quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Pequeno Parágrafo sobre o erro


ao amigo C.C.

Errar: eis a função humana fundamental (se é que de fundamentos é possível falar, ainda mais ao animal de voz articulada; e não seria esse eis um ecco, ou um eco, portanto uma ausência-presença?). Erra-se assim, de modo indeterminado; erra-se como erramos; erra-se como é impossível determinar o valor de Pi. Caminho tortuoso, o erro não é o certo do deus sem nome que deita suas letras em linhas tortas: não há linhas, não há sem nome, há só silêncio da linguagem. A matemática, dita ciência que quer dizer de modo exato, erra por excelência e é tão somente vontade de valor. Não há números capazes de serem ditos enquanto valor (é o precário e o impossível - aquilo a que Bataille já gritava nos fundos da livraria na rua Gay Lussac), assim como as letras não dizem nada de per se. E o delírio dos cabalístas está justamente na tortuosa assimilação desses completos sem-sentido àquilo que seria plenitude de sentido: deus. E é também a partir do limiar da religião de Moisés e da religião inventada com base nos delírios do Nazareno que uma figura, uma imagem, do erro cria corpo: Ahsverus, o judeu errante. Como lembra Euclides da Cunha, ele é a imagem daqueles à margem da história. Não por que estes se encontram num eterno presente, ou num eterno paraíso, ou num eterno inferno, mas, ao contrário, por que a história lhes é a morada à margem - e, por isso, são ditos os homens. O não-sentido da História - cujo Sentido talvez tenha sido um dos maiores delírios idealistas - é o que nós, meros sertanejos, não nos cansamos de querer esquecer. Às voltas com o tempo, essa auto-afeição de nós mesmos que também insistimos em usar como vetor de sentido, resta-nos apenas digerir a história que nos está à margem e olhar para os rodopios e espirais - essas figuras matemáticas às quais atribuímos teoremas numéricos na tentativa de encontrar um Sentido - do rio que leva o errante ao seu não-destino, ao seu acerto que nunca chega. Erramos como a máquina do tempo, nas suas frações imperceptíveis e nas suas impossíveis representações; erramos como a indeterminação do erra-se; erramos como as nuvens que passam em suas formas impossíveis; erramos nas letras e nos números; erramos e, como lembra Dante, talvez só nos reste lançar um grito, um ai! (tal qual Adão ao ser expulso do paraíso), de agonia por termos entrado nesta vida.  

Imagem: Miniaturista alemão. Jardim das delícias (hortus deliciarum). 1180. Bibliothèque Nationale, Paris.    

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Verbum caro factum




No tempo de uma breve nota, para a ocasião, analisamos esta proposição central para o cristianismo: verbum caro factum est (no grego do texto do Evangelho de João: logo sarx egeneto). É a fórmula da "encarnação" pela qual Deus se faz homem, e essa humanidade de Deus é, decerto, o traço decisivo do cristianismo e, por meio deste, um traço determinante para toda a cultura ocidental – até o núcleo do seu "humanismo", marcando-o de maneira indelével, mesmo que não o funde (por meio de uma inversão da "divinização" do homem, para ser muito sumário). 
O termo "encarnação" é, na maior parte do tempo, compreendido no sentido da entrada de alguma entidade não-corporal (espírito, deus, ideia) em um corpo e, de modo mais raro, como a penetração de uma parte do corpo por uma outra parte, ou por uma substância, de início estrangeira, como dizemos de uma "unha encarnada"[1]. É uma mudança de lugar, a ocupação de um corpo como um espaço de todo modo não conatural à realidade dada, e tal sentido se estende facilmente até a noção de “figuração” (o ator “encarna” o personagem). Segundo a acepção corrente (e que por certo não é a acepção teológica maior), a encarnação é um modo de transposição e de representação. Estamos no espaço de um pensamento por meio do qual o corpo está necessariamente em posição de exterioridade e de manifestação sensível, de modo distinto de com uma alma ou com um espírito dado na interioridade e não diretamente figurável.
É suficiente ler de maneira literal a fórmula do credo cristão para se dar conta de que ela definitivamente não leva, por si só, a tal interpretação. Se o verbo foi feito carne, ou ainda se (em grego) ele tornou-se, ou se ele foi engendrado ou se engendrou como carne, é porque não teve que penetrar no interior dessa carne dada, de antemão, fora dele: ele próprio o é que se tornou a carne. (A teologia despendeu esforços sobre-humanos – é o caso de dizê-lo – para pensar esse devir que produz, numa só pessoa, duas naturezas heterogêneas.)
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Acrescentemos aqui – com reservas para análises futuras – dois dados suplementares cuja lembrança não é vã: com nuances, isto é, diferenças importantes entre os cristianismos “católico”, “ortodoxo” e “reformado”, a maternidade humana do logos (com ou sem virgindade da mãe) e a “transubstanciação” (real ou simbólica, pouco importa aqui) do corpo do Cristo em pão e vinho de uma “comunhão” representam dois desenvolvimentos ou duas intensificações da encarnação: de uma parte, dando ao homem-deus uma proveniência já no corpo humano e no corpo da mulher (em um sentido, a encarnação leva em conta os sexos), e, de outra parte, dando a seu corpo divino a capacidade de se converter ainda em matéria inorgânica (fazendo assim ser investida por “deus” tanto uma ínfima parcela do espaço-tempo, quanto uma realidade – pão e vinho – como matéria de uma transformação da natureza pela técnica humana).
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Nesse sentido, o corpo cristão é totalmente diferente de um corpo que serve como envelope (ou prisão, ou tumba) para a alma. Ele não é outra coisa que o próprio logos que se faz corpo enquanto logos e segundo sua lógica mais própria. Esse corpo não é outra coisa que o “espírito” saído de si mesmo ou de sua pura identidade para se identificar não ao homem mas como o homem (e a mulher, e a matéria). Mas essa saída de si do espírito não é um acidente que lhe sobrevém (permitiremos aqui uma vasta elipse ao redor da questão do pecado e da salvação, que provisoriamente podemos manter afastada). Em si, o espírito cristão já está fora de si (é sua natureza trina), e sem dúvidas é preciso voltar até o deus monoteísta comum às três religiões “do Livro” para considerar que ele já é essencialmente um deus que se coloca fora de si para e numa “criação” (que não é em nada uma produção, mas, precisamente, o colocar-se-fora-de-si).
Nesse sentido, o deus cristão (leia-se, monoteísta) é o deus que se aliena: ele é o deus que se ateíza ou que se ateologiza, caso possamos, por um instante, forjar tais palavras. (Foi Bataille que, por sua conta, cunhou a palavra “ateológico”.) A ateologia enquanto pensamento do corpo será, portanto, um pensamento disto: que o “deus” se fez “corpo” enquanto esvaziou-se de si mesmo (outro motivo cristão é o da kénôse paulina: o devir-vazio de Deus ou seu “esvaziar-se de si”). O “corpo” torna-se o nome do a-teu, no sentido de “nenhum-deus”. Mas “nenhum-deus” quer dizer não a autossuficiência imediata do homem ou do mundo, mas isto: sem presença fundadora. (De maneira mais geral, o “monoteísmo” não é a redução dos numerosos deuses do “politeísmo” a “um”: sua essência é o desaparecimento da presença, dessa presença que são os deuses das mitologias.) O “corpo” da “encarnação” é, portanto, o lugar, ou mesmo o ter-lugar, o evento desse desaparecimento.
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Nem prisão da alma (corpo sensível ou caído), portanto, nem expressão de uma interioridade (corpo “próprio” ou “significante”, o que eu nomearia, de fato, como o corpo “revelado” de uma certa “modernidade”), nem, entretanto, presença pura (corpo-estátua, corpo esculpido, corpo re-divinizado ao modo do politeísmo no qual a estátua é ela mesma toda a presença divina): mas estendido, espaçamento, separação do próprio desaparecimento. Corpo como verdade de uma “alma” que cai (caída, veste caída: desnudada por uma fuga infinita).
Mas essa síncope que o corpo é – e ele o é numa única tomada, estendida entre um grito de nascimento e um suspiro de morte, uma tomada que se modula num fraseado singular, o discurso de “uma vida” – não é simplesmente uma perda: ela é, como na música, um batimento; ela junta (syn-) cortando (-cope). Ela junta o corpo a si mesmo e os corpos entre si. Síncope da aparição e da desaparição, síncope de enunciação e de sentido, ela é também síncope de desejo.
Desejo não é tensão melancólica em relação a um objeto faltante. É tensão em direção ao que não é objeto: a saber, a própria síncope, enquanto ela tem lugar no outro e enquanto ela só é “própria” sendo no outro e do outro. Mas, o outro, entretanto, é apenas este outro corpo aqui, que na sua separação com o meu toca ele próprio a separação, o corpo que dá acesso à verdade sincopada.
Uma erótica (socrática) atravessa aqui a encarnação (do Cristo) como por uma dobra interna no logos: é essa erótica que quer que o amor dos corpos leve a “conceber a beleza em si”, o que, em Platão, não é nada mais que a tomada da – ou ser tomado pela – única das Ideias que seja por si mesma visível[2].
Assim, um círculo reconduz infindavelmente da visibilidade da Ideia – isto é, da manifestação do sentido – à síncope da alma – ou seja, à fuga da verdade. Uma na outra e uma pela outra, no corpo a corpo no qual o corpo treme, sofre e goza. 


Jean-Luc Nancy. Verbum caro factum. In.: La Déclosion (Déconstruction du christianisme, 1). Paris: Galilée, 2005. pp. 125-128. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Caravaggio. A ceia de Emaús. 1606. Pinacoteca di Brera, Milano.                  




[1] N.T.: Ainda que em português utilizemos o termo “unha encravada”, preferi manter a referência francesa “ongle incarné”, uma vez que seu sentido não se perde na tradução e, ademais, mantém a ideia que o autor quer trazer ao texto.
[2] Fedro, 250d; cf. também, obviamente, o Banquete, 210a-211b.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Satisfação



Alguns significantes são como o Aquiles que corre contra a tartaruga de Zenão: o herói, para chegar ao meio do caminho, precisa chegar ao meio, e para atingir a metade da metade tem que chegar à metade etc. etc.. Assim, os cálculos matemáticos propostos por Zenão aparentemente impedem Aquiles de alcançar a tartaruga, interrompem seu caminho; isto é, não há mais como ultrapassar o infinito criado pelo código matemático que se encarrega de pará-lo. Na lógica de Zenão, portanto, enquanto embrenhadas no desdobramento infinitesimal dos argumentos (penso que seja algo como quando os matemáticos pela primeira vez se depararam com a formação de uma lemniscata no plano geométrico: a indeterminação dos arcos e a partir daí o desenvolvimento de certas funções determinativas... mas isso fica para os experts), as palavras perdem-se enquanto artefatos de discurso, uma vez que passariam a flutuar como significantes vazios. A certeza da não chegada de Aquiles até a tartaruga é sempre pautada no limite para o trajeto do herói: a tartaruga. O infinito é realmente criado a partir da instituição (fictícia) de um referencial para Aquiles; ou seja, enquanto houver uma tartaruga, o movimento de Aquiles será sempre para alcançá-la, porém, já sabendo que nunca conseguirá fazê-lo. Digo, assim, que como o paradoxo de Zenão esvazia os argumentos tornando-os polissêmicos (pois vazios), também os paradoxos em que acabo por me meter quando começo a pensar em algumas palavras (ou pensar algumas palavras) são sempre pontos a partir dos quais não há mais volta para a pretendida (ingenuamente sonhada) univocidade do discurso.
Tal como o referencial "tartaruga" na corrida impede a vitória de Aquiles, parece-me que as palavras sempre estão vazias porque as referenciamos a determinado discurso. E aqui volto a pensar na palavra que me fez viajar por esse infinito criado: satisfação (e, claro, abro este parêntese por me lembrar do belíssimo livro de Murilo Mendes, A Invenção do Finito - e o antagonismo da lembrança ainda é algo sobre o qual penso). Ainda hoje, acabando meu almoço, pensava em quão satisfeito estava. A sensação de ter saboreado uma comida gostosa, de ter tomado o meu tempo para sentar-me à mesa, escutar uma música, tomar um vinho, tudo me era como sinônimo de satisfação. Tudo era meio de regozijo, ainda mais porque não devia satisfação a ninguém, pois almoçava sozinho: como me sentei, o quanto e de que modo comi, por que bebi logo no almoço... enfim, era satisfatório não dar satisfação. E agora a ambiguidade das palavras estava posta à mesa: satisfação - o prazer, o deleite - era um contraponto exato da satisfação - justificativa, reparação.
O jogo desse significante preciso, no entanto, acaba, justamente pelo seu caráter phármakon, colocando-me diante das dificuldades do plano indeterminado do infinito criado pelos discursos: ou seja, como deleitar-me, satisfazer-me, sem ter que dar satisfações para isso ou por isso? Qual é o meu referencial "tartaruga" que parece freiar meu livre movimento? Qual é a minha invenção particular de infinitos? Quantas vezes dou a volta na imagem da lemniscata? Acho que todas as questões se colocam e podem ou não ser satisfeitas. Porém, penso que respostas não surgem com uma tentativa de saltar para fora do discurso (um salto impossível para a não-linguagem, para um indizível). E talvez a epígrafe, tirada de Roland Barthes, que Murilo coloca para seu A Invenção do Finito seja interessante: "... Eu só posso fazer meu o pensamento de Lacan: não é o homem que constitui o simbólico, mas é o simbólico que constitui o homem. Quando o homem entra no mundo, entra dentro do simbólico que já está lá." Sem às vezes perceber que o infinito não há, senão no finito do tempo (isto é, na finitude da vida), tento, em vão, como que romper o laço da lemniscata sem perceber que posso virá-la e revirá-la, tal como uma fita de Möbius, para conseguir novas significações - na dimensão do finito, este, que acabo de inventar e que não tem outro espaço que o de uma imanência absoluta.
A satisfação, portanto, está sim lançada no indeterminado, no fugaz do discurso, carregada de toda a ambiguidade possível; porém, dela não há evasão para um além, para um além da linguagem e toda a sua "farmacologia". E talvez A Invenção do Finito de Murilo seja muito pertinente para essa conjuntura: "Sujeitos ao tempo e ao espaço, acontece-nos de vez em quando esquecer estas duas categorias, e situar-nos num território insólito, fora da faixa dos teólogos e dos poetas. Os tecnocratas de toda a espécie que nos rodeiam, os 'duros', aplicam a esse estado de espírito o nome de 'evasão', condenando-o severamente. O desejo de evadir-se da realidade pode ser substituído por outro: o de mudar de realidade. O defeito maior do 'realismo socialista' reside em reduzir a realidade a um esquema único. Ora, a realidade é poliédrica, inumerável, ambígua."
Não há sistema (esquema) único; aliás, seu funcionamento só seria possível se sob ele (ou, além dele, escondido como um deus tartaruga fundador) existisse um infinito que transcendesse toda a possibilidade humana; porém, um tal infinito transcendente - bradado em sistemas morais e religiosos, em estruturas que tentam apenas um dever-ser para o humano - aposta na falha e sua consequente satisfação - esta que, aí sim, pode ser pensada como satisfação das culpas do homem pelo fato de ele ser homem, querendo com isso um homem que deve ser. Penso, por outro lado, que a satisfação é o meu deleitar, é o meu bastar-me enquanto homem. Não penso, contudo, que ao me satisfazer assim satisfaço o meu sistema, pois, não há como satisfazer seu caráter poliédrico, não há como dar conta do espaço infinito que é o finito. E lembro mais uma vez de Murilo que, tanto nessas análises das obras de Gastone Biggi quanto em vários momentos da sua escritura, elabora seu pensamento do finito coligado ao infinito, do não reconhecimento das fronteiras do real e do irreal, isto é, do caráter insólito da condição humana: o de já sempre estar condenada à linguagem.
Neste momento, satisfaço-me com Dexter Gordon ao sax, com meu vinho, com meus pensamentos... e sinto-me como que a girar a fita de Möbius, na intimidade e alheamento dessas coisas que são as palavras, sem as quais qualquer satisfação me é interdita.

Imagem de uma Fita de Möbius feita pelo artista Blu para o Names Festival, em Praga - República Tcheca.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

O que ensina à política a decisão de Ratzinger



Giorgio Agamben

A decisão de Bento XVI deve ser considerada com extrema atenção por quem quer que se importe com os destinos da política da humanidade.

Cumprindo a “grande recusa”, ele deu provas não de vileza, como Dante talvez injustamente escreveu de Celestino V, mas de uma coragem que adquire hoje um sentido e um valor exemplar. De fato, deve ser evidente para todos que as razões invocadas pelo Pontífice para motivar sua decisão, em parte certamente verdadeiras, não podem de modo algum explicar um gesto que na história da Igreja tem um significado totalmente particular. E se lembrarmos que em 4 de julho de 2009, Bento XVI, como prova de que a decisão havia sido meditada, tinha depositado exatamente sobre a tumba de Celestino V, em Sulmona, o pálio que recebera quando de sua investidura, tal gesto adquire todo seu peso.

Por que essa decisão se mostra hoje para nós como exemplar? Porque ela chama a atenção de modo claro para a distinção, da qual as nossas sociedade parecem ter perdido toda consciência, entre dois princípios essenciais da nossa tradição ético-política: a legitimidade e a legalidade. Se a crise que a nossa sociedade está atravessando é tão profunda e grave, é porque ela não coloca em questão apenas a legalidade das instituições, mas também a sua legitimidade; não apenas, como com muita frequência se repete, as regras e as modalidades de exercício do poder, mas o próprio princípio que o funda e o legitima.

Hoje, os poderes e as instituições não são deslegitimados porque caíram na ilegalidade; ao contrário, é verdade justamente o oposto, isto é, que a ilegalidade está tão difundida e generalizada porque os poderes perderam qualquer consciência da sua legitimidade. Por isso é vã a crença de poder afrontar a crise das nossas sociedades por meio da ação – certamente necessária – do poder judiciário: uma crise que investe a legitimidade não pode ser resolvida apenas no plano do direito. De fato, ao pretender legiferar sobre tudo, a hipertrofia do direito exibe, por meio de um excesso de legalidade formal, a perda de toda legitimidade substancial. Ao procurar assegurar por meio do direito positivo a legitimidade de um poder, a tentativa da modernidade de fazer coincidir legalidade e legitimidade é, como mostra o irrefreável processo de decadência no qual entraram as nossas instituições democráticas, totalmente insuficiente. As instituições de uma sociedade permanecem vivas somente se ambos os princípios (que, na nossa tradição, também receberam o nome de direito natural e direito positivo, poder espiritual e poder temporal) permanecem presentes e nela agem sem jamais pretender coincidir.

Por isso o gesto de Bento XVI é tão importante. Tal homem, que era o chefe da instituição que tem o mais antigo e representativo título de legitimidade, com seu gesto colocou em questão o próprio sentido desse título. Diante de uma cúria que, esquece-se totalmente da própria legitimidade e persegue obstinadamente as razões da economia e do poder temporal, Bento XVI escolheu usar apenas o poder espiritual no único modo que lhe pareceu possível, isto é, renunciando ao exercício do Vicariato de Cristo. Desse modo, a própria Igreja foi colocada em questão desde suas raízes. Não sabemos se a Igreja será capaz de se aproveitar dessa lição; mas seria certamente importante que os poderes laicos, a partir de tal lição, encontrassem uma oportunidade para novamente se interrogar sobre a própria legitimidade. 

Texto publicado no jornal La Repubblica, no dia 16 de fevereiro de 2013. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

     

sábado, 9 de fevereiro de 2013

O que é o "facebook"?


Tive um amigo que estudava Platão e gostava, muito, de jogar xadrez. Era um pai de família dedicado que lecionava em duas faculdades e escrevia uma tese sobre o Fedro. 

Foi a primeira pessoa que conheci em São Paulo. Enfrentávamos, na condição de bolsistas interioranos, a rotineira canalhice acadêmica e uma cidade hostil.      

Lembro que conversávamos por correio eletrônico sobre como conseguir prorrogar prazos e questiúnculas de doutorandos solitários quando, sem mais receber mensagens e vendo sua página de "facebook", deparo-me com a seguinte situação (ou a invento de memória): 

- Caro K, você está em Deus, ele escolhe os Seus. Descanse em paz. 

(Dez pessoas "curtiram" isso). 

- K. Saudades eternas, nos vemos do outro lado. 

(40 pessoas "curtiram" isso). 

E assim por diante. 

Supondo estar diante de uma alucinação, ou de piadas sobre teses platônicas intermináveis, recebo um e-mail da secretaria da pós-graduação avisando-me do pior. 

Meu amigo havia sido atropelado e estava morto.   

Relembrando, ou melhor, perlaborando este evento depois de alguns anos, vejo-me novamente com o estranhamento causado pelas mensagens de "facebook" ao amigo morto. 

Ali se revelou, para mim, a verdade deste aparato. Verdade não no sentido técnico-formal de uma definição (apologética) das redes sociais e a imbricação destes dispositivos ao capitalismo informacional, à sociedade do espetáculo, etc. etc. Estas análises tocam, talvez, apenas a epiderme do significado histórico-antropológico do "facebook". 

Em um mundo de subjetividades fantasmáticas e condenadas ao esquecimento massivo, o "facebook" é uma precária prótese de memória. 

O "facebook": milhares de Narcisos viciados em se olhar em pequenas poças. Cada uma destas poças, minúsculas, se conecta com as demais. Uma tentativa, desde sempre fracassada, de que as imagens de cada um destes Narcisos drogados lancem reflexos no líquido viscoso que compõe a totalidade das pequenas poças. O desespero infernal de se chegar à Imagem Matricial (que nada mais é que o Nada translúcido e espectral de toda imagem de si). 

Stalker (de Tarkovsky) matizado de azul bebê. O líquido das poças pode ser o vômito de um menino assustado chamado Mark.        

Cada vez que vejo o "facebook" não deixo de pensar em grandes cemitérios memoriais contendo milhares e milhares de fotografias de espectros. Um monumento à frágil memória de eidola viventes. Tumbas online.

Barthes: toda fotografia é espectral, um eidolon. Não só por sua dimensão imaginária, seu suporte fantasmático, mas por ser uma autenticação daquilo que não mais é. A imagem do morto. "Pois não sei o que a sociedade faz de minha foto, o que ela lê nela (de qualquer modo, há tantas leituras de uma mesma face), mas quando me descubro no produto desta operação, o que vejo é que me tornei Todo-Imagem, isto é, a Morte em pessoa."    

7 bilhões de pessoas movendo-se, em uma pedra musguenta aquecida por uma estrela, na escuridão da noite cósmica. Embriagando-se, fumando pedras ou lançando dados no "facebook".                    

"Facebook" é a apokatastasis infernal de um presente contínuo e asfixiante. "Restitutio in pristinum statum": neste inferno, que não leva em conta a passagem do tempo (e a memória dos eventos concretos), sua namorada de infância - casada e com filhos - conviverá, na suposta harmonia de um paraíso virtual, com seu colega de trabalho, com seus pais, irmãos, primos distantes e nunca mais visitados, com o cunhado drogado, o tio folgado, com a moça embriagada do boteco de ontem à noite, com o patrão assediador, com a atual namorada e, sim, com os amigos de colégio, inclusive aqueles que faziam troça de si, mas isso apenas você lembra. 

O "facebook" é cumulativo ao modo Funes, mas aplicado às relações humanas e suas pequenas memórias e sordidezes.  

O "facebook" colocou um fim ao benfazejo luto entre-vivos.  

A grande metáfora da passagem do tempo está nos convivas proustianos reencontrados pelo narrador. O tempo é visto nas rugas, nas papadas, nos cabelos brancos de cada um. O tempo é a morte. O narrador é tomado por um estado de comoção ao perceber estas mudanças, a morte moldando a vida, o corpo exposto ao tempo, a mente ao esquecimento.  

O "facebook" é antiproustiano por excelência: a morte, a distância e o esquecimento são ali interditados. 

Mas não se brinca impunemente com o tempo. Nada mais perturbador que "fazer uma amizade numérica" com um(a) absolutamente estranho(a) outrora familiar. Nada mais melancólico que falar com fantasmas. Nada mais abjeto que espectros "curtindo" um grito de socorro no baile macabro da Gurizada Fandangueira.   

Um tapa na cara daqueles que argumentam sobre os riscos à "privacidade" nas redes sociais. Desde Simmel sabemos que a privacidade está vetada na grande metrópole capitalista. A principal vítima do aparato deste canalha chamado Mark Zuckerberg é o mundo enquanto tal, a possibilidade de gestos e experiências mundanas e suas memórias de pele. 

Compartilhamentos ("cum panis") de pães efetivos, não da miséria metafísica. 

O "facebook" é a fábrica gestora de fetichistas auto-centrados e resilientes. 

A mercadoria encarnando-se em pessoas. 

Studium macabro: captura dos gestos excessivos - o jogo, o prazer, o "investimento" não utilitário - na formação de um cadastro babélico, feito prazerosamente pelos próprios governados, para servir de uso à CIA e companhias de marketing. 

O Bloom-Narciso viciado em si mesmo trabalhando, boa parte de seus dias fugazes sobre a terra, para construir um panóptico rizomático com tons azul bebê.  

O rosto, último reduto da nudez e da visibilidade, tombado no livro de um catalogador de campo virtual.  

Ora, e os ativismos? E as "primaveras" desencadeadas pelas redes sociais? E "los indignados" e o movimento "occupy", a guerra de posição virtual? 

Onde eles estão? Que revolução é esta que exige postos de trabalho? Pois, na ótica do "facebook", que plasmou uma cultura política deletéria, todos estamos ligados a empresas e marcas, nem que seja uma Ong "alternativa".       

O questionamento começa pelas formas, pelo medium que pode limitar ou expandir os limites do possível e do vivido. Política à maneira analógica. Práxis: todos os manifestos "facebookianos" não atingem o nível de materialidade de uma pichação barata. 

Recuso-me a conceber que os Mark's Zuckerberg's estejam com a razão. 

Quis custodiet ipsos custodes? 

Quién vigilará a los vigilantes? 

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

À destinatária impossível


Para minha destinatária impossível.

Querida, sinto por escrever-lhe novamente. Não um lamento, um sinto muito, não. Sinto que os anos, essas máquinas vorazes de Saturno, mastigam minha cabeça e rasgam meu peito enquanto luto para escapar de suas presas. Sinto porque parece que ainda assim as passadas da vida dão ares luxuriantes para esse caminho sem volta ao ralo da morte. Sinto porque, como um velho perdido em sua viagem vertical, decidi ocupar o tempo que me resta, sabendo que, nessa luta contra Saturno, resta-me todo o tempo do mundo. E meu sentir, querida, não é lamento, pois entre os gritos do meu nascimento e os suspiros da morte por vir não há somente uma perda desenfreada e esdrúxula (para a qual tendemos quando os ventos da melancolia tocam nosso rosto), mas, como na música, há síncope, um juntar (syn - com) e um cortar (cope - romper), um ritmo que meus ouvidos deixam entrar docemente para me guiar ao nosso impossível encontro. O velho Itamar Assumpção - que, digo, criou-se onde também me criei -, na sua empresa extratora de petróleo musical, cantava o impossível, suponho, também a uma sua destinatária impossível. Que tal o impossível?, dizia ele. Eu, porém, querida, penso que talvez seja sua impossibilidade sincopada, ritmada, pronta para juntar e cortar seus tempos numa melodia que talvez eu nunca escute. Pode ser (ou pode não ser) que jamais juntemos nossos impossíveis, aliás, por que haveríamos de juntá-los se sincopamos em ritmos diversos? Não poderia, portanto, como o Itamar, sugerir-lhe o impossível, pois este já é para nós intransponível. Sinto agora o som quase sibilino de sua impossível voz ao ler esta curta carta; sinto o ritmo de sua respiração; sinto o movimentar de seus olhos ao acompanhar estas linhas; sinto o ritmo sincopado de seu coração; sinto, no tempo mesmo em que escrevo, seus dedos segurando esta impossível folha de papel. Sinto agora todo o tempo do mundo que me resta ocupado, pois enquanto escrevo e enquanto você lê, sincopamos uma vida impossível.

Do seu remetente impossível.

p.s.: minha mania de pós-escrever continua. Desta vez, porém, apenas para falar que o cartão que mando junto com esta carta impossível é do Fra Angelico, que também esboçava seus traços nos lugares das músicas impossíveis, os missais.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Disparates sobre a voracidade


Georges Didi-Huberman



Minha primeira história se passa em uma floresta virgem assustadora. Nela vive em senhorio um pequeno falcão de bico vermelho – na verdade, um prodigioso caçador. Ele tem os olhos tão penetrantes que pode, de uma altura considerável, distinguir um verme que se move entre duas folhas que apodrecem no solo. Ele então mergulha em direção do verme e leva-o ao céu com uma celeridade e precisão terríveis.

Na floresta de que falo, essas qualidades fazem da pequena ave de rapina algo ou alguém como um deus. O homem que aí vive quase se esquece de caçar para si: ele não deixa de olhar o pássaro soberbo, ele permanece horas, com o rosto virado para cima, os olhos secos e ardentes contemplando essa calma hipnótica e soberana do voo plano concêntrico, enquanto o falcão observa e escolhe sua presa; então, o traço vermelho de seu bico rasga o céu como o signo – o signo afiado e já sangrento – de sua predação mágica.

O homem, claro, inveja o pássaro. Ele o ama e o venera, e respeita infinitamente sua capacidade de ver – de ver e de caçar tão bem. Ele tem ciúmes também, e, então, ele odeia esse poder animal do olhar e da virtuosidade na arte de matar. Finalmente, como fazem quase sempre os homens em casos parecidos, ele o matará, aproveitando-se de um instante em que o pequeno falcão já comia os olhos de uma marmota dominada. Depois de uma longa corrida sobre as folhas das árvores, o homem encontrará o corpo derrubado do belo pássaro. Ele então o tomará com as duas mãos, o elevará acima de seu rosto que está virado para cima, arrebentar-lhe-á os olhos e derramará o humor vítreo nos seus próprios olhos, como um colírio. Então, voltará à caça, já certo de que nada lhe poderá escapar.

Frazer, de quem tomo esse fato amazonense, nomeia isso uma “magia homeopática”[1]. Sem nenhuma dúvida ele simplifica ao afirmar com suficiência que “nosso ingênuo selvagem espera absorver naturalmente uma parte da substância divina com a substância material”[2]. Nada aqui – não obstante a luxuriante cor local –, nada se decide “naturalmente”. Mas a recensão de Frazer não deixa de tocar em um problema crucial da antropologia e até mesmo da estética: o da arte de incorporar, enquanto a incorporação tende a abrir ou a fazer florescer a potência – talvez a essência – mágica do ato de parecer. Há nesse problema, obviamente, o enunciado do mais velho adágio em que a medicina opera: similia similibus curantur, as coisas parecidas só podem ser curadas por coisas parecidas[3]... Então nomeamos isso um imperativo imaginário que, literalmente, compeliria o homem a comer o que ele quer ser.

O índio Kobeua aperta assim o olho que ele gostaria de ser, o do falcão, sobre o seu: olho por olho – no sentido em que a preposição por “serve para marcar a relação entre uma coisa que afeta e a pessoa afetada”[4]. Nesse sentido, o procedimento simbólico e a operação de substituição realizam-se igualmente aqui num ato de absorção, de modo que imaginamos uma intimidade perturbadora. Para falar de modo sucinto, o índio comia para ver. Pois espremer o humor vítreo do pássaro entre os lábios de suas pálpebras era já uma maneira de comer – ou ainda, aqui, de beber. Em outras florestas, outros índios comem os olhos das corujas a fim de ver a noite[5]. Em outras, ainda, os homens devoram seus pássaros dos augúrios – corvos ou falcões – a fim de ver o futuro[6].

Comer tornar-se-ia então o exercício por excelência de um rito de passagem, seria uma iniciação ao poder – em particular, ao poder de matar. Quando a jovem mãe dá a seu anjinho uma colher de sopa com o divertido argumento “Coma, tu não sabes quem te comerá”, ela não ignora que é preciso comer para não morrer, ou mesmo para não ser morto. Mas ela ignora, talvez, que, em todo o mundo, é também preciso comer para melhor matar, ou ainda comer o que queremos matar, isto é, o que já matamos, de uma maneira ou de outra. Sob tal argumento, o inventário gigantesco reunido por Frazer não deixa de nos fazer tremer – entre a angústia e a louca risada –, como faz tremer em todos os sentidos a palavra onívoro que, como é notório, atribuímos a um grande número de pássaros, aos porcos, aos ratos e, evidentemente, aos homens, onívoros até o delírio (isto é, até o sistema), onívoros até a homovoracidade. É a voracidade própria dos rituais, é a voracidade própria de toda crença. Uma página, e uma só (mas que já parece interminável) dentre as duas ou três mil da obra de Frazer, será suficiente para nos reabrir os olhos:



Os guerreiros das tribos Theddora e Ngarigo (sudeste da Austrália) tinham costume de comer os pés e as mãos dos inimigos que eles tinham matado; eles acreditavam que, assim, adquiririam certas qualidades dos mortos e sua coragem. Na tribo Dieri, da Austrália central, quando um condenado tinha sido morto pelos seus executores oficialmente designados, lavava-se as armas que tinham servido à execução num pequeno recipiente de madeira, e a mistura ensanguentada era administrada a todos os carrascos seguindo um modo prescrito: eles deitavam-se de costas e os anciãos lhes derramava o líquido na boca. Acreditava-se que esse procedimento lhes desse uma força dobrada, uma coragem dobrada e uma grande energia para sua próxima empresa. Os Kilimarois, da Nova Gales do Sul, comiam o fígado e o coração de um homem corajoso para adquirir sua coragem. Do mesmo modo, em Tonkin, é uma superstição popular que o fígado de um homem bravo torna bravo quem quer que o coma. Também em Tonkin, quando um missionário católico foi decapitado, em 1837, o carrasco arrancou o coração de sua vítima e comeu uma parte, enquanto um soldado tentava devorar cru um outro pedaço. Os chineses engolem, com uma intenção análoga, a bílis de bandidos famosos que foram executados. Os Dayaks de Sarawak comiam as palmas das mãos e a carne dos joelhos mais robustos. Os Tolalakis, famosos caçadores de cabeças do centro de Celebes, bebem o sangue e comem o cérebro de suas vítimas para se tornar bravos. Os Italones das Filipinas bebem o sangue dos inimigos que eles mataram e comem uma parte de seu occipício e de seus úteros, tudo isso cru, para adquirir sua coragem. Pela mesma razão, os Efuagos, outra tribo das Filipinas, sugam o coluna vertebral de seus inimigos. Do mesmo modo, os Kais da Nova Guiné comem o cérebro de seus inimigos que mataram para adquirir sua força. Entre os Kimbundas do oeste africano, quando um novo rei começa a reinar, mata-se um prisioneiro de guerra corajoso para que o rei e os nobres comam sua carne e adquiram assim sua força e sua coragem. O famoso chefe Zulu Matuana bebeu a bílis de trinta chefes, dos quais ele havia destruído os sujeitados, na crença de que isso o tornaria forte. Os Zulus imaginam que comendo o centro da fronte e os supercílios de um inimigo adquirem a faculdade de olhar um adversário na cara. Em Tud, ou Ilha do Guerreiro, no estreito de Torres, os homens bebiam o suor dos guerreiros renomados e comiam as sujeiras contaminadas de sangue humano coagulado que vinham das unhas de suas mãos. Agia-se assim “para se tornar forte como a pedra e não conhecer o medo”. Em Nagir, outra ilha do estreito de Torres, para insuflar a coragem nos jovens, o guerreiro pegava o olho e a língua de um homem que tinha matado e, depois de os ter picado, misturava com sua urina; em seguida, administrava a mistura aos jovens, que recebiam com os olhos fechados e a boca aberta, sentados entre as pernas do guerreiro. Antes de cada expedição guerreira, os habitantes de Minahassa (Celebes) pegavam mechas de cabelo de um inimigo morto e as mergulhava na água fervente para delas extrair a coragem; os guerreiros bebiam então essa infusão de bravura[7].



Et caetera. Como vemos, o homem não é somente um lobo do homem: ele pode ser, de maneira mais refinada (quero dizer cruel), um chá para o homem, ou ainda, seu melhor prato reconstituinte, sua sopa de bravura que permitirá matar melhor. Dê-me o centro de tua fronte para comer para que eu possa te observar face a face e dominar tua morte, e, portanto, a minha. Para desfrutar de modo ideal do poder de te matar e de ser bravo também quando tu me comerás.

Ora, na própria lógica do texto de Frazer, é mesmo para ser um deus que tenderia, no fim das contas, essa voracidade ritual. O sonho último seria, talvez, de modo cru, comer o céu: é um pouco o que se passa nas outras florestas em que o homem decide um dia comer apenas o que vem do céu. Ele devora os pássaros, ele bebe da chuva. Mas, sobretudo, ele espera tudo o que foi tocado pelo relâmpago: dos restos de combustões celestes – animais queimados, árvores calcinadas, meteoros – ele faz refeição, mas também unguentos que ele incorpora à própria pele, por escarificação, como para abrir em seu corpo cem bocas. Então, o céu entra nele. Pouco a pouco ele se tornará o céu ou seu guardião sobre a terra, seu representante, como ele mesmo diz.



Com efeito, quando o céu está para se escurecer, antes mesmo que as nuvens apareçam ou que os trovões soem, o coração do guardião celeste sente a tempestade chegar: ele se esquenta e a cólera o excita. Quando o céu começa a ficar sombreado, o homem também se sombreia; quando troveja, ele franze a testa para que seu rosto fique irado como a face irritada do céu[8].



Imagino também que ele chore quando chove, que ele se fadigue quando venta. Imagino que esse exercício voraz da semelhança o ajude a não se sentir demasiadamente sob o sol.



Contarei minha segunda história apenas de memória com, certamente, a sensação de esquecer muito e de, sem dúvidas, transformá-la um pouco. É uma história que nos vem da bela tradição hassídica: ela relata um episódio da vida de Baal Shem Tov, o grande rabino milagroso. Um dia o rabino teve um sonho premonitório: ele se vê morto, no céu, e vê também exatamente o lugar que ocupa entre os eleitos ao redor do Messias. Ora, ele constata com espanto a figura de um gordo personagem sentado ao seu lado – ao seu lado mas ligeiramente mais próximo do Messias do que ele... Haveria, portanto, alguém mais sando do que o santo rabino Baal Shem Tov? Sim, pois há sempre alguém mais santo. Tal é o sentido ou a moral desse sonho.

Quando desperta, o rabino não se contenta nem com o sentido nem com a moral de seu sonho. Ele decide ir ver pessoalmente – num lugar incógnito, é claro – esse justo que lhe ultrapassa em santidade e que será seu futuro vizinho no paraíso. Baal Shem Tov se disfarça então de mendigo, como de costume (e, aliás, não havia grande coisa a mudar na sua maneira de se vestir), e parte para uma dessas muito longas viagens em que o legendário judeu é tão generoso. Semanas mais tarde, depois de caminhadas exaustivas, o velho homem se encontra diante da casa, muito miserável, daquele que ele quer ver ainda vivo antes de com ele conversar para sempre no além. É inverno, o vento sopra forte, estamos na Rússia e a noite está chegando. Além disso, a noite é de shabbat, o momento em que os judeus se encontram para festejar o repouso sagrado do sétimo dia. Nessa noite, em cada casa judia há a alegria da refeição partilhada, da vela que ilumina, do pão que se consagra. Nessa noite, tristeza rima com pecado. Nessa noite, toda mesa reserva um lugar ao viajante que passa.

Baal Shem Tov bate à porta, feliz de antemão pelo momento de santidade que irá partilhar calorosamente com aquele que é mais santo do que ele. Então, é um passo muito pesado que soa, e, quando a porta se entreabre – pois ela somente se entreabre – uma cabeça obesa, quase desagradável, fala para ele tomar seu caminho. Baal Shem Tov fica estupefato: que judeu recusa hospitalidade numa noite de Shabbat?! E insiste: “Não tenho onde dormir esta noite... Eu te pagarei...”

O mastodonte a contragosto abre sua porta e (vergonha! Pecado!) embolsa o dinheiro. Em tudo que segue, Baal Shem Tov irá ter surpresas e se terrificar, e se  decepcionar e ter agonias reais. O homem é apenas uma espécie de voracidade em ato. Não há na sua residência senão coisas empilhadas em desordem, já fedendo. Nenhum único livro. Nenhum castiçal. O homem come, come o tempo todo, come de tudo. Nenhuma vela que ilumina, nada de alegria, nada de prece, nenhum lugar para o estrangeiro. Apenas uma obtusa, misteriosa e solitária vontade de engolir.

Qual poderia ser a santidade de tal homem? Baal Shem Tov começa a se perguntar se seu sonho não tem um duplo sentido que lhe escapa ou se tal sonho não era em si mesmo um malvado golpe demoníaco. Vários dias depois o rabino se interroga sem compreender e luta contra a náusea. Ele ainda paga seu anfitrião detestável para observá-lo por um pouco mais de tempo em segredo, dizendo-se que tudo aquilo era apenas um fingimento, uma aparência, um disfarce de santo homem que quer esconder sua santidade. Então, durante a noite, ele espia seu sono: pesados e grosseiros roncos. Pela manhã, ele espia seu despertar: pesados e grosseiros grunhidos (e nada de filactérios na fronte, e jamais uma prece). Em seguida, ele retoma a infernal absorção contínua.

Por fim, desgostoso, Baal Shem Tov despede-se do personagem e se prepara para regressar triste à sua vila. Na porta, ele deixa mais um rublo na mão disforme e pergunta, como um último recurso: “De todos esses últimos dias, não nos dissemos grande coisa, uma vez que tu não cessaste de comer. Mas antes de nos deixarmos, eu ainda tenho uma questão para te colocar: por que tu comes tudo isso? Para onde isso irá?” E o homem responde bruscamente:



Muito bem, para ti posso dizer: quando era criança, meu pai foi preso pelos cossacos. Eles lhe disseram para abraçar um crucifixo – e ele, um judeu piedoso, naturalmente se recusou. Então eles o cobriram de petróleo e atiraram fogo. Eu vi, com meus olhos, meu pai queimar – mas por muito pouco tempo, compreendes. Meu pai era muito magro, era apenas pele e osso. Ele morreu muito rápido, compreendes? Eu, da minha parte, jurei queimar por muito tempo, muito, muito tempo, e de ser uma tocha tão gorda que os cossacos acharão meu fogo bonito e generoso.



Bal Shem Tov lhe diz: “Agora compreendo, e lhe agradeço... E nós nos falaremos mais tarde.”

Na sua bela obra sobre o messianismo judeu, Gershom Scholem assinala um comentário hassídico do Salmo 107, no quinto versículo (“Eles tinha fome e sede e suas almas sucumbiam”), sem dúvidas compilado por volta de 1760 pelo pregador Mendel de Bar, amigo e discípulo de Baal Shem Tov – mas atribuído tradicionalmente ao próprio grande rabino:



Eis um grande mistério: por que Deus criou o alimento e a bebida de que o homem tem necessidade? A razão é que estas estão repletas de faíscas do primeiro homem, Adão. Depois de sua queda, Adão escondeu os alimentos e as bebidas e os fez sucumbir nos quatro domínios da natureza: os minerais, os vegetais, os animais e os homens. Eles aspiram agora retornar e se juntar ao domínio da santidade. Assim, o que o homem come e bebe são suas próprias faíscas, que ele tem a obrigação de restaurar. É a isso que o salmista faz alusão quando escreve: Eles tinha fome e sede e suas almas sucumbiam – elas sucumbiam naquilo de que eles tinham fome e sede, o que significa que suas almas estavam em exílio nas formas e vestimentas estrangeiras. Saibais então que todas as coisas de que o homem tem necessidade para comer constituem, de modo escondido, suas próprias crianças lançadas ao exílio e ao cativeiro[9].



A terceira história é a de um homem que sabe que sua hora chegou. O que ele faz? Organiza uma grande refeição, que ele abre exatamente com estas palavras: “Desejei ardentemente comer convosco antes de sofrer...” Ele toma o pão, parte-o e distribui dizendo: “Tomai, comei, isto é meu corpo, dado por vós; fazei isso em minha memória”.[10] Ele toma o vinho, distribui-o e diz: “Isto é meu sangue, o sangue da aliança que será derramado para uma multidão”....[11]

O que significa o ato de comer nas frases célebres da instituição eucarística? Ao lado dos problemas abissais da transubstanciação, as palavras são, por fim, muito claras: ao dar de comer, o Cristo significa então que ele dá matéria para antecipar o pior – “meu sangue que vai ser derramado”. É mesmo um pior que vem do coração da refeição em questão, uma vez que o homem pelo qual o pior chega – a saber, Judas – está bem ali, comendo junto aos outros. “Um de vós me entregará, um que come comigo”, diz a versão de Marcos. E a de Matheus: “Aquele que colocar a mão junto comigo no prato é que irá me entregar”[12]. Mas o pior, o sangue que vai ser de uma vez por todas derramado, dá lugar, na eucaristia, à instituição de um rito sacramental destinado a repetir indefinidamente sua memória. Ao dar de comer, o Cristo dá portanto matéria a se lembrar – “Fazei isso em minha memória”. Maneira de anunciar que o que comemos, sua “carne”, constitui já uma repetição (palavra a ser tomada em todos os sentidos, antecipadora e teatral, ou anamnésica e ritual), uma mnemotécnica de sua morte por vir. Enfim, o Cristo inverte in extremis o sentido lúgubre de toda essa cerimônia prometendo a todos seus convivas que irá reencontrá-los um dia para um Banquete eterno, no qual eles não cessarão mais de comer e de beber junto à mesa do Pai[13]. Compreendemos então que a refeição eucarística era concebida com vistas a dar matéria para esperar o melhor (isto é, o impossível). O ato de comer, vemos, terá servido a todas as questões ao mesmo tempo.

Mais estranho ainda é o deslocamento que percorre esse texto, ou ainda, esse conjunto de textos. De início, o Cristo deseja comer, “comer antes de sofrer”, como ele mesmo diz. Em seguida, ele dá a comer: ele dá e partilha o pão, à imagem de sua palavra e de tal ensinamento que ele acaba aqui de prodigar a seus discípulos. E para terminar o ensinamento, ele se dá a comer, enquanto corpo, sob as espécies palpáveis e misteriosas do pão e do vinho.

Antes do episódio da instituição eucarística, aliás, Jesus Cristo apresentava já essa particularidade, julgada absurda mesmo por alguns de seus discípulos: ele se dava por pão. Porque ele desejava ardentemente se deixar gostar ou comer como um bom pão. Seu discurso na sinagoga de Cafarnaum – que acontece, não por acaso, justamente depois do milagre da multiplicação dos pães – traz os estigmas de uma espécie de certeza delirante: “Eu sou o pão... o pão da vida... Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comerá deste pão viverá eternamente. E o pão que darei é minha carne para a vida do mundo... Em verdade, em verdade, vos digo, se vós não comeis a carne do Filho do homem e não bebeis seu sangue, vós não tereis a vida em vós. Quem come minha carne e bebe meu sangue tem a vida eterna... Quem come minha carne e bebe meu sangue permanece em mim e eu nele”[14] Frases abissais – sexualmente abissais. Frases de amor místico, isto é, portadoras de uma total voracidade: ame-me, venha a mim, permaneça em mi – coma-me. E tu gozarás eternamente.

No episódio evangélico desse extraordinário discurso sobre o pão, são João não deixa de contar a reação escandalizada dos ouvintes: “É dura esta palavra! Quem a pode escutar?” Quem pode, com efeito, sustentar o estouro desse cristal de gozo? Jesus especificará, no fim do percurso, que ele fala “em espírito” e não em corpo – “Isso vos escandaliza? ... As palavras que vos digo são espírito!” –, e que o mal já está feito, isto é, que a carne já fez seu ofício de terror no superego dos espectadores. E são João constata abruptamente o efeito de repulsão sem volta que esse chamado voraz do Cristo acaba de suscitar: “A partir de então, muitos de seus discípulos se retiraram e não foram mais com ele”[15]. O fantasma do deus que se dá a comer para a vida de seus sujeitados – segundo uma linha contínua que vai do sacrifício ao sacramento[16] – constitui, entretanto, a rocha de toda a crença e de toda liturgia cristã. São Tomás de Aquino não a entendia de outro modo, ele que intitulou com a palavra sumptio (manducação) os doze artigos de sua vigésima quarta questão, na terceira parte da Suma Teológica[17].

Sumptio, o ato de comer, aí é descrito nos mesmos termos em que um pai se veria constrangido a explicar a seu filho por que é preciso comer (e não nos esqueçamos de que a Suma se endereça, de início, aos noviços, às crianças): tu comes, meu filho, para crescer. Teu corpo ainda é pequeno e sem forças. Tu comes para cumprir a vida em ti. São Tomás falará então do alimento eucarístico em termos de alimentum: da mesma forma que o batismo faz “nascer” espiritualmente o corpo cristão, assim também o exercício eucarístico (usus seu sumptio) permitirá que ele se nutra e cresça[18]. Crescer até onde? – poderia perguntar a criança. De fato, tal é a questão. Perceberemos rapidamente que o ato de comer deus sob as espécies consagradas do pão e do vinho – sua “presença real” apreensível pela boca – visa algo como um inchaço infinito do corpo que o absorve.

E não é somente um inchaço do tempo, produtor de graça e de perpétuo renascimento: “Quem come minha carne e bebe meu sangue tem a vida eterna”[19]. De modo mais direto, é também uma espécie de inchaço local que prolongará o corpo cristão, passo a passo, para ampliá-lo até a enormidade e a multidão. Isso porque, na liturgia eucarística, “muitos estão no Cristo” (multi sunt unum in Christo) e cada um torna-se muitos[20]. Como se a absorção, que todos os corpos separados fazem do único corpo do cristo – ele mesmo indefinidamente disseminado em todas as migalhas de hóstias e em todas as gotas do vinho consagrado –, tivesse como efeito juntar e unir todos os corpos uns aos outros até o desmedido de um corpo-mundo. A eucaristia, dita sacramentum conjunctionis, foi pensada, a partir de são Paulo e dos Pais da Igreja, como um “mistério da unidade” dos corpos (mysterium unitatis) – o mistério pelo qual um corpo, um só e gigantesco corpo chamado “místico”, supõe-se produzir, formar-se, a partir de todos aqueles que absorvem o mesmo deus; dá-se então a unitas corporis da Igreja como um todo que se coagula no evento da missa, antes de se realizar para sempre no grande festim eternamente nupcial do fim dos tempos.[21]

Mas o que exatamente come-se nessas migalhas, nessas gotas em que se supõe sustentar e reproduzir o corpo de um deus e de todos os outros corpos que, na espécie, o incorporam? O que vós comeis – explica em sustância são Tomás – é algo que constantemente transita entre massa e representação. E explica: de início, vós comeis espécies (ex speciebus in quibus traditur hoc sacramentum): é uma massa, uma massa de vinho feita de todos os grãos de uva, uma massa de pão feita de todos os grãos de trigo. Em seguida, vós comeis uma modalidade (ex modo quo traditur hoc sacramentum): uma massa de matéria que vos converte espiritualmente, uma vez que ela vale uma graça espiritual. Em terceiro lugar, vós comeis um conteúdo (ex eo quod in hoc sacramentum continetu...): e é o próprio Cristo (... quod est passio Christi) – sua prova sacrificial, seu rito mortal e mortífero de passagem à vossa memória[22]. Para fazer inflar a vida em ti, minha criança, é preciso que tu comas a morte e que tu incorpores o sofrimento de teu deus.

Há aí uma lei muito estranha. Seu paradoxo não surge somente pelo fato de, nela, a morte nutrir a vida. Surge também de uma topologia fantasmática segundo a qual aquele que come está incorporado naquilo que come – a saber, no corpo do deus. O Cristo, lembremo-nos, tinha pronunciado esta frase chocante: “Quem come minha carne e bebe meu sangue permanece em mim e eu nele”[23]. O liturgista da Idade Média oferecia nestes termos: “Aquele que come e está incorporado tem o sacramento e o real (res, a coisa) do sacramento. Aquele que come mas não é incorporado tem o sacramento, mas não tem o real do sacramento”[24]. Aí está um sentido extremo para a palavra communio: ao receber a eucaristia, cada pessoa magicamente se sente “passar para o corpo do Cristo”[25]. O que permite, no fim das contas – segundo o princípio selvagem de uma verdadeira autofagia mística –, pensar o corpo que come como tornado aquilo mesmo que ele come, a saber, uma substância de graça divina[26]. Comei-vos uns aos outros, vós que sois os membros deste grande corpo do deus que vós deveis incorporar em sacramento. Tal seria o enunciado imperativo dessa forma de amor e dessa aliança voraz com Deus – um amor, uma aliança, de carne comida e de sangue bebido.

Mas diante do imperativo universal desse fantasma de corpo, é fato que cada um reage à sua maneira. Há os sábios de Deus e os loucos de Deus, cada uma modulando a lei geral da voracidade com mais ou menos voracidade singular. Há os excessivos, aqueles que vão direto ao essencial. Estes farão qualquer esforço para comer o Cristo justo quando ele entrega sua alma: eles comerão o pão da vida mergulhando-o num vinho de morte. Então, eles comerão o coração. Eles desejam incorporar a Paixão do Cristo (quod per hoc sacramentum repraesentatur) por seu coração ou decor[27], e a estranha topologia da inclusão recíproca os levará finalmente a entrar no coração, a habitá-lo e a ser comidos por ele:



Há a mesma diferença entre quem se dedica a meditar as dores íntimas do Cristo e quem se volta àquelas de sua humanidade – que há também entre o mel ou o bálsamo que está no vaso e aquelas gotículas que umedecem o vaso por fora. Portanto, quem deseja degustar a Paixão do Cristo não deve se contentar em deixar sua língua na borda exterior do vaso, isto é, nas feridas e no sangue que aderem ao vaso sagrado da humanidade do Cristo... Deve entrar no vaso, quero dizer o coração abençoado do Cristo, e ali ele será saciado, inclusive, para além de seus desejos[28].



Essas poucas frases, atribuídas à Bem Aventurada Camilla Battista da Varano (1458-1524), essas poucas frases intensas que declinam o ato de comer como o de entrar naquilo que comemos para fazer-se digerir, certamente são herdeiras de toda uma tradição que conheceu seu apogeu no fim da Idade Média[29]. Os exemplos ali são inumeráveis e tão estupefacientes. Consideremos as “fomes eucarísticas” (esuries) de santa Catarina de Siena, que vomitava, com a ajuda de uma vara preparada para tal, para melhor gozar do único festim de carne e de sangue divinos ao qual ela se entregava com uma paixão unilateral; a tal ponto ela se entregava, que um dia mordeu o cálice que lhe era oferecido com tanta força que a marca de seus dentes se gravou no metal e o padre teve que se esforçar muito para retira-lhe da boca. Consideremos também Doroteia de Montau (1347-1394), cujo processo de canonização assinala que a absorção das espécies eucarísticas “a agitava como água fervente”; que “se lhe tivesse sido permitido, ela com prazer teria arrancado a hóstia das mãos do padre para levar à sua boca”; que depois de receber o sacramento ela tinha a nítida sensação de carregar em si um feto – o feto desse esposo divino, desse sponsus que a invadia com sua presença destilando por todo seu corpo algo como uma consolatio, ou uma suavitas, ou uma delectatio... algo que ela acaba por nomear com as palavras copula intima peracta, isto é, um orgasmo[30]. Como a Virgem da Anunciação, sem dúvidas, Doroteia de Montau prova a presença do Cristo segundo o batimento rítmico de uma prodigiosa operação que a preenchia ao mesmo tempo em que ela se sentia afogar.



Contarei, para terminar, uma história mais breve e aparentemente menos grave. É a história de um homem muito doce e que gostava apenas de mel. Ele passava toda sua vida a pregar doçuras e a comer mel. Ao fim de alguns anos, seus excrementos tinham se tornado mel. Mais tarde, depois de sua morte e de seu voto de eterna doçura, ele foi colocado dentro de um caixão de pedra e mergulhado completamente no mel. Cem anos se passaram durante os quais seu corpo acabou por se fundir no mel. Então o caixão foi reaberto e tal substância foi distribuída aos doentes, pois ela curava todo tipo de afecção.

A história está numa obra chinesa intitulada Tcho-keng lou e é datada de 1366. O autor especifica que ela não é autóctone: “Em chinês vulgar, dizemos homem de mel; a palavra estrangeira é mou-nai-yi.” Ora, esse último termo designa a múmia. O “mel” da história é sem nenhuma dúvida uma tradução ruim (ou muito boa) do árabe e do persa mûmîa, mûmiâî, palavras que designam o betume ou o piche utilizado no Oriente Médio para ungir os cadáveres que serão mumificados[31].

O mel mágico de nossa história poderia então ter sua origem no comércio muito particular que ligava naqueles tempos o Oriente Médio a toda Europa, mas que se espalhou também até o Japão e a China: era uma farmacopeia obtida a partir das múmias egípcias, um “pó de múmia” ao qual Ambroise Paré consagrou – obviamente para dele zombar – uma verdadeira pequena monografia. Nesta, explica como os antigos utilizavam o betume ou o piche “para a geleia de seus corpos”, antes de fazer desses corpos mortos meles ou geleias de bem-estar para os corpos vivos[32].



Por que comemos tão vorazmente? Por todas as boas e más razões. Por razões de vida, por razões de morte. Por razões disparatadas, isto é, contraditórias, e que, entretanto, não importa como, não se dispõem. Comer nos ajuda a melhor matar (era o sentido da primeira história). Comer nos ajuda a melhor morrer (era o sentido da minha segunda história). Comer nos ajuda a melhor ressuscitar (é o sentido do sacramento eucarístico). A última história nos ensina que comer pode também servir a melhor apodrecer, para melhor fornecer aos outros os meios de não morrer. Como se o ato de comer se sustentasse de algo como uma heurística da morte.



École des Hautes Etudes, Paris. 

Georges Didi-Huberman. Disparates sur la voracité. In.: MLN, vol. 106, nº 4, French Issue: Cultural Representations of Food. (Sep., 1991), Baltimore, John Hopkins University Press. pp. 765-779. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)   

Imagem: Joachim Beuckelaer. Porco morto. 1563. Wallraf-Richartz Museum, Colônia.  




[1] J.G. Frazer, Le Rameau d’or, III. Esprits des blés et des bois (1912), trad. P. Sayn, Laffont, Paris, 1983, p. 280.
[2] Id., ibid., p. 281.
[3] Cf. Hippocrate, Des lieux dans l’homme, XLII, 2, éd. Et trad. R. Joly, Les Belles Lettres, Paris, 1983, p. 280.
[4] E. Littré, Dictionnaire de la langue française (1866), éd. Du Cap, Monte-Carlo, 1966, III, p. 4897.
[5] J.G. Frazer, op. cit., p. 284.
[6] Id., ibid., p. 283-284. Começa a ser evidente que comer, a contrario, a carne de um frango torna temeroso – ou que comer a carne de uma tartaruga impede de correr. (ibid., p. 282).
[7] Id., ibid., p. 288. A página foi extraída do mesmo capítulo, intitulado “A magia homeopática do regime carnívoro” (p. 280-297) – o que nos indica mais uma vez que estamos mal ou bem aí, e que nos ritos guerreiros (destruidores) funcionam todos os dispositivos comuns à arte de curar (reparadores). Aliás, Géza Roheim assinala um grande número de fatos aparentados no seu capítulo sobre “L’homme-médecine et l’art de guérir”, in: L’animisme, la magie et le roi divin (1930), trad. L. Et M.M. Jospin et A. Stronk, Payot, Paris, 1988, p. 123-144 (“La guérison par succion”).
[8] J.G. Frazer, op. cit., p. 293.
[9] G. Scholem, Le messianisme juif. Essais sur la spiritualité du judaïsme (1971), trad. B. Dupuy, Calmann-Lévy, Paris, 1974, p. 285.
[10] N.T.: Optei por traduzir as citações do texto bíblico de acordo com as citações do autor, sem me preocupar com as traduções publicadas em português.
[11] Lucas, Cap. XXII, 14-15 e 19. Matheus, Cap. 26, 26. Marcos, Cap. 14, 24.
[12] Marcos, Cap. 14, 18. Matheus, Cap. 26, 23. Quanto a Lucas, Capl. 22, 21: “Entretanto, eis que a mão daquele que me entrega está comigo sobre a mesa.”
[13] Matheus, Cap. 26, 29. Marcos, Cap. 14, 25. Lucas, Cap. 22, 16-18.
[14] João, Cap. 6, 48-56.
[15] João, Cap. 6, 60-66.
[16] Linha que a teologia moderna tenta em vão – e anacronicamente – romper. Anotamos aqui a justa lição de Henri de Lubac: “Aqui, será conveniente sobretudo esquecer a separação colocada por tantos tratados modernos entre ‘a Eucaristia como sacrifício’ e ‘a Eucaristia como sacramento’, por mais cômoda e fundada que tal separação seja. Pois o sacramento não se compreende sem o sacrifício durante o qual ele se realiza e no qual, na sua permanência, ele conserva uma referência obrigatória: In sacramento corporis Christi mors eius annuntiatur; e, por sua vez, o sacrifício é ele mesmo um sacramento...” H. de Lubac, Corpus Mysticum. L’eucharistie et l’Eglise au Moyen Age, Aubier, Paris, 1949 (2e éd. revue), p. 70. 
[17] Tomás de Aquino, Suma theologiae, IIIa, 80: De usu seu sumptione huius sacramenti in communi (Do uso ou manducação desse sacramento em geral).
[18] Mais precisamente: “Assim como a vida espiritual requereu o batismo, o qual é geração (generatio) espiritual e a confirmação que é crescimento (augmentum) espiritual, assim também ela requereu o sacramento da eucaristia, que é alimento (alimentum) espiritual.” Id., ibid., IIIa, 73, 1.  
[19] João, Cap. 6, 52, comentado por Tomás de Aquino, Summa theologiae, IIIa, 79, 2.
[20] Tomás de Aquino, Summa theologiae, IIIa, 82, 2.
[21] Id., ibid., IIIa, 79, 7. Matheus, Cap. 22, 1-14. H. de Lubac, op. cit., p. 27.
[22] Tomás de Aquino, Summa theologiae, IIIa, 79, 1.
[23] João, Cap. 6, 56.
[24] Hugo de São Vitor, De sacramentis, II, 8, P.L., CLXXVI, col. 465C.
[25] Sicut enim nos de uno pane et de uno calice percipientes, participes et consortes sumus corporis Domini”. Raban Maur, citado e comentado por H. de Lubac, op. cit., p, 32. Cf. igualmente p. 54-55.
[26] “O corpo do Cristo – composto de todos os fiéis como seus membros – deveria se nutrir da carne do Cristo: Ut simus in eius corpore, sub ipso capite, in membris eius, edentes carnem eius. Assim, falava santo Agostinho, cuja linguagem Beda e Alcuíno ajudaram a vulgarizar. Prolongamento maravilhoso da Encarnação…” H. de Lubac, op. cit., p. 52.
[27] N.T.: No original o autor joga com o termo par coeur.
[28] Acta Sanctorum, Mai, VII, p. 492.
[29] Entre a abundante literatura crítica, podemos ler dois estudos magníficos: A. Vauchez, “Dévotion eucharistique et union nystique chez les saintes de la fin du Moyen Age”, Atti del Simposio Internazionale cateriniano-bernardiniano, Accademia senese degli Intronati, Siena, 1982, p. 295-300. C. W. Bynum, Holy Feast and Holy Fast. The Religious Significance of Food to Medieval Women, University of California Press, Berkeley, 1987.
[30] Citado por A. Vauchez, art. cit., p. 296-298. Poderíamos comparar essa passage com a questão – julgada suficientemente importante por Tomás de Aquino ao ponto de tomar um inteiro artigo na Suma – de saber se a polução noturna impede ou não de comer o sacramento eucarístico (utrum nocturna pollution impediat aliquem a sumptione corporis Christi). A resposta (positiva, é claro) baseia-se numa prescrição do Levítico, Cap. 15, 16: “Quando um homem tiver polução seminal, ele estará impuro até a noite”.
[31] H. Franke, “Das chinesische Wort für Mumie,” Oriens, X, 1957, p. 253-257.
[32] A. Paré, “Discurs de la mumie” (1582), Oeuvres complèstes, éd. J.-F. Malgaigne, Slatkine Reprints, Genève, 1970, III, p. 476. Cf. também R. Pécout, Les mangeurs de momies. Des tombeaux d’Egypte aux sorciers d’Europe, Belfond, Paris, 1981.