”, como se diz, ou menos “metafísica”), seja
por que o monoteísmo não penetrou pensamentos que lhe são heterogêneos (Índia
ou China não pensam, para dizer de forma grosseira, segundo o Um, nem a partir
da Presença). De um lado, o Ocidente e sua auto-exaustão se expandiram por toda
parte, e, de outro, essa disparidade sempre profunda de ao menos três mundos no
mundo certamente contém as chances e os riscos do futuro.
[2] Contraprova: quando Roma implantava
guerras de polícia nos confins do Império (como os Estados Unidos o fazem sem
cessar), Roma não era uma metade do mundo afrontando uma outra: o Império era
uma ordem à parte, os povos singulares formavam uma outra.
domingo, 6 de abril de 2014
As horas
Doem-me as horas
Opacas visões de estrelas mortas
a luz corre para rincões obscenos.
No palco, só as horas,
tristes e vazias, rompem meu silêncio.
Adoeço tal qual um frágil pároco idoso,
sem as amarras da fé a preencher as horas,
Estas sim, deusas sinistras
cultuadas sem cessar por almas perdidas.
Gestos de um cavaleiro só em meio à batalha.
Poeira da matéria cujo nome - ah!, o nome -
é vida. Sofro a corrosão profunda
desse vazio que me enche por completo.
Solto as cordas das palavras, dos nomes, das horas.
Sobram-me os rastros,
já quase apagados,
pela grande vitória do esquecimento.
Imagem: Miniaturista francês. Livro das horas. Por volta de 1530. Biblioteca Nacional, Paris.
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