Furio Jesi
Pergunta: Seu primeiro ensaio, já com mais de vinte anos, é dedicado a um papiro helenístico ("Notes sur l’édit dionysiaque de Ptolémée IV Philopator", in Journal of Near Eastern Studies, Chicago, 1956) e seu primeiro livro se chama A cerâmica egípcia (Saie, Turim, 1958). O estudo da arqueologia e das civilizações antigas constituiu, portanto, o momento inicial de seu itinerário teórico. Como se pode chegar à ciência do mito passando pelo estudo do mundo antigo?
Resposta: Naquele tempo certamente não havia organizado um programa calculado que me levaria da papirologia e da arqueologia à ciência do mito. Assim aconteceu, e posso apenas falar retrospectivamente, de modo que noto que muitos daqueles primeiros estudos contribuíram para colocar em meu campo de visão ou em minhas mãos – a fazer com eu lesse, tocasse, mensurasse – materiais a partir do quais hoje se desejaria remontar a seus produtores e à cultura destes.
A ciência do mito, como a compreendo, encontra-se numa situação análoga: dispomos de “materiais mitológicos" determináveis, fotografáveis, suscetíveis de análises filológicas; sobre o mito não só não sabemos nada, mas declaramos, por coerência lógica, não poder saber nada. O arqueólogo circunscreve um espaço no qual poderia também ter existido uma cultura, mas não é capaz de colocar os pés nesse espaço; o mitólogo circunscreve um mecanismo que poderia também ser movido pelo mito, mas não lhe é possível afirmar que o mito existe.
Ocupar-me de arqueologia também significou viajar – para a Grécia, Turquia, Egito ou nos depósitos dos museus. Esse viajar, e às vezes o fato de morar por algum tempo em "terras antigas”, significou repetir – mas a invertendo em seu exato oposto – a experiência dos viajantes do século XVIII: viajar para aprender a não conhecer o mundo e para deste colecionar fragmentos que não remetem a nada senão a si mesmos, “materiais mitológicos", algo que Bachofen teria designado como “símbolos repousantes em si mesmos”.
P.: Em que consiste, para o senhor, a diferença entre ciência do mito e ciência da mitologia? E, em particular, como o senhor concebe a ciência do mito?
R.: Se por mito compreendemos o quid à cuja existência a máquina mitológica alude como a seu presumido motor imóvel, e por materiais mitológicos os produtos historicamente verificáveis da máquina, a ciência do mito é uma típica ciência daquilo que historicamente não existe, enquanto a ciência da mitologia é o estudo dos materiais mitológicos enquanto tais. A ciência do mito, em minha perspectiva, tende a realizar-se como ciência das reflexões sobre o mito, portanto, como análises das diversas modalidades de não-conhecimento do mito. A ciência da mitologia, pelo fato de consistir no estudo dos materiais mitológicos "enquanto tais”, tende a realizar-se sobretudo como ciência do funcionamento da máquina mitológica, portanto, como análises da interna e autônoma circulação linguística que torna mitológicos aqueles materiais. Uso a palavra mitologia para indicar essa circulação linguística e os materiais que a documentam.
P.: De Literatura e mito (Einaudi, Turim, 1968) a Materiais mitológicos (Einaudi, Turim, 1979), o senhor lembrou da influência direta de Karl Kerényi sobre sua formação de estudioso de mitologia.
Para o senhor, qual é a parte mais viva da produção de Kerényi e qual o aspecto dela que permanece como mais importante para a atividade teórica que o senhor desenvolve atualmente?
R.: A produção de Kerényi tem uma fundamental compacidade de contradições que lhe garante vitalidade. Ao especificar o que acredito mais ter aprendido com ele, devo fazer referência à resposta precedente. Considerar a mitologia uma interna e autônoma circulação linguística, algo peculiar a determinados materiais, significa, de minha parte, colocar-me fora de correntes importantes e talvez prevalentes da linguística contemporânea, para as quais os denominados materiais mitológicos são apenas textos aos quais se atribui a qualificação "mitológicos" somente porque se está, com um erro de método, hipnotizado por uma de suas inumeráveis possibilidades de leitura, e esta seria privilegiada como se dispusesse de uma intrínseca objetividade. Esse “erro de método" em mim é originado por Kerényi e por sua antropologia da qual, ao menos desse ponto de vista, partilho. Não creio na existência do mito (uso a palavra "creio” no sentido mais forte, porque se trataria justamente de um ato de fé); pelo contrário, estou convencido de que para mim, hoje, o melhor modo de colocar-me diante dos mecanismos e das minhas produções – e também das de outros, antigos ou contemporâneos – consiste em reconhecer em algumas dessas produções uma linguagem não redutível a outras, absolutamente autônoma, "repousante em si mesma” (Bachofen), dotada de outras características definíveis com aproximações extremamente vagas caso se recorra – como é inevitável para defini-las – a outra linguagem.
O resultado disso é que continuo a considerar apropriada a analogia kerényiana entre a mitologia e a música, e que acentuei (ou ao menos tornei mais explícito do que Kerényi acharia oportuno) o critério kerényiano segundo o qual toda produção nesse campo é verdadeiramente científica se a crítica – no sentido kantiano da palavra – que aí atua for sobretudo autocrítica. A partir de Kerényi aprendi a possibilidade de perceber o peso da mitologia, a necessidade interna aos materiais mitológicos, sem por isso ter de acreditar no mito como em um quid que "é dinâmico, tem um poder, apreende a vida e a plasma" (W.F. Otto). Além disso: aprendi o sentido da distância em relação à mitologia ou às mitologias dos antigos ("Há ainda muito que separa os lábios da borda do cálice...”), que, todavia, não reduz a consciência de que aquele objeto distante nos diz respeito íntima e pessoalmente. Não sustento conhecer a mitologia de antigos ou modernos; sustento que a cientificidade de minha aproximação dos materiais mitológicos e das reflexões sobre o mito consista sobretudo no arbítrio existencial subjacente às palavras “para mim, hoje, o melhor modo de me colocar diante...”.
P.: Uma pergunta à queima-roupa: qual a influência da obra de Jung sobre o senhor? E ainda: há partes das obras de Jung a partir das quais o senhor sente ser possível extrair alguma lição metodológica e também algo mais do que uma lição metodológica?
R.: Quando comecei a estudar materiais mitológicos, símbolos, provas metodológicas de ciência do mito, no fim dos anos 1950, os textos de Jung me emocionavam muito, mais do que os de Kerényi. "Inconsciente coletivo”, “arquétipo", “mandala”, pareciam-me palavras de sabedoria. Em 1957, durante o período que passei no monastério da Transfiguração, no Metéora da Tessália, para tentar estudar o neoplatonismo em relação com a religiosidade greco-ortodoxa, havia levado comigo os livros de Frobenius e de Propp, entre os quais procurava eliminar as contradições provenientes de Jung. Meus primeiros escritos nesse âmbito ("As conexões arquetípicas", em Archivio Internazionale di etnografia e preistoria, 1958; "Sobre o fato milagroso”, idem, 1959) são, em muitos aspectos, junguianos, mesmo se já a partir de então eu sentia certo mal-estar em relação ao "arquétipo" como forma vazia de uma figura perfeitamente acabada, e procurava remediar isso com o modelo das “conexões arquetípicas": constantes – diria hoje – linguísticas, normas obrigatórias de composição ao invés de figuras orgânicas numa galeria de retratos.
Então, pouco a pouco, Kerényi se tornou o magister e, desde quando o conheci pessoalmente, e passei a estudá-lo de forma especial, me levou sempre para mais longe de Jung. As próprias "conexões arquetípicas" que, com a vocação moralista dos 16-17 anos, eu julgava como “valores” gnosiológicos, tornaram-se uma espécie de indecência emocional – como caminhar nu pela rua – que não é bom dizer e fazer, mesmo se não se consiga deixar de levá-las em conta quando se escreve o próprio autorretrato.
Na sequência, as coisas ficaram cada vez mais complicadas: eu gosto, não gosto, enfim, não posso dizer se gosto ou não. Hoje, digo que gosto pouco daquilo que em Jung implique “Eu sei...”. Não porque não seja possível dizê-lo sem ser uma pessoa respeitável, mas porque é um pouco como um pastiche.
P.: A partir de 1969 o senhor estava trabalhando em uma já "mitológica" primeira edição italiana do Mutterrecht de Bachofen, que sairá pela Einaudi. Pode nos dizer o que Bachofen representou e representa para o senhor?
R.: Para responder com uma tirada, poderia dizer que Bachofen é há muito tempo meu Salgari.[1] É claro, a maior parte da produção de Bachofen constitui um esplêndido romance mitológico. Nele há escritura e aquele gosto por conhecer por composição que W. Benjamin celebrou com as palavras “uma profecia científica". Não há, em Bachofen, a consciência de vidência que lhe foi atribuída nos primeiros decênios do século XX pela direita da Bachofen-Renaissance, mas, pelo contrário, há uma segurança patrícia (e também humor tétrico) ao compor por vontade própria e com arbítrio solitário os inumeráveis materiais da própria coleção. No Ensaio sobre o simbolismo funerário dos antigos esses materiais são sobretudo analisados como “símbolos repousantes em si mesmos”. No Direito materno, com um procedimento peculiar do romance histórico (que é, por sua natureza, romance mitológico), a práxis compositiva determina dois processos: o mundo-coleção dos símbolos repousantes em si mesmos é acionado graças à presença de testemunhos que são as categorias lógicas do direito, identificadas com as estruturas da cognoscibilidade da história; a cognoscibilidade – por estruturas jurídicas – da história é acionada pelo peso de uma coleção de símbolos que, pelo fato de ser arbitrariamente ordenada pelo juiz de certa forma, adquire assim um peso específico.
Nota (de Andrea Cavalletti, organizador da edição):
Não muito disfarçado no transcorrer da entrevista, o “autorretrato” finalmente aparece de forma decisiva neste texto, um dos últimos que Jesi deixou. Não conhecemos o autor das perguntas, mas podemos estar certos de que Jesi ao menos as reelaborou, se não as escreveu. Com palavras que lembram muito de perto o início do ensaio sobre a História de Susana, ele volta à mitologia como linguagem e coloca “o modelo máquina mitológica” no centro do próprio laboratório. Volta a seu início, quando com apenas quinze anos publicava seu primeiro ensaio na prestigiosa revista do Oriental Institute da Universidade de Chicago, lembra do encontro com Kerényi e do distanciamento da influência junguiana, e se delonga sobretudo sobre o método de conhecimento por composição. Os numes tutelares de sua última pesquisa, sempre suspensa entre conhecimento e romance, eram Benjamin e Bachofen. Com a repentina morte de Jesi, em 17 de junho de 1980, permaneceu incompleta, junto com seu estudo “benjaminiano” Tradução e duplicidade das linguagens, também seu “Salgari”, isto é, a "tradução anotada e comentada” do Mutterrecht. Dela restam alguns capítulos na atual versão einaudiana do Matriarcato (sob os cuidados de G. Schiavoni, 1988), e também um amplo testemunho em seu genial Bachofen, publicado postumamente, em 2005, pela Bollati Boringhieri.
O texto apareceu pela primeira vez, sob minha organização, em Alias, 30, 28/07/2007, p. 21.
[1] N.T.: Referência a Emilio Salgari (1862-1911), um dos mais famosos escritores italianos de romances de aventura e históricos.
Original em: Furio Jesi. "Quando Kerényi mi distrasse da Jung" In.: Furio Jesi. Il tempo della festa. A cura di Andrea Cavalletti. Roma: Nottetempo, 2013. pp. 223-231.
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko