Georges Didi-Huberman
Minha primeira história se passa em uma floresta
virgem assustadora. Nela vive em senhorio um pequeno falcão de bico vermelho –
na verdade, um prodigioso caçador. Ele tem os olhos tão penetrantes que pode,
de uma altura considerável, distinguir um verme que se move entre duas folhas
que apodrecem no solo. Ele então mergulha em direção do verme e leva-o ao céu
com uma celeridade e precisão terríveis.
Na floresta de que falo, essas qualidades fazem da
pequena ave de rapina algo ou alguém como um deus. O homem que aí vive quase se
esquece de caçar para si: ele não deixa de olhar o pássaro soberbo, ele
permanece horas, com o rosto virado para cima, os olhos secos e ardentes
contemplando essa calma hipnótica e soberana do voo plano concêntrico, enquanto
o falcão observa e escolhe sua presa; então, o traço vermelho de seu bico rasga
o céu como o signo – o signo afiado e já sangrento – de sua predação mágica.
O homem, claro, inveja
o pássaro. Ele o ama e o venera, e respeita infinitamente sua capacidade de
ver – de ver e de caçar tão bem. Ele tem ciúmes também, e, então, ele odeia
esse poder animal do olhar e da virtuosidade na arte de matar. Finalmente, como
fazem quase sempre os homens em casos parecidos, ele o matará, aproveitando-se
de um instante em que o pequeno falcão já comia os olhos de uma marmota
dominada. Depois de uma longa corrida sobre as folhas das árvores, o homem
encontrará o corpo derrubado do belo pássaro. Ele então o tomará com as duas
mãos, o elevará acima de seu rosto que está virado para cima, arrebentar-lhe-á
os olhos e derramará o humor vítreo nos seus próprios olhos, como um colírio.
Então, voltará à caça, já certo de que nada lhe poderá escapar.
Frazer, de quem tomo esse fato amazonense, nomeia
isso uma “magia homeopática”.
Sem nenhuma dúvida ele simplifica ao afirmar com suficiência que “nosso ingênuo
selvagem espera absorver naturalmente uma parte da substância divina com a
substância material”.
Nada aqui – não obstante a luxuriante cor local –, nada se decide
“naturalmente”. Mas a recensão de Frazer não deixa de tocar em um problema
crucial da antropologia e até mesmo da estética: o da arte de incorporar, enquanto a incorporação tende a abrir ou a
fazer florescer a potência – talvez a essência – mágica do ato de parecer. Há nesse problema, obviamente, o enunciado do mais
velho adágio em que a medicina opera: similia
similibus curantur, as coisas parecidas só podem ser curadas por coisas
parecidas...
Então nomeamos isso um imperativo imaginário que, literalmente, compeliria o
homem a comer o que ele quer ser.
O índio Kobeua aperta assim o olho que ele gostaria
de ser, o do falcão, sobre o seu: olho por olho – no sentido em que a
preposição por “serve para marcar a
relação entre uma coisa que afeta e a pessoa afetada”.
Nesse sentido, o procedimento simbólico e a operação de substituição
realizam-se igualmente aqui num ato de absorção, de modo que imaginamos uma intimidade
perturbadora. Para falar de modo sucinto, o índio comia para ver. Pois espremer o humor vítreo do pássaro entre os
lábios de suas pálpebras era já uma maneira de comer – ou ainda, aqui, de beber. Em outras florestas, outros
índios comem os olhos das corujas a fim de ver a noite.
Em outras, ainda, os homens devoram seus pássaros dos augúrios – corvos ou
falcões – a fim de ver o futuro.
Comer tornar-se-ia então o exercício por excelência
de um rito de passagem, seria uma iniciação ao poder – em particular, ao poder
de matar. Quando a jovem mãe dá a seu anjinho uma colher de sopa com o divertido
argumento “Coma, tu não sabes quem te
comerá”, ela não ignora que é preciso comer para não morrer, ou mesmo para
não ser morto. Mas ela ignora, talvez, que, em todo o mundo, é também preciso
comer para melhor matar, ou ainda comer o que queremos matar, isto é, o que já
matamos, de uma maneira ou de outra. Sob tal argumento, o inventário gigantesco
reunido por Frazer não deixa de nos fazer tremer – entre a angústia e a louca
risada –, como faz tremer em todos os sentidos a palavra onívoro que, como é notório, atribuímos a um grande número de
pássaros, aos porcos, aos ratos e, evidentemente, aos homens, onívoros até o
delírio (isto é, até o sistema), onívoros até a homovoracidade. É a voracidade
própria dos rituais, é a voracidade própria de toda crença. Uma página, e uma
só (mas que já parece interminável) dentre as duas ou três mil da obra de
Frazer, será suficiente para nos reabrir os olhos:
Os guerreiros das tribos Theddora e
Ngarigo (sudeste da Austrália) tinham costume de comer os pés e as mãos dos inimigos
que eles tinham matado; eles acreditavam que, assim, adquiririam certas
qualidades dos mortos e sua coragem. Na tribo Dieri, da Austrália central,
quando um condenado tinha sido morto pelos seus executores oficialmente
designados, lavava-se as armas que tinham servido à execução num pequeno
recipiente de madeira, e a mistura ensanguentada era administrada a todos os
carrascos seguindo um modo prescrito: eles deitavam-se de costas e os anciãos
lhes derramava o líquido na boca. Acreditava-se que esse procedimento lhes
desse uma força dobrada, uma coragem dobrada e uma grande energia para sua
próxima empresa. Os Kilimarois, da Nova Gales do Sul, comiam o fígado e o
coração de um homem corajoso para adquirir sua coragem. Do mesmo modo, em Tonkin,
é uma superstição popular que o fígado de um homem bravo torna bravo quem quer
que o coma. Também em Tonkin, quando um missionário católico foi decapitado, em
1837, o carrasco arrancou o coração de sua vítima e comeu uma parte, enquanto
um soldado tentava devorar cru um outro pedaço. Os chineses engolem, com uma
intenção análoga, a bílis de bandidos famosos que foram executados. Os Dayaks
de Sarawak comiam as palmas das mãos e a carne dos joelhos mais robustos. Os
Tolalakis, famosos caçadores de cabeças do centro de Celebes, bebem o sangue e
comem o cérebro de suas vítimas para se tornar bravos. Os Italones das
Filipinas bebem o sangue dos inimigos que eles mataram e comem uma parte de seu
occipício e de seus úteros, tudo isso cru, para adquirir sua coragem. Pela mesma
razão, os Efuagos, outra tribo das Filipinas, sugam o coluna vertebral de seus
inimigos. Do mesmo modo, os Kais da Nova Guiné comem o cérebro de seus inimigos
que mataram para adquirir sua força. Entre os Kimbundas do oeste africano,
quando um novo rei começa a reinar, mata-se um prisioneiro de guerra corajoso
para que o rei e os nobres comam sua carne e adquiram assim sua força e sua
coragem. O famoso chefe Zulu Matuana bebeu a bílis de trinta chefes, dos quais
ele havia destruído os sujeitados, na crença de que isso o tornaria forte. Os
Zulus imaginam que comendo o centro da fronte e os supercílios de um inimigo
adquirem a faculdade de olhar um adversário na cara. Em Tud, ou Ilha do
Guerreiro, no estreito de Torres, os homens bebiam o suor dos guerreiros
renomados e comiam as sujeiras contaminadas de sangue humano coagulado que
vinham das unhas de suas mãos. Agia-se assim “para se tornar forte como a pedra
e não conhecer o medo”. Em Nagir, outra ilha do estreito de Torres, para
insuflar a coragem nos jovens, o guerreiro pegava o olho e a língua de um homem
que tinha matado e, depois de os ter picado, misturava com sua urina; em
seguida, administrava a mistura aos jovens, que recebiam com os olhos fechados
e a boca aberta, sentados entre as pernas do guerreiro. Antes de cada expedição
guerreira, os habitantes de Minahassa (Celebes) pegavam mechas de cabelo de um
inimigo morto e as mergulhava na água fervente para delas extrair a coragem; os
guerreiros bebiam então essa infusão de bravura
Et caetera. Como vemos, o homem não é somente um lobo do homem:
ele pode ser, de maneira mais refinada (quero dizer cruel), um chá para o
homem, ou ainda, seu melhor prato reconstituinte, sua sopa de bravura que
permitirá matar melhor. Dê-me o centro de tua fronte para comer para que eu
possa te observar face a face e dominar tua morte, e, portanto, a minha. Para
desfrutar de modo ideal do poder de te matar e de ser bravo também quando tu me
comerás.
Ora, na própria lógica do texto de Frazer, é mesmo
para ser um deus que tenderia, no fim
das contas, essa voracidade ritual. O sonho último seria, talvez, de modo cru, comer o céu: é um pouco o que se passa
nas outras florestas em que o homem decide um dia comer apenas o que vem do
céu. Ele devora os pássaros, ele bebe da chuva. Mas, sobretudo, ele espera tudo
o que foi tocado pelo relâmpago: dos restos de combustões celestes – animais queimados,
árvores calcinadas, meteoros – ele faz refeição, mas também unguentos que ele
incorpora à própria pele, por escarificação, como para abrir em seu corpo cem
bocas. Então, o céu entra nele. Pouco a pouco ele se tornará o céu ou seu
guardião sobre a terra, seu representante,
como ele mesmo diz.
Com efeito, quando o céu está para
se escurecer, antes mesmo que as nuvens apareçam ou que os trovões soem, o
coração do guardião celeste sente a tempestade chegar: ele se esquenta e a
cólera o excita. Quando o céu começa a ficar sombreado, o homem também se
sombreia; quando troveja, ele franze a testa para que seu rosto fique irado
como a face irritada do céu.
Imagino também que ele chore quando chove, que ele se
fadigue quando venta. Imagino que esse exercício voraz da semelhança o ajude a
não se sentir demasiadamente sob o sol.
Contarei minha segunda história apenas de memória
com, certamente, a sensação de esquecer muito e de, sem dúvidas, transformá-la
um pouco. É uma história que nos vem da bela tradição hassídica: ela relata um
episódio da vida de Baal Shem Tov, o grande rabino milagroso. Um dia o rabino
teve um sonho premonitório: ele se vê morto, no céu, e vê também exatamente o
lugar que ocupa entre os eleitos ao redor do Messias. Ora, ele constata com
espanto a figura de um gordo personagem sentado ao seu lado – ao seu lado mas ligeiramente mais próximo do Messias do que
ele... Haveria, portanto, alguém mais sando do que o santo rabino Baal Shem
Tov? Sim, pois há sempre alguém mais santo. Tal é o sentido ou a moral desse
sonho.
Quando desperta, o rabino não se contenta nem com o
sentido nem com a moral de seu sonho. Ele decide ir ver pessoalmente – num lugar
incógnito, é claro – esse justo que lhe ultrapassa em santidade e que será seu
futuro vizinho no paraíso. Baal Shem Tov se disfarça então de mendigo, como de
costume (e, aliás, não havia grande coisa a mudar na sua maneira de se vestir),
e parte para uma dessas muito longas viagens em que o legendário judeu é tão
generoso. Semanas mais tarde, depois de caminhadas exaustivas, o velho homem se
encontra diante da casa, muito miserável, daquele que ele quer ver ainda vivo
antes de com ele conversar para sempre no além. É inverno, o vento sopra forte,
estamos na Rússia e a noite está chegando. Além disso, a noite é de shabbat, o
momento em que os judeus se encontram para festejar o repouso sagrado do sétimo
dia. Nessa noite, em cada casa judia há a alegria da refeição partilhada, da
vela que ilumina, do pão que se consagra. Nessa noite, tristeza rima com
pecado. Nessa noite, toda mesa reserva um lugar ao viajante que passa.
Baal Shem Tov bate à porta, feliz de antemão pelo
momento de santidade que irá partilhar calorosamente com aquele que é mais
santo do que ele. Então, é um passo muito pesado que soa, e, quando a porta se
entreabre – pois ela somente se entreabre – uma cabeça obesa, quase
desagradável, fala para ele tomar seu caminho. Baal Shem Tov fica estupefato:
que judeu recusa hospitalidade numa noite de Shabbat?! E insiste: “Não tenho
onde dormir esta noite... Eu te pagarei...”
O mastodonte a contragosto abre sua porta e
(vergonha! Pecado!) embolsa o dinheiro. Em tudo que segue, Baal Shem Tov irá
ter surpresas e se terrificar, e se
decepcionar e ter agonias reais. O homem é apenas uma espécie de
voracidade em ato. Não há na sua residência senão coisas empilhadas em
desordem, já fedendo. Nenhum único livro. Nenhum castiçal. O homem come, come o
tempo todo, come de tudo. Nenhuma vela que ilumina, nada de alegria, nada de
prece, nenhum lugar para o estrangeiro. Apenas uma obtusa, misteriosa e
solitária vontade de engolir.
Qual poderia ser a santidade de tal homem? Baal Shem
Tov começa a se perguntar se seu sonho não tem um duplo sentido que lhe escapa
ou se tal sonho não era em si mesmo um malvado golpe demoníaco. Vários dias
depois o rabino se interroga sem compreender e luta contra a náusea. Ele ainda
paga seu anfitrião detestável para observá-lo por um pouco mais de tempo em
segredo, dizendo-se que tudo aquilo era apenas um fingimento, uma aparência, um
disfarce de santo homem que quer esconder sua santidade. Então, durante a noite,
ele espia seu sono: pesados e grosseiros roncos. Pela manhã, ele espia seu
despertar: pesados e grosseiros grunhidos (e nada de filactérios na fronte, e
jamais uma prece). Em seguida, ele retoma a infernal absorção contínua.
Por fim, desgostoso, Baal Shem Tov despede-se do
personagem e se prepara para regressar triste à sua vila. Na porta, ele deixa
mais um rublo na mão disforme e pergunta, como um último recurso: “De todos
esses últimos dias, não nos dissemos grande coisa, uma vez que tu não cessaste
de comer. Mas antes de nos deixarmos, eu ainda tenho uma questão para te
colocar: por que tu comes tudo isso? Para
onde isso irá?” E o homem responde bruscamente:
Muito bem, para ti posso dizer:
quando era criança, meu pai foi preso pelos cossacos. Eles lhe disseram para
abraçar um crucifixo – e ele, um judeu piedoso, naturalmente se recusou. Então
eles o cobriram de petróleo e atiraram fogo. Eu vi, com meus olhos, meu pai
queimar – mas por muito pouco tempo, compreendes. Meu pai era muito magro, era
apenas pele e osso. Ele morreu muito rápido, compreendes? Eu, da minha parte,
jurei queimar por muito tempo, muito, muito tempo, e de ser uma tocha tão gorda
que os cossacos acharão meu fogo bonito e generoso.
Bal Shem Tov lhe diz: “Agora compreendo, e lhe
agradeço... E nós nos falaremos mais tarde.”
Na sua bela obra sobre o messianismo judeu, Gershom
Scholem assinala um comentário hassídico do Salmo 107, no quinto versículo
(“Eles tinha fome e sede e suas almas sucumbiam”), sem dúvidas compilado por
volta de 1760 pelo pregador Mendel de Bar, amigo e discípulo de Baal Shem Tov –
mas atribuído tradicionalmente ao próprio grande rabino:
Eis um grande mistério: por que Deus
criou o alimento e a bebida de que o homem tem necessidade? A razão é que estas
estão repletas de faíscas do primeiro homem, Adão. Depois de sua queda, Adão
escondeu os alimentos e as bebidas e os fez sucumbir nos quatro domínios da
natureza: os minerais, os vegetais, os animais e os homens. Eles aspiram agora
retornar e se juntar ao domínio da santidade. Assim, o que o homem come e bebe
são suas próprias faíscas, que ele tem a obrigação de restaurar. É a isso que o
salmista faz alusão quando escreve: Eles tinha fome e sede e suas almas
sucumbiam – elas sucumbiam naquilo de que eles tinham fome e sede, o que
significa que suas almas estavam em exílio nas formas e vestimentas
estrangeiras. Saibais então que todas as coisas de que o homem tem necessidade
para comer constituem, de modo escondido, suas próprias crianças lançadas ao
exílio e ao cativeiro.
A terceira história é a de um homem que sabe que sua
hora chegou. O que ele faz? Organiza uma grande refeição, que ele abre
exatamente com estas palavras: “Desejei ardentemente comer convosco antes de
sofrer...” Ele toma o pão, parte-o e distribui dizendo: “Tomai, comei, isto é
meu corpo, dado por vós; fazei isso em minha memória”.
Ele toma o vinho, distribui-o e diz: “Isto é meu sangue, o sangue da aliança
que será derramado para uma multidão”....
O que significa o ato de comer nas frases célebres da
instituição eucarística? Ao lado dos problemas abissais da transubstanciação,
as palavras são, por fim, muito claras: ao dar de comer, o Cristo significa
então que ele dá matéria para antecipar o
pior – “meu sangue que vai ser derramado”. É mesmo um pior que vem do
coração da refeição em questão, uma vez que o homem pelo qual o pior chega – a
saber, Judas – está bem ali, comendo junto aos outros. “Um de vós me entregará,
um que come comigo”, diz a versão de Marcos. E a de Matheus: “Aquele que
colocar a mão junto comigo no prato é que irá me entregar”.
Mas o pior, o sangue que vai ser de uma vez por todas derramado, dá lugar, na
eucaristia, à instituição de um rito sacramental destinado a repetir
indefinidamente sua memória. Ao dar de comer, o Cristo dá portanto matéria a se lembrar – “Fazei isso em
minha memória”. Maneira de anunciar que o que comemos, sua “carne”, constitui
já uma repetição (palavra a ser tomada em todos os sentidos, antecipadora e
teatral, ou anamnésica e ritual), uma mnemotécnica de sua morte por vir. Enfim,
o Cristo inverte in extremis o
sentido lúgubre de toda essa cerimônia prometendo a todos seus convivas que irá
reencontrá-los um dia para um Banquete eterno, no qual eles não cessarão mais
de comer e de beber junto à mesa do Pai.
Compreendemos então que a refeição eucarística era concebida com vistas a dar matéria para esperar o melhor (isto é, o
impossível). O ato de comer, vemos, terá servido a todas as questões ao mesmo
tempo.
Mais estranho ainda é o deslocamento que percorre
esse texto, ou ainda, esse conjunto de textos. De início, o Cristo deseja comer, “comer antes de sofrer”,
como ele mesmo diz. Em seguida, ele dá a
comer: ele dá e partilha o pão, à imagem de sua palavra e de tal
ensinamento que ele acaba aqui de prodigar a seus discípulos. E para terminar o
ensinamento, ele se dá a comer, enquanto
corpo, sob as espécies palpáveis e misteriosas do pão e do vinho.
Antes do episódio da instituição eucarística, aliás,
Jesus Cristo apresentava já essa particularidade, julgada absurda mesmo por
alguns de seus discípulos: ele se dava por pão. Porque ele desejava
ardentemente se deixar gostar ou comer como um bom pão. Seu discurso na sinagoga
de Cafarnaum – que acontece, não por acaso, justamente depois do milagre da
multiplicação dos pães – traz os estigmas de uma espécie de certeza delirante:
“Eu sou o pão... o pão da vida... Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comerá
deste pão viverá eternamente. E o pão que darei é minha carne para a vida do
mundo... Em verdade, em verdade, vos digo, se vós não comeis a carne do Filho
do homem e não bebeis seu sangue, vós não tereis a vida em vós. Quem come minha
carne e bebe meu sangue tem a vida eterna... Quem come minha carne e bebe meu
sangue permanece em mim e eu nele”
Frases abissais – sexualmente abissais. Frases de amor místico, isto é,
portadoras de uma total voracidade: ame-me, venha a mim, permaneça em mi – coma-me. E tu gozarás eternamente.
No episódio evangélico desse extraordinário discurso
sobre o pão, são João não deixa de contar a reação escandalizada dos ouvintes:
“É dura esta palavra! Quem a pode escutar?” Quem pode, com efeito, sustentar o
estouro desse cristal de gozo? Jesus especificará, no fim do percurso, que ele
fala “em espírito” e não em corpo – “Isso vos escandaliza? ... As palavras que
vos digo são espírito!” –, e que o mal já está feito, isto é, que a carne já
fez seu ofício de terror no superego dos espectadores. E são João constata
abruptamente o efeito de repulsão sem volta que esse chamado voraz do Cristo
acaba de suscitar: “A partir de então, muitos de seus discípulos se retiraram e
não foram mais com ele”.
O fantasma do deus que se dá a comer para a vida de seus sujeitados – segundo
uma linha contínua que vai do sacrifício ao sacramento
– constitui, entretanto, a rocha de toda a crença e de toda liturgia cristã.
São Tomás de Aquino não a entendia de outro modo, ele que intitulou com a
palavra sumptio (manducação) os doze
artigos de sua vigésima quarta questão, na terceira parte da Suma Teológica.
Sumptio, o ato de comer, aí é descrito nos mesmos termos em
que um pai se veria constrangido a explicar a seu filho por que é preciso comer (e não nos esqueçamos de que a Suma se endereça, de início, aos
noviços, às crianças): tu comes, meu filho, para crescer. Teu corpo ainda é
pequeno e sem forças. Tu comes para cumprir a vida em ti. São Tomás falará
então do alimento eucarístico em termos de alimentum:
da mesma forma que o batismo faz “nascer” espiritualmente o corpo cristão,
assim também o exercício eucarístico (usus
seu sumptio) permitirá que ele se nutra e cresça.
Crescer até onde? – poderia perguntar a criança. De fato, tal é a questão.
Perceberemos rapidamente que o ato de comer deus sob as espécies consagradas do
pão e do vinho – sua “presença real” apreensível pela boca – visa algo como um
inchaço infinito do corpo que o absorve.
E não é somente um inchaço do tempo, produtor de
graça e de perpétuo renascimento: “Quem come minha carne e bebe meu sangue tem
a vida eterna”.
De modo mais direto, é também uma espécie de inchaço local que prolongará o
corpo cristão, passo a passo, para ampliá-lo até a enormidade e a multidão.
Isso porque, na liturgia eucarística, “muitos estão no Cristo” (multi sunt unum in Christo) e cada um
torna-se muitos.
Como se a absorção, que todos os corpos separados fazem do único corpo do
cristo – ele mesmo indefinidamente disseminado em todas as migalhas de hóstias
e em todas as gotas do vinho consagrado –, tivesse como efeito juntar e unir
todos os corpos uns aos outros até o desmedido de um corpo-mundo. A eucaristia,
dita sacramentum conjunctionis, foi
pensada, a partir de são Paulo e dos Pais da Igreja, como um “mistério da
unidade” dos corpos (mysterium unitatis)
– o mistério pelo qual um corpo, um só e gigantesco corpo chamado “místico”,
supõe-se produzir, formar-se, a partir de todos aqueles que absorvem o mesmo
deus; dá-se então a unitas corporis da
Igreja como um todo que se coagula no evento da missa, antes de se realizar
para sempre no grande festim eternamente nupcial do fim dos tempos.
Mas o que exatamente come-se nessas migalhas, nessas
gotas em que se supõe sustentar e reproduzir o corpo de um deus e de todos os
outros corpos que, na espécie, o incorporam? O que vós comeis – explica em
sustância são Tomás – é algo que constantemente transita entre massa e
representação. E explica: de início, vós comeis espécies (ex speciebus in quibus traditur hoc sacramentum): é uma massa, uma
massa de vinho feita de todos os grãos de uva, uma massa de pão feita de todos
os grãos de trigo. Em seguida, vós comeis uma modalidade (ex modo quo traditur hoc sacramentum): uma massa de matéria que vos
converte espiritualmente, uma vez que ela vale uma graça espiritual. Em
terceiro lugar, vós comeis um conteúdo (ex
eo quod in hoc sacramentum continetu...): e é o próprio Cristo (... quod est passio Christi) – sua prova
sacrificial, seu rito mortal e mortífero de passagem à vossa memória.
Para fazer inflar a vida em ti, minha criança, é preciso que tu comas a morte e
que tu incorpores o sofrimento de teu deus.
Há aí uma lei muito estranha. Seu paradoxo não surge
somente pelo fato de, nela, a morte nutrir a vida. Surge também de uma
topologia fantasmática segundo a qual aquele
que come está incorporado naquilo que come – a saber, no corpo do deus. O
Cristo, lembremo-nos, tinha pronunciado esta frase chocante: “Quem come minha
carne e bebe meu sangue permanece em mim e eu nele”.
O liturgista da Idade Média oferecia nestes termos: “Aquele que come e está
incorporado tem o sacramento e o real (res,
a coisa) do sacramento. Aquele que come mas não é incorporado tem o
sacramento, mas não tem o real do sacramento”.
Aí está um sentido extremo para a palavra communio:
ao receber a eucaristia, cada pessoa magicamente se sente “passar para o corpo
do Cristo”.
O que permite, no fim das contas – segundo o princípio selvagem de uma verdadeira
autofagia mística –, pensar o corpo que
come como tornado aquilo mesmo que ele come, a saber, uma substância de
graça divina.
Comei-vos uns aos outros, vós que sois os membros deste grande corpo do deus
que vós deveis incorporar em sacramento. Tal seria o enunciado imperativo dessa
forma de amor e dessa aliança voraz com Deus – um amor, uma aliança, de carne
comida e de sangue bebido.
Mas diante do imperativo universal desse fantasma de
corpo, é fato que cada um reage à sua maneira. Há os sábios de Deus e os loucos
de Deus, cada uma modulando a lei geral da voracidade com mais ou menos
voracidade singular. Há os excessivos, aqueles que vão direto ao essencial.
Estes farão qualquer esforço para comer o Cristo justo quando ele entrega sua
alma: eles comerão o pão da vida mergulhando-o num vinho de morte. Então, eles
comerão o coração. Eles desejam incorporar a Paixão do Cristo (quod per hoc sacramentum repraesentatur)
por seu coração ou decor,
e a estranha topologia da inclusão recíproca os levará finalmente a entrar no
coração, a habitá-lo e a ser comidos por
ele:
Há a mesma diferença entre quem se
dedica a meditar as dores íntimas do Cristo e quem se volta àquelas de sua
humanidade – que há também entre o mel ou o bálsamo que está no vaso e aquelas
gotículas que umedecem o vaso por fora. Portanto, quem deseja degustar a Paixão
do Cristo não deve se contentar em deixar sua língua na borda exterior do vaso,
isto é, nas feridas e no sangue que aderem ao vaso sagrado da humanidade do
Cristo... Deve entrar no vaso, quero dizer o coração abençoado do Cristo, e ali
ele será saciado, inclusive, para além de seus desejos.
Essas poucas frases, atribuídas à Bem Aventurada
Camilla Battista da Varano (1458-1524), essas poucas frases intensas que declinam
o ato de comer como o de entrar naquilo que comemos para fazer-se digerir,
certamente são herdeiras de toda uma tradição que conheceu seu apogeu no fim da
Idade Média.
Os exemplos ali são inumeráveis e tão estupefacientes. Consideremos as “fomes
eucarísticas” (esuries) de santa
Catarina de Siena, que vomitava, com a ajuda de uma vara preparada para tal,
para melhor gozar do único festim de carne e de sangue divinos ao qual ela se
entregava com uma paixão unilateral; a tal ponto ela se entregava, que um dia
mordeu o cálice que lhe era oferecido com tanta força que a marca de seus
dentes se gravou no metal e o padre teve que se esforçar muito para retira-lhe
da boca. Consideremos também Doroteia de Montau (1347-1394), cujo processo de
canonização assinala que a absorção das espécies eucarísticas “a agitava como
água fervente”; que “se lhe tivesse sido permitido, ela com prazer teria
arrancado a hóstia das mãos do padre para levar à sua boca”; que depois de
receber o sacramento ela tinha a nítida sensação de carregar em si um feto – o
feto desse esposo divino, desse sponsus que
a invadia com sua presença destilando por todo seu corpo algo como uma consolatio, ou uma suavitas, ou uma delectatio...
algo que ela acaba por nomear com as palavras copula intima peracta, isto é, um orgasmo.
Como a Virgem da Anunciação, sem dúvidas, Doroteia de Montau prova a presença
do Cristo segundo o batimento rítmico de uma prodigiosa operação que a
preenchia ao mesmo tempo em que ela se sentia afogar.
Contarei, para terminar, uma história mais breve e
aparentemente menos grave. É a história de um homem muito doce e que gostava
apenas de mel. Ele passava toda sua vida a pregar doçuras e a comer mel. Ao fim
de alguns anos, seus excrementos tinham se tornado mel. Mais tarde, depois de
sua morte e de seu voto de eterna doçura, ele foi colocado dentro de um caixão
de pedra e mergulhado completamente no mel. Cem anos se passaram durante os
quais seu corpo acabou por se fundir no mel. Então o caixão foi reaberto e tal
substância foi distribuída aos doentes, pois ela curava todo tipo de afecção.
A história está numa obra chinesa intitulada Tcho-keng lou e é datada de 1366. O
autor especifica que ela não é autóctone: “Em chinês vulgar, dizemos homem de mel; a palavra estrangeira é mou-nai-yi.” Ora, esse último termo
designa a múmia. O “mel” da história é sem nenhuma dúvida uma tradução ruim (ou
muito boa) do árabe e do persa mûmîa,
mûmiâî, palavras que designam o betume ou o piche utilizado no Oriente
Médio para ungir os cadáveres que serão mumificados.
O mel mágico de nossa história poderia então ter sua
origem no comércio muito particular que ligava naqueles tempos o Oriente Médio
a toda Europa, mas que se espalhou também até o Japão e a China: era uma
farmacopeia obtida a partir das múmias egípcias, um “pó de múmia” ao qual Ambroise Paré consagrou – obviamente para dele
zombar – uma verdadeira pequena monografia. Nesta, explica como os antigos utilizavam
o betume ou o piche “para a geleia de seus
corpos”, antes de fazer desses corpos mortos meles ou geleias de bem-estar
para os corpos vivos.
Por que comemos tão vorazmente? Por todas as boas e
más razões. Por razões de vida, por razões de morte. Por razões disparatadas,
isto é, contraditórias, e que, entretanto, não importa como, não se dispõem.
Comer nos ajuda a melhor matar (era o sentido da primeira história). Comer nos
ajuda a melhor morrer (era o sentido da minha segunda história). Comer nos
ajuda a melhor ressuscitar (é o sentido do sacramento eucarístico). A última
história nos ensina que comer pode também servir a melhor apodrecer, para
melhor fornecer aos outros os meios de não morrer. Como se o ato de comer se
sustentasse de algo como uma heurística da morte.
École des
Hautes Etudes, Paris.
Georges Didi-Huberman. Disparates sur la voracité. In.: MLN, vol. 106, nº 4, French Issue: Cultural Representations of Food. (Sep., 1991), Baltimore, John Hopkins University Press. pp. 765-779. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Joachim Beuckelaer. Porco morto. 1563. Wallraf-Richartz Museum, Colônia.