quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Democracia finita e infinita - Jean-Luc Nancy

 


 

Jean-Luc Nancy

 

 

1.

Há um sentido em dizer-se "democrata"? É claro que se pode e que se deve igualmente responder: "não, o menor sentido, já que não é mais possível dizer outra coisa"; ou: "sim, claro, já que por toda parte são ameaçadas a igualdade, a justiça e a liberdade – pelos plutocratas, pelos tecnocratas, pelos mafiocratas".

"Democracia" tornou-se um caso exemplar de insignificância: forçada a representar o todo da política virtuosa e a única maneira de garantir o bem comum, a palavra acabou por absorver e por dissolver todo caráter problemático, toda possibilidade de interrogação ou de pôr-se em questão. Ainda restam certas discussões marginais sobre as diferenças entre diversos sistemas ou sensibilidades democráticas. Em suma, "democracia" quer dizer tudo – política, ética, direito, civilização – e, portanto, não quer dizer nada.

Essa insignificância deve ser levada a sério, e é isto que faz o trabalho contemporâneo do pensamento, como testemunha a presente "investigação": não se contenta mais em deixar flutuar as intermitências do sentido comum. Exige-se fazer comparecer a insignificância democrática diante do tribunal da razão.

Recorro a essa metáfora kantiana pois penso que se trata de uma exigência igual à que se impunha a Kant: submeter ao discernimento crítico o sentido mesmo do "saber". No entanto, como quer que se queria fazer isso, não se pode mais anular agora, mesmo tendencialmente, a demarcação entre o objeto de conhecimento para um sujeito e o saber – digamos "de sujeito sem objeto" para tornar abruptamente mais simples (e mesmo sem a explicar em outra parte). Ou precisamos, num curto espaço de tempo, nos tornar capazes de uma demarcação mais clara e consistente entre dois sentidos, dois valores e duas questões que cobrem indistintamente a insignificância confusa da palavra "democracia".

Por um lado, essa palavra designa – de modo parecido, para inverter a analogia, ao regime kantiano do "entendimento" – as condições das práticas possíveis de governo e de organização, desde que nenhum princípio transcendente não as possa regrar (compreendido que nem o "homem" e nem o "direito" podem ser considerados transcendentes).

Por outro lado, essa mesma palavra designa – de uma maneira parecida à questão do regime da "razão" – a Ideia do homem e/ou a do mundo desde que, subtraída à toda aliança com um além-mundo, eles não postulem a respeito disso nada mais do que sua capacidade de serem por si próprios, sem se furtarem à sua imanência, sujeitos de uma transcendência incondicionada, isto é, capazes de implantar uma autonomia plena. (Como é possível imaginar, emprego o verbo "postular" segundo a analogia kantiana para designar o modo legítimo, em regime de finitude, isto é, de "morte de Deus", de uma abertura ao infinito.)

É certo que essa segunda acepção não pode ser dita "própria", e nenhum dicionário a autoriza. Mas mesmo não sendo um significado do termo, é a significação que a ele se acopla: a democracia promove e promete a liberdade de todo ser humano na igualdade de todos os seres humanos. Nesse sentido, a democracia moderna compromete absoluta e ontologicamente os humanos, e não apenas o "cidadão". Ou ainda, ela tende a confundir os dois. Em todo caso, a democracia moderna corresponde muito mais do que a uma mutação política: a uma mutação de cultura ou de civilização tão profunda que ela tem valor antropológico, juntamente com a mutação técnica e econômica da qual ela é solidária. É por isso que o contrato de Rousseau não institui apenas um corpo político, mas produz o próprio homem, a humanidade dos homanos.

2.

Para que seja possível tal anfibologia de uma palavra, tinha de ser possível uma ambiguidade – uma confusão ou indistinção qualquer – sobre o registro de origem e de uso dessa palavra, a saber, o registro da política.

É como efeito de uma dualidade ou de uma duplicidade constitutivas da "política" que procede a ambivalência mal discernida e mal regrada da "democracia". A política jamais cessou, desde os Gregos até nossos dias, de se manter numa disposição dupla: de uma parte o único regramento da existência comum, de outra, a assunção do sentido ou da verdade dessa existência. Às vezes a política destaca claramente sua esfera de ação e de pretensão, outras vezes, pelo contrário, ela a estende à totalidade da existência (portanto, indiscernivelmente comum e singular). Nada espantoso se as grandes tentativas de realização política do século XX foram feitas sob o signo dessa assunção: que o ser comum venha como auto-ultrapassagem ou auto-sublimação das relações e das forças. Essa ultrapassagem ou essa sublimação que pôde ser nomeada "povo", "comunidade" – ou ainda com outros nomes (dentre os quais a "república") –, representou de fato o desejo da política de ultrapassar a si mesma (necessariamente eliminando-se como esfera separada e, por exemplo, absolvendo e dissolvendo o Estado). É dessa auto-ultrapassagem – ou auto-sublimação – que procedem a ambivalência e a insignificância da "democracia".

3.

Tudo começa, na realidade, com a própria política. Pois é preciso lembrar que ela começou. Com frequência estamos prontos para pensar que há desde sempre e por toda parte política. Mas não houve desde sempre política. Ela é, junto com a filosofia, uma invenção grega e, como a filosofia, é uma invenção resultante do fim das presenças divinas: cultos agrários e teocráticos. Do mesmo modo que o logos se edifica sobre a desqualificação do mythos, assim também a política se ordena sobre a desaparição do deus-rei.

A democracia é, portanto, o outro da teocracia. Isso quer dizer também que ela é o outro do direito dado: ela deve inventar o direito. Ela deve inventar a si própria. De modo contrário às imagens piedosas que amamos (e por causa delas...) fazer da democracia ateniense, sua história imediatamente nos mostra e como ela estava sempre inquieta em relação a si mesma e preocupada com sua reinvenção. Toda a questão de Sócrates a Platão se produz nesse contexto, como a busca pela logocracia que deveria colocar fim às falhas da democracia. Essa busca, no fundo, é perseguida até nossos dias por meio de muitas transformações, e, dentre elas, a mais importante foi a tentativa de estabelecer com o Estado e sua soberania uma fundação decididamente autônoma do direito público.

Transferindo a soberania ao povo, a democracia moderna mostrou o que permanecia ainda (mal) dissimulado pela aparência de "direito divino" da monarquia (ao menos francesa), a saber: que a soberania não é fundada nem no logos, nem no mythos. Desde seu nascimento, a democracia (aquela de Rousseau) sabe-se infundada. É sua sorte e sua fraqueza: nós estamos no coração desse quiasma.

É preciso discernir para onde levam respectivamente a sorte e a fraqueza.

4.

Comecemos, por isso, observando que a democracia não começou nem recomeçou sem ser acompanhada da "religião civil". Ou melhor: enquanto ela acreditou em si, soube também que para ela certamente não era preciso não "secularizar" a teocracia, mas inventar o que poderia ser, em relação ao direito dado, um equivalente sem ser um sucedâneo ou um substituto: uma figura da doação que seria tutelar para a invenção sempre por fazer. Uma religião, portanto, que, sem fundar o direito, daria sua benção à sua criação política.

É assim que Atenas e Roma viveram religiões políticas e delas fizeram uso – e, talvez, religiões jamais, ou raramente, tiveram toda a consistência tutelar esperada. Não é por acaso que Sócrates é condenado por impiedade em relação à religião civil, também não é por acaso que o cristianismo se separa da religião civil de Roma (esta, já enfraquecida, tendo cedido em relação a sua verdadeira fé, que era a República). A filosofia e o cristianismo acompanham a longa derrota da religião civil na Antiguidade. Quando o cristianismo desocupar esse lugar – por certo, não o de uma nova teocracia nem o de uma religião civil, mas o de uma partição ambígua (associação, competição, dissociação) entre o trono e o altar –, a religião civil poderá tentar renascer em seu ensino (na América) ou em seu exemplo (na França), mas será votada a permanecer mais civil do que religiosa e, em todo caso – colocando em discussão as palavras –, mais política do que espiritual.

Dá-se uma atenção muito pequena à relação de Platão com a democracia. A reverência que se dá àquele que não só é o primeiro dos filósofos no sentido cronológico mas que tem um papel estritamente fundador, leva a que admitamos como um simples desvio, como uma tendência aristocrática de nosso habitus democrático, essa hostilidade de Platão em relação ao regime ateniense tal como ele o conhecia. Mas a questão é muito mais importante: o que Platão reprova na democracia é o fato de ela não ser fundada na verdade, de não poder produzir os títulos de sua legitimidade primeira. A suspeita em relação aos deuses da cidade – e a suspeita em relação aos deuses e mitos em geral – abre a possibilidade de uma fundação no logos (num logos cujo theos, no singular, torna-se outro nome).

5.

Desde então, uma alternativa atravessa toda nossa história: ou bem a política é infundada e assim deve permanecer (com o direito), ou bem ela se dá um fundamento, uma "razão suficiente" leibniziana. No primeiro caso, ela se contenta com móveis faltas de razão(ões): a segurança, a proteção contra a natureza e contra a insociabilidade, a junção de interesses. No segundo caso, a razão ou Razão invocada – direito divino ou razão de Estado, mito nacional ou internacional – transforma inevitavelmente a assunção comum que ela anuncia em dominação e em opressão.

A sorte da ideia de "revolução" foi jogada na articulação entre os dois lados da alternativa. A democracia de fato exige uma revolução: fazer girar a própria base da política. Ela deve expô-la à ausência de fundamento. Mas ela não permite, no entanto, que a revolução retorne ao suposto ponto de um fundamento. Revolução suspensa, portanto.

Nos últimos tempos vimos se desenvolver, em muitos estilos, pensamentos da revolução suspensa, pensamentos do momento insurrecional opostos à instalação – ao Estado – revolucionária, pensamentos da política como ato sempre renovado de uma revolta, crítica e subversão despojadas de pretensão fundadora, pensamentos do assédio continuo mais do que da destruição do Estado (isto é, literalmente, daquilo que está estabelecido, assegurado, e, assim, que se supõe fundado na verdade). Esses pensamentos são justos: assumem tudo, o fato de que "política" não legitima a assunção da humanidade, nem do mundo (uma vez que, a partir de então, homem, natureza, universo são indissociáveis). É um passo necessário para a dissipação daquilo que foi uma grande ilusão da modernidade, aquela que há muito se exprimiu por meio do desejo de desaparecimento do Estado, isto é, de substituição do fundamento reconhecido não consistente por um fundamento na verdade – a própria verdade residindo na projeção democrática do homem (e do mundo) igual, justo, fraterno e subtraído ao poder.

Torna-se necessário dar um passo a mais: pensar como a política infundada e, de alguma maneira, em estado de revolução permanente (se é possível desviar assim esse sintagma...) tem por tarefa permitir a abertura de esferas que lhe são por direito estrangeiras e que, por sua parte, são as esferas da verdade ou do sentido: aquelas que designam mais ou menos os nomes "arte", "pensamento", "amor", "desejo" ou todas as outras designações possíveis da relação ao infinito – ou, melhor dizendo, da relação infinita.

Pensar a heterogeneidade dessas esferas em relação à esfera propriamente política é uma necessidade política. Ou a "democracia" – isso que nós cada vez mais temos o hábito de nomear assim – tende ao contrário, segundo esse hábito, a apresentar uma homogeneidade dessas esferas ou dessas ordens. Mesmo se ela permanece vaga e confusa, essa homogeneidade presumida nos desvia do caminho.

6.

Antes de prosseguir, paremos um instante sobre considerações linguísticas. Que se trate de processos etimológicos dotados de sentido ou ainda de acasos históricos (no mais, as duas ordens mal se separam na formação e evolução das línguas), o presente estado de nosso léxico político oferece uma forte inspiração: "democracia" é formada por um sufixo que remete à força, à imposição violenta, diferentemente do sufixo –arquia que remete ao poder fundado, legitimado num princípio. A coisa é clara quando se considera a série: plutocracia, aristocracia, teocracia, tecnocracia, autocracia, ou burocracia (ou ainda oclocracia, "poder da massa") – tal como ela se distingue desta outra: monarquia, anarquia, hierarquia, oligarquia. Sem procurar entrar numa análise precisa das histórias desses termos (o que implicaria a de alguns outros como nomarquia, tetrarquia, ou ainda, fisiocracia ou mediocracia, com consideração de diferenças de épocas, de níveis, de registros de língua), é preciso discernir como a designação de um princípio fundador se distingue da imputação de uma força dominadora (o que implica, naturalmente, que "teocracia" seja um termo pensado de um ponto de vista oposto à ideia de uma legítima soberania divina e que mesmo "aristocracia" possa implicar uma contradição entre a ideia de "melhores" e à de sua dominação mais ou menos arbitrária).

Ainda que sejam, mais uma vez, fenômenos estritamente linguísticos, é certo que a palavra "democracia" parece manter a coisa longe da possibilidade de um princípio fundador. De fato, é preciso dizer que a democracia implica por essência algo de uma anarquia, que poderia ser dita quase de princípio, se por isso não poderia autorizar-se justamente essa contraditio in adjecto.

Não há "demarquia": o "povo" não faz princípio. Ele faz, no máximo, oximoro ou paradoxo de princípio sem principado. É também porque o direito ao qual remete a instituição democrática só pode de fato viver numa relação sempre ativa e renovada em face de sua própria falta de fundamento. Que a primeira modernidade tenha forjado a expressão "direito do homem" e que a implicação filosófica dessa expressão continue a ser ativa, ainda que de modo implícito e confuso, na expressão "direitos do homem" (ou do animal, da criança, do feto, do meio ambiente, da própria natureza etc.)

É mais que tempo de reafirmar e trabalhar essa afirmação cujo conteúdo e alcance são, no entanto, teoricamente bem estabelecidos: não apenas não há "natureza humana", mas o "homem", querendo confrontá-la à ideia de uma "natureza" (de uma ordem autônoma e auto-finalizada), não tem outras características senão as de um sujeito em falta de "natureza" ou em excesso sobre toda espécie de "natureza": o sujeito de uma desnaturação em qualquer sentido, pior ou melhor, que se pretenda tomar essa palavra.

A democracia enquanto política, não podendo ser fundada sobre um princípio transcendente, é necessariamente fundada, ou infundada, sobre a ausência de uma natureza humana.

7.

Segue, no plano da política, de suas ações e de suas instituições, duas consequências maiores.

A primeira consequência diz respeito ao poder. A democracia implica o direito ou parece implicar – é precisamente sobre o semblante ou a realidade que é preciso aqui se pronunciar – uma desaparição ao menos tendencial da instância específica e separada do poder. Ora, já vimos que é a anulação dessa separação que se torna o problema. É para "um povo de deuses" que essa anulação poderia ser efetiva. O modelo dos "conselhos" (ou sovietes), cuja forma ideal é, em suma, o povo em assembleia permanente e a designação de delegados para tarefas determinadas, de acordo com a revogabilidade permanente desses mesmos delegados. Que seja possível e desejável, em vários tipos de níveis ou de escalas sociais, praticar fórmulas de co-gestão ou de participação que tendem mais ou menos para esse modelo não impede que na escala de uma sociedade inteira ele não seja praticável. Mas não é apenas um problema de escala: é um problema de essência. A sociedade, por si, existe na exterioridade das relações. Nesse sentido, uma "sociedade" só começa onde cessa a integração em interioridade de um grupo que solidifica seu sistema de parentesco e sua relação aos mitos, figuras ou totens do próprio grupo. Pode-se mesmo dizer que a distinção, isto é, a oposição entre "sociedade" e "comunidade", tal qual formulada desde o fim do século XIX e tal como está implícita em todas as considerações da idade clássica sobre a "insociável sociabilidade" dos homens (Kant), não é por acaso contemporânea da democracia – assim como a dissolução das comunidades de vida rural não era estranha ao nascimento das cidades. A cidade – a polis – já representava uma forma de ligação à exterioridade, em relação à qual a democracia devia resolver o problema.

É claro que não se trata de tomar esses termos – "interioridade, exterioridade" – ao pé da letra, nem sob o registro do grupo ou do indivíduo. Mas é preciso ter em conta que o fato de as representações que eles induzem sejam ou não recebidas e implementadas. A sociedade moderna (temos apenas esse termo genérico) se representa segundo a exterioridade de seus membros (supostos indivíduos) e de suas relações (supostas de interesses e de forças). Uma antropologia inteira – para não dizer uma metafísica – está subentendida desde que se fala de "sociedade" e de socialidade, de sociabilidade, de associação. Associa-se a partir de uma exterioridade e a dissociação é sempre o corolário possível de uma associação.

É também porque o poder, em sociedade, parece apenas manter os traços da "violência legítima" e mais nada de uma função simbólica que seria ligada à verdade "interna" do grupo.

A democracia tem dificuldade em assumir um poder que trai a ausência desse simbolismo no sentido mais forte da palavra (digamos, no sentido em que uma vez a religião, civil ou não, outra vez a aliança feudal, outra a unidade nacional, puderam parecer ao garantir a força). Nesse sentido, o verdadeiro nome que a democracia deseja, e aquele que ela tem, de fato, engendrado e levado durante cento e cinquenta anos como seu horizonte, é o comunismo. Esse nome tem sido o do desejo de criação de uma verdade simbólica da comunidade diante da qual a sociedade sabia-se totalmente em falta. Esse nome talvez esteja caduco, mas não é isso que discutirei aqui. Ele tem sido o nome portador de uma ideia – só uma ideia, de modo algum um conceito no sentido estrito, um pensamento, uma direção de pensamento segundo a qual a democracia, de fato, se interrogava sobre sua própria essência e sobre sua própria destinação.

Hoje já não é suficiente – longe disso! – denunciar tal ou qual "traição" do ideal comunista. Antes, é preciso levar em conta isto: a ideia comunista não tinha que ser um ideal – utópico ou racional – pois ela não operava sobre a dialética da exterioridade social e de uma interioridade (ou simbolicidade, ou consistência ontológica: é tudo um) comum ou comunitária. Ela tinha como tarefa abrir a questão sobre aquilo que a sociedade, como tal, deixa em suspenso: justamente, o simbólico, ou o ontológico, ou ainda, de forma banal, o sentido ou a verdade do ser-junto.

O comunismo não era político e não tinha que ser. Essa denúncia de que ele engajava a separação da política não era política. O comunismo não soube disso, nós, agora, devemos saber.

Mas é importante, nessas condições, não se seduzir pelo poder. Este não é apenas o expediente exterior destinado a sustentar bem ou mal a insocial sociedade e sobre o qual se aprende, por predileção, os próprios apetites mais extrísecos, ou os mais estrangeiros, ou mesmo os mais hostis ao corpo da sociedade. Pois se trata desse "corpo" e também se trata de saber se ele é um em interioridade orgânica ou se ele é um agregado suscetível aos meios de organização.

Que o poder organize, gira e governe não torna condenável a separação de sua esfera própria. É porque encontramos hoje – pouco importa quão "comunistas" podemos nos imaginar – o sentido de uma necessidade do Estado (com a qual, e não contra a qual, se colocam outras questões para além do Estado: as questões do direito internacional e dos limites da soberania clássica).

Mas é preciso não se contentar em decidir-se em relação ao que seria inevitável. No poder, há mais do que uma necessidade de governo. Há um desejo próprio, uma pulsão de dominação e uma pulsão correlativa de subordinação. Não se pode reduzir todos os fenômenos de poder – tanto político como simbólico, cultural, intelectual, de palavra ou de imagem etc. – a uma mecânica de forças rebelde à moral ou a um ideal de uma comunidade de justiça e de fraternidade (pois é sempre, no fim das contas, uma condenação desse gênero que está em nossas análises do ou dos poder[es]). Essa redução ignora aquilo que a pulsão em questão pode ter de distinta do simples desejo de destruir ou de morte. No impulso para o senhorio, para a influência ou dominação, ao comando e ao governo, não é interdito (mesmo que justamente o seja para a psicanálise) considerar ao mesmo tempo o furor da sujeição, do aviltamento ou da destruição e o ardor da conquista, da potência de manter, conter e trabalhar com vistas a uma forma e àquilo que uma forma pode expor. A conjunção, ou a mistura desses dois aspectos não é evitável e não é possível se contentar em desejar uma polícia de pulsões que classifique entre as más e as boas domesticações. Barbárie e civilização se tocam aqui de maneira perigosa, mas esse perigo é o índice da indeterminação e da abertura do movimento que leva a comandar e a possuir.

Esse movimento é tanto de vida como de morte, de sujeito em expansão como de objeto de sujeição, é tanto o fato de um crescimento do ser em seu desejo quanto o de seu afundamento na satisfação plena. Esse é o desafio profundo do conatus de Spinoza ou da vontade de potência de Nietzsche, para tomar as figuras mais visíveis daquilo que em toda parte, no pensamento, indica esse impulso – o qual, se não é pré-formado nem predestinado a tal ou qual fim, só pode ser ambivalente.

É certo que o poder político é destinado a garantir a socialidade, até na possibilidade de lhe contestar e refundar suas relações estabelecidas. Mas é por isso destinado àquilo que a socialidade pôde ter acesso a fins indeterminados, sobre os quais o poder como tal é sem poder: os fins sem fim do sentido, dos sentidos, das formas, das intensidades de desejo. O impulso do poder ultrapassa o poder ainda que, ao mesmo tempo, persiga o poder por ele mesmo. Em princípio, a democracia coloca uma superação do poder – mas como sua verdade e sua grandeza (ou seja, majestade!) e não como sua anulação.

8.

Isso é do poder, sempre se soube, de fato, já que sempre se pensou – salvo na simples tirania, que é sem pensamento – que os governantes governam para o bem dos governados (e sobre isso é possível dizer que em toda parte – salvo, novamente, na tirania – o poder é ordenado ao povo, seja ou não o regime expressamente democrático). Mas o que circunscreve assim a potência do poder não determina, no entanto, a natureza nem as formas e os conteúdos do bem dos governados.

Esse bem é essencialmente não determinado (o que não quer dizer indeterminado) e só pode se determinar no movimento que o inventa ou que o cria abrindo-o mais uma vez a uma interrogação – inquietude ou ímpeto – sobre o que ele poderia ser ou tornar-se. Quais são as formas, quais são os sentidos, quais são as questões de uma existência sobre a qual tudo o que de início podemos saber (e esse início nós o retomamos sempre de novo) se dá em duas proposições:

- ela, essa existência, não responde a nenhum desenho, destino ou projeto que a precederia;

- ela não é mais individual do que coletiva: o existir – ou a verdade do "ser" – só existe segundo a pluralidade dos singulares na qual se dissolve toda postulação de uma unidade do "ser".

O bem sem projeto nem unidade consiste na invenção sempre retomada das formas segundo as quais o sentido pode ter lugar. Sentido quer dizer: envio de uns aos outros, circulação, troca ou partilha de possibilidades de experiência, isto é, de relações com o fora, com a possibilidade de uma abertura ao infinito. O comum é aqui o todo da questão. Sentido, sentidos, sensação, sentimento, sensibilidade e sensualidade, tudo isso só se dá em comum. De forma mais exata, é a própria condição do comum: o sentir de uns em relação aos outros, e por isso a exterioridade não convertida ou preenchida em interioridade, mas esticada, colocada em tensão entre nós.

Enquanto compromete uma metafísica (ou, como vamos dizer: uma relação com os fins), e que não poderia ser garantida por uma religião, civil ou não, a democracia exige que sua política faça emergir clara e amplamente o fato de que suas questões do sentido e dos sentidos ultrapassam a esfera de seu governo. Não é um caso de público ou de privado, nem de coletivo ou de individual. É o caso do comum ou do em-comum que não é nem um nem outro e no qual toda a consistência se encontra na marginalização de um e de outro. O comum é, de fato, o regime do mundo: da circulação dos sentidos.

A esfera do comum não é uma: ela é feita de múltiplas aproximações da ordem do sentido – a qual, por sua vez, é múltipla, como na diversidade das artes, dos pensamentos, dos desejos, dos afetos etc.. Aqui, o que "democracia" quer dizer é a admissão – sem assunção – de todas as diversidades numa "comunidade" que não as unifica, mas que implanta, ao contrário, sua multiplicidade e, com ela, o infinito em que elas constituem as formas inomináveis e inacabáveis.

9.

A armadilha que a política colocou para si mesma com o nascimento da democracia moderna – isto é, repetimos, da democracia sem princípio efetivo de religião civil – é a armadilha que faz confundir o comando da estabilidade social (o Estado segundo a origem da palavra: il stato, o estado estável) com a ideia de uma forma que englobe todas as formas expressivas do ser-em-comum (isto quer dizer, do ser ou da existência simplesmente, absolutamente).

Não é que seja ilegítimo ou em vão aspirar a uma forma de todas as formas. De certo modo, cada um não exige menos do que isso, seja por meio de uma das artes ou por meio do amor, do pensamento ou do saber. Mas cada um sabe – e sabe por um saber inato, originário – que sua aspiração para desenvolver e carregar todas as formas só declara sua verdade quando ela se abre a seus desenvolvimentos múltiplos e deixa abundar uma diversidade inesgotável. Nossa pulsão por unidade ou síntese entende-se, desde que se deu, como pulsão de expansão e de implantação, não de fechamento num ponto final. Certa compreensão da política se sobrecarregou com o peso do ponto final e do sentido único.

Tomem as coisas sob o ângulo da forma ou do desejo, da ressonância ou da linguagem, do cálculo ou do gesto, da cozinha ou do drapeado: não é um regime de forma que acaba por florescer se abrindo sobre todos os outros por contato ou por remissão, por contraste ou analogia, em via direta, oblíqua ou rompida – mas ninguém, no entanto, pensa em absorver ou reunir os outros sem se conhecer então como voltado para sua própria negação. Se "o cobre desperta clarim" (Rimbaud) é porque ele não retorna a ser violão.

Também não é forma das formas, nem cumprimento de uma totalidade. O todo, ao contrário, exige um mais que tudo (seja um vazio ou um silêncio) sem o qual o todo implode. No entanto, a "política" deu a entender que nela podia haver algo disso e que, portanto, por essa mesma razão, "política" devia encarar sua própria distinção afirmando que "tudo é político", ou ainda, que na política se dá a antecedência necessária de toda outra praxis.

A política deve dar a forma do acesso à abertura das outras formas: é a antecedência de uma condição de acesso, não de uma fundação ou de uma determinação de sentido. Isso não subordina a política; isso lhe confere uma particularidade que é de alta valia. Ela deve renovar sem cessar a possibilidade da eclosão das formas ou dos registros de sentido. Em contrapartida, ela não deve se constituir em forma, não ao menos no mesmo sentido: as outras formas, de fato, ou os outros registros envolvem fins que são fins em si (artes, linguagem, amor, pensamento, saber...). Por outro lado, ela dá seu campo para que a força se coloque em forma.

A política jamais chega a fins. Ela conduz a níveis de equilíbrios transitórios. A arte, o amor ou o pensamento estão a cada instante, seria possível dizer, a cada ocorrência, no direito de se declarar cumpridos. Mas, ao mesmo tempo, esses cumprimentos só valem em sua esfera própria e não podem pretender fazer direito nem política. Assim, seria possível dizer que esses registros estão na ordem de um "findar do infinito", enquanto a política depende da indefinição.

10.

Termino, sem concluir, com algumas notas descontínuas.

 

A delimitação das esferas não políticas (aqui nomeadas "arte", "amor", "pensamento" etc.) não é nem dada, nem imutável; a invenção dessas esferas, sua formação, seu colocar em figuras e em ritmos – por exemplo, a invenção moderna da "arte" – dependem desse regime de invenção dos fins e de sua transformação, reinvenção etc..

 

A delimitação entre a esfera política e o conjunto das outras não é também dada nem imutável; exemplo: onde deve começar e terminar uma "política cultural"? E é o próprio da democracia ter que refletir sobre os limites de sua esfera "política".

 

Toda minha proposta poderia parecer conduzir à legitimação do estado atual das coisas em nossas democracias tal como elas existem: de fato, a política aí observa linhas de partilha com as esferas ditas "artística", "científica", "amorosa" – sem deixar de intervir de cem maneiras diferentes em cada uma delas. De fato, nesse estado de coisas jamais é dito nem refletido o que eu me esforço em expor: como a política não é o lugar da assunção dos fins, apenas o do acesso à sua possibilidade. Inventar o lugar, o órgão, o discurso dessa reflexão, isso seria um gesto político considerável.

 

"Democracia" é, portanto, o nome de uma mutação da humanidade na relação com seus fins, ou consigo mesma como "ser dos fins" (Kant). Não é o nome de uma autogestão da humanidade racional, nem o nome de uma verdade definitiva inscrita no céu das Ideias. É o nome, ó quão mal compreendido, de uma humanidade que se encontra exposta à ausência de todo fim dado – de todo céu, de todo futuro, mas não de todo infinito. – Exposta, existente.

 

Tradução: Vinícius Nicastro Honesko  
Original: Démocratie finie et infinie. in.: Démocratie, dans quel état? Paris: La Fabrique, 2009. pp. 77-94.

 

terça-feira, 23 de junho de 2020

Quando Kerényi me desviou de Jung - Furio Jesi

Furio Jesi

Pergunta: Seu primeiro ensaio, já com mais de vinte anos, é dedicado a um papiro helenístico ("Notes sur l’édit dionysiaque de Ptolémée IV Philopator", in Journal of Near Eastern Studies, Chicago, 1956) e seu primeiro livro se chama A cerâmica egípcia (Saie, Turim, 1958). O estudo da arqueologia e das civilizações antigas constituiu, portanto, o momento inicial de seu itinerário teórico. Como se pode chegar à ciência do mito passando pelo estudo do mundo antigo?
Resposta: Naquele tempo certamente não havia organizado um programa calculado que me levaria da papirologia e da arqueologia à ciência do mito. Assim aconteceu, e posso apenas falar retrospectivamente, de modo que noto que muitos daqueles primeiros estudos contribuíram para colocar em meu campo de visão ou em minhas mãos – a fazer com eu lesse, tocasse, mensurasse – materiais a partir do quais hoje se desejaria remontar a seus produtores e à cultura destes.
A ciência do mito, como a compreendo, encontra-se numa situação análoga: dispomos de “materiais mitológicos" determináveis, fotografáveis, suscetíveis de análises filológicas; sobre o mito não só não sabemos nada, mas declaramos, por coerência lógica, não poder saber nada. O arqueólogo circunscreve um espaço no qual poderia também ter existido uma cultura, mas não é capaz de colocar os pés nesse espaço; o mitólogo circunscreve um mecanismo que poderia também ser movido pelo mito, mas não lhe é possível afirmar que o mito existe.
Ocupar-me de arqueologia também significou viajar – para a Grécia, Turquia, Egito ou nos depósitos dos museus. Esse viajar, e às vezes o fato de morar por algum tempo em "terras antigas”, significou repetir – mas a invertendo em seu exato oposto – a experiência dos viajantes do século XVIII: viajar para aprender a não conhecer o mundo e para deste colecionar fragmentos que não remetem a nada senão a si mesmos, “materiais mitológicos", algo que Bachofen teria designado como “símbolos repousantes em si mesmos”.

P.: Em que consiste, para o senhor, a diferença entre ciência do mito e ciência da mitologia? E, em particular, como o senhor concebe a ciência do mito?
R.: Se por mito compreendemos o quid à cuja existência a máquina mitológica alude como a seu presumido motor imóvel, e por materiais mitológicos os produtos historicamente verificáveis da máquina, a ciência do mito é uma típica ciência daquilo que historicamente não existe, enquanto a ciência da mitologia é o estudo dos materiais mitológicos enquanto tais. A ciência do mito, em minha perspectiva, tende a realizar-se como ciência das reflexões sobre o mito, portanto, como análises das diversas modalidades de não-conhecimento do mito. A ciência da mitologia, pelo fato de consistir no estudo dos materiais mitológicos "enquanto tais”, tende a realizar-se sobretudo como ciência do funcionamento da máquina mitológica, portanto, como análises da interna e autônoma circulação linguística que torna mitológicos aqueles materiais. Uso a palavra mitologia para indicar essa circulação linguística e os materiais que a documentam.

P.: De Literatura e mito (Einaudi, Turim, 1968) a Materiais mitológicos (Einaudi, Turim, 1979), o senhor lembrou da influência direta de Karl Kerényi sobre sua formação de estudioso de mitologia.
Para o senhor, qual é a parte mais viva da produção de Kerényi e qual o aspecto dela que permanece como mais importante para a atividade teórica que o senhor desenvolve atualmente?
R.: A produção de Kerényi tem uma fundamental compacidade de contradições que lhe garante vitalidade. Ao especificar o que acredito mais ter aprendido com ele, devo fazer referência à resposta precedente. Considerar a mitologia uma interna e autônoma circulação linguística, algo peculiar a determinados materiais, significa, de minha parte, colocar-me fora de correntes importantes e talvez prevalentes da linguística contemporânea, para as quais os denominados materiais mitológicos são apenas textos aos quais se atribui a qualificação "mitológicos" somente porque se está, com um erro de método, hipnotizado por uma de suas inumeráveis possibilidades de leitura, e esta seria privilegiada como se dispusesse de uma intrínseca objetividade. Esse “erro de método" em mim é originado por Kerényi e por sua antropologia da qual, ao menos desse ponto de vista, partilho. Não creio na existência do mito (uso a palavra "creio” no sentido mais forte, porque se trataria justamente de um ato de fé); pelo contrário, estou convencido de que para mim, hoje, o melhor modo de colocar-me diante dos mecanismos e das minhas produções – e também das de outros, antigos ou contemporâneos – consiste em reconhecer em algumas dessas produções uma linguagem não redutível a outras, absolutamente autônoma, "repousante em si mesma” (Bachofen), dotada de outras características definíveis com aproximações extremamente vagas caso se recorra – como é inevitável para defini-las – a outra linguagem.
O resultado disso é que continuo a considerar apropriada a analogia kerényiana entre a mitologia e a música, e que acentuei (ou ao menos tornei mais explícito do que Kerényi acharia oportuno) o critério kerényiano segundo o qual toda produção nesse campo é verdadeiramente científica se a crítica – no sentido kantiano da palavra – que aí atua for sobretudo autocrítica. A partir de Kerényi aprendi a possibilidade de perceber o peso da mitologia, a necessidade interna aos materiais mitológicos, sem por isso ter de acreditar no mito como em um quid que "é dinâmico, tem um poder, apreende a vida e a plasma" (W.F. Otto). Além disso: aprendi o sentido da distância em relação à mitologia ou às mitologias dos antigos ("Há ainda muito que separa os lábios da borda do cálice...”), que, todavia, não reduz a consciência de que aquele objeto distante nos diz respeito íntima e pessoalmente. Não sustento conhecer a mitologia de antigos ou modernos; sustento que a cientificidade de minha aproximação dos materiais mitológicos e das reflexões sobre o mito consista sobretudo no arbítrio existencial subjacente às palavras “para mim, hoje, o melhor modo de me colocar diante...”.

P.: Uma pergunta à queima-roupa: qual a influência da obra de Jung sobre o senhor? E ainda: há partes das obras de Jung a partir das quais o senhor sente ser possível extrair alguma lição metodológica e também algo mais do que uma lição metodológica?
R.: Quando comecei a estudar materiais mitológicos, símbolos, provas metodológicas de ciência do mito, no fim dos anos 1950, os textos de Jung me emocionavam muito, mais do que os de Kerényi. "Inconsciente coletivo”, “arquétipo", “mandala”, pareciam-me palavras de sabedoria. Em 1957, durante o período que passei no monastério da Transfiguração, no Metéora da Tessália, para tentar estudar o neoplatonismo em relação com a religiosidade greco-ortodoxa, havia levado comigo os livros de Frobenius e de Propp, entre os quais procurava eliminar as contradições provenientes de Jung. Meus primeiros escritos nesse âmbito ("As conexões arquetípicas", em Archivio Internazionale di etnografia e preistoria, 1958; "Sobre o fato milagroso”, idem, 1959) são, em muitos aspectos, junguianos, mesmo se já a partir de então eu sentia certo mal-estar em relação ao "arquétipo" como forma vazia de uma figura perfeitamente acabada, e procurava remediar isso com o modelo das “conexões arquetípicas": constantes – diria hoje – linguísticas, normas obrigatórias de composição ao invés de figuras orgânicas numa galeria de retratos.
Então, pouco a pouco, Kerényi se tornou o magister e, desde quando o conheci pessoalmente, e passei a estudá-lo de forma especial, me levou sempre para mais longe de Jung. As próprias "conexões arquetípicas" que, com a vocação moralista dos 16-17 anos, eu julgava como “valores” gnosiológicos, tornaram-se uma espécie de indecência emocional – como caminhar nu pela rua – que não é bom dizer e fazer, mesmo se não se consiga deixar de levá-las em conta quando se escreve o próprio autorretrato.
Na sequência, as coisas ficaram cada vez mais complicadas: eu gosto, não gosto, enfim, não posso dizer se gosto ou não. Hoje, digo que gosto pouco daquilo que em Jung implique “Eu sei...”. Não porque não seja possível dizê-lo sem ser uma pessoa respeitável, mas porque é um pouco como um pastiche.

P.: A partir de 1969 o senhor estava trabalhando em uma já "mitológica" primeira edição italiana do Mutterrecht de Bachofen, que sairá pela Einaudi. Pode nos dizer o que Bachofen representou e representa para o senhor?
R.: Para responder com uma tirada, poderia dizer que Bachofen é há muito tempo meu Salgari.[1] É claro, a maior parte da produção de Bachofen constitui um esplêndido romance mitológico. Nele há escritura e aquele gosto por conhecer por composição que W. Benjamin celebrou com as palavras “uma profecia científica". Não há, em Bachofen, a consciência de vidência que lhe foi atribuída nos primeiros decênios do século XX pela direita da Bachofen-Renaissance, mas, pelo contrário, há uma segurança patrícia (e também humor tétrico) ao compor por vontade própria e com arbítrio solitário os inumeráveis materiais da própria coleção. No Ensaio sobre o simbolismo funerário dos antigos esses materiais são sobretudo analisados como “símbolos repousantes em si mesmos”. No Direito materno, com um procedimento peculiar do romance histórico (que é, por sua natureza, romance mitológico), a práxis compositiva determina dois processos: o mundo-coleção dos símbolos repousantes em si mesmos é acionado graças à presença de testemunhos que são as categorias lógicas do direito, identificadas com as estruturas da cognoscibilidade da história; a cognoscibilidade – por estruturas jurídicas – da história é acionada pelo peso de uma coleção de símbolos que, pelo fato de ser arbitrariamente ordenada pelo juiz de certa forma, adquire assim um peso específico.


Nota (de Andrea Cavalletti, organizador da edição):
Não muito disfarçado no transcorrer da entrevista, o “autorretrato” finalmente aparece de forma decisiva neste texto, um dos últimos que Jesi deixou. Não conhecemos o autor das perguntas, mas podemos estar certos de que Jesi ao menos as reelaborou, se não as escreveu. Com palavras que lembram muito de perto o início do ensaio sobre a História de Susana, ele volta à mitologia como linguagem e coloca “o modelo máquina mitológica” no centro do próprio laboratório. Volta a seu início, quando com apenas quinze anos publicava seu primeiro ensaio na prestigiosa revista do Oriental Institute da Universidade de Chicago, lembra do encontro com Kerényi e do distanciamento da influência junguiana, e se delonga sobretudo sobre o método de conhecimento por composição. Os numes tutelares de sua última pesquisa, sempre suspensa entre conhecimento e romance, eram Benjamin e Bachofen. Com a repentina morte de Jesi, em 17 de junho de 1980, permaneceu incompleta, junto com seu estudo “benjaminiano” Tradução e duplicidade das linguagens, também seu “Salgari”, isto é, a "tradução anotada e comentada” do Mutterrecht. Dela restam alguns capítulos na atual versão einaudiana do Matriarcato (sob os cuidados de G. Schiavoni, 1988), e também um amplo testemunho em seu genial Bachofen, publicado postumamente, em 2005, pela Bollati Boringhieri.
O texto apareceu pela primeira vez, sob minha organização, em Alias, 30, 28/07/2007, p. 21.


[1] N.T.: Referência a Emilio Salgari (1862-1911), um dos mais famosos escritores italianos de romances de aventura e históricos. 
Original em: Furio Jesi. "Quando Kerényi mi distrasse da Jung" In.: Furio Jesi. Il tempo della festa. A cura di Andrea Cavalletti. Roma: Nottetempo, 2013. pp. 223-231.
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Modos colonizados de recepção filosófica - Notas a partir do caso Agamben


Jonnefer Barbosa[1]

Vinícius Nicastro Honesko[2]


A leitura selvagem de Marx feita por Deleuze aponta que o capitalismo, como modulação imanente de relações humanas, define-se muito mais por suas linhas de fuga do que por suas contradições internas, o que significa a expansão ad infinitum de suas fronteiras, atingindo em nosso tempo as próprias condições de manutenção da vida no planeta. A pandemia de 2020, longe de significar uma interrupção das dinâmicas do capital, como apostam certas análises bem-intencionadas, expressa aqui e agora uma potencialização de sua normatização e expropriação contínuas: as infraestruturas físicas sendo substituídas pela gestão algorítmica (das salas de aula aos consultórios), o abandono de milhões de “indesejáveis” à própria sorte, a calibragem da governamentalidade neoliberal com a assepsia do “sanitarismo cibernético”.

Se o mundo acadêmico já havia incorporado a gestão empresarial na forma dos currículos e da gestão de carreiras, da produtividade e dos ratings competitivos, as plataformas de videoconferências e salas virtuais transformam hoje a universidade em uma rede social virtualizada de uso obrigatório para professores e estudantes. Aulas e debates teóricos transmutam-se em “interações” e “conteúdos compartilhados”: a vida intelectual torna-se um imenso e babélico facebook.

Os alaridos a respeito do caso Agamben e suas repercussões no debate intelectual brasileiro só podem ser lidos sob tal pano de fundo. As notas escritas pelo filósofo italiano, por seu caráter contextual e episódico (uma pessoa de 78 anos em uma cidade sitiada), bem poderiam estar publicadas em algum pequeno jornal de Veneza. Como foram escritas por uma das principais referências intelectuais da filosofia recente – independentemente da opinião de seus detratores sobre tal posto – e lançadas em um site de internet, tais notas assumiram uma ressonância mundial e geraram os mais variados desentendimentos, lançando uma névoa formada por posts e acusações ao filósofo. Um fator sintomático das novas formas de registro cibernético, absolutamente distintas da forma-livro: embora controversas e escritas de última hora, a editora Quodlibet recebeu milhares de novos acessos em seu portal com tais publicações.

Os equívocos publicados nessas notas, perceptíveis para um público mais vasto além dos leitores habituais dos escritos agambenianos, foram devidamente explorados por críticas recentes, sérias ou com intuito de polêmica. Sobre estas últimas, não hesitaram em lançar interdições e suspeitas a pesquisas de mais de quarenta anos, baseando-se apenas nos breves parágrafos sobre a quarentena mundial. Se movidas por escassa leitura das obras de Agamben, má-fé intelectual ou mero ressentimento (ou pela conjunção dos três fatores), não podemos e tampouco desejamos averiguar. O que atestamos é que tal animosidade não expressa apenas um simples desacordo, mas pretende desacreditar um múltiplo conjunto de pesquisas que gravitam não apenas em torno da filosofia agambeniana, mas de autores e problemáticas suscitadas por esta, como muito bem analisou Sérgio Villalobos-Ruminott.[3] Essas constelações conceituais movem uma parte intensiva e potente não só do pensamento contemporâneo, mas de singulares e localizados movimentos estéticos, políticos e de resistência no presente, do movimento francês Claire Fontaine ao Conselho Noturno mexicano, para ficarmos apenas em dois exemplos.

As leituras que exploraram criticamente as contradições e estranhamentos suscitados pelas intervenções de Agamben, por sua vez, insistem em frisar, com certa razão, seu engessamento analítico (e muitas vezes a retomada de suas próprias conceitualizações de um modo julgado incompatível com as leituras de fôlego presentes nas obras, o “cover de si mesmo”), sua aparente desconsideração pelos mortos, convalescentes e familiares etc. Além disso, muitas vezes fica perceptível certa "frustração" de expectativas de leitores que esperavam, mais do que textos de ocasião, uma “correição moral" no pensamento do “mestre”. Muitas vezes essa espera mostra certa inadequação contextual: antes de tudo, um desconhecimento das nuanças dos debates italianos sobre a pandemia. Não só Agamben, mas um amplo conjunto da intelectualidade italiana, vinculada a múltiplos espectros da esquerda no país, têm criticado certos pontos das medidas governamentais de exceção no contexto do isolamento social: Donatella di Cesare, Raffaele Ventura, Elettra Stimilli, Massimo Cacciari, Piero Purich, para ficarmos com alguns nomes. Mas é suficiente abrir um jornal como Il Manifesto para percebermos que Agamben não expõe uma posição absolutamente solitária e excêntrica. Abstrair tais debates e o pano de fundo cultural e político italiano das intervenções recentes de Agamben não só cria equívocos interpretativos, mas uma arriscada tentativa de transplante imediato, por meio de um procedimento uniformizante, dessas análises contextuais para onde quer que seja.

Nesse sentido, poderíamos dizer que a polêmica engendrada pelas “postagens” de Giorgio Agamben nos circuitos acadêmicos da filosofia no Brasil é sobretudo reveladora do caráter não só provinciano, mas colonizado de seus modos de recepção e leitura da filosofia europeia. Nos departamentos de filosofia do Brasil, as filósofas ou filósofos são colocados na posição de intelectuais universais, dos quais são exigidas questões filosóficas universais ou de validade geral. Mesmo imbuído de uma metafísica ingênua, tal procedimento ainda seria justificado para o estudo de autores como Descartes, Leibniz ou Kant, mas traz problemas quando aplicados a textos atravessados por contextualidades e especificidades conceituais e teóricas. Parte considerável da filosofia acadêmica brasileira lê produções de filosofia política do séc. XXI usando as referências da ágora ateniense do séc. V a.C., não raro traindo em si os idealismos e utopismos que imputa a seus acusados.

Temos nós, por aqui, nossas materialidades, e não adianta esperar de Agamben, Nancy, Esposito, Negri, etc. que lidem com isso, sob pena de recairmos nos filosofemas dogmáticos – as igrejas acadêmicas secularizadas, com fiéis e disputas proselitistas por novos convertidos – ou nas acusações vazias e ressentidas, como se o “problema principal” se resolvesse em apenas encontrar abstratamente “a filosofia mais adequada para nosso tempo” (Villalobos-Ruminott), sem colocar em conflito a posição de quem lê e a inscrição mundana de quem teoriza.

Seria preciso ressaltar, todavia, que uma recepção crítica e minimamente cuidadosa pode, mesmo nessas contestadas notas agambenianas sobre a pandemia, perceber linhas temáticas e problemáticas passíveis de desdobramentos: a falência da dinâmica consensual das democracias contemporâneas; a produção de um dócil e obediente comportamento de massa cruzado com a hiperindividualização tecnificada; o quase inexorável ajuste dos dispositivos de poder durante a pandemia e seus desdobramentos que, como apontou Naomi Klein em recente texto no The Guardian,[4] já se insinuam – para não dizer que se exibem claramente – com suficiente evidência na perspectiva de um screen new deal.

Aliás, a partir disso podemos perceber como a animosidade das críticas nas “interações" e "compartilhamentos” da nova vida intelectual – bem-intencionadas ou polemizadoras – deixa insinuar seu próprio impasse: a benevolência com o teletrabalho e com o conjuntos de aparatos antropotécnicos que permitem à classe média acadêmica cumprir o mantra “fique em casa”. O discurso da “provisoriedade” da situação pandêmica ignora os evidentes rearranjos das Big Tech na nova organização capitalista, seja da educação ou na saúde, como aponta Klein (no contexto brasileiro, para ficarmos no âmbito da educação, lembremos dos acordos que muitas universidades já têm com a Microsoft, além, é claro, das propostas do governo no que diz respeito à EaD e afins). Em outras palavras, vale mais desqualificar – seja com as melhores intenções ou para ganhar “likes” e reputação online, como “players” de uma arena “gamificada” – um pensamento que se desviou ou que não atende a certos anseios morais, do que efetivamente postular problemas, a partir ou contra tais postulados, isto é, encarar a tarefa do pensar. No caso Agamben, talvez contrariá-lo naquilo que suas propostas soam ineptas (no Brasil, um mínimo de "estado de bem-estar” passou muito muito longe para que certas propostas europeias possam minimamente fazer sentido) e desdobrá-lo naquilo que suas reflexões carregam de potente: como colocamos os problemas a respeito da aceleração dos processos de um capitalismo de choque que está sempre cinco passos à frente nos arranjos das formas de vida contemporâneas, e que não se furta em retirar a máscara democrática para vestir a autocrática, ou embaralhá-las de forma irreversível? Como pensar tais problemáticas e seus desdobramentos num contexto como o brasileiro, em que a dinâmica da violência é capilarizada muito para além do “monopólio de seu uso" (e a ascensão miliciana é só mais uma nota na secular história de nossa hybris)?

O bolsonarismo – esse perverso neofascismo contemporâneo – também causa estragos não só ao “ecossistema” da vida cultural e intelectual brasileira, mas afeta a imaginação conceitual de parte de sua intelectualidade, transformada em máquina dicotômica infernal a ponto de se limitar, contra seus inimigos, à defesa intransigente de um mitológico “Estado de Direito” sustentado em decisões do Supremo Tribunal e na violência genocida das polícias. Uma intelectualidade carregada de boas intenções que, no intuito de neutralizar um genocida, está às vésperas de cair docilmente no colo de outro: o Massacre de Paraisópolis foi só mais uma das páginas recentes de um país em guerra civil, conflagrado nas ruas e nas redes sociais. Uma intelectualidade que se comove com os caixões da Lombardia e espera respostas oriundas da velha Europa, mas não consegue teorizar sobre as valas comuns dos bairros vizinhos de onde, confortavelmente “logada”, ainda vive e espera pelo desastre final.


[1] Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCSP. Email: jfbarbosa@pucsp.br

[2] Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFPR. Email: viniciushonesko@gmail.com

[3] VILLALOBOS-RUMINOTT, Sergio. O affaire Agamben expandido. In: https://ficciondelarazon.org/2020/04/28/sergio-villalobos-ruminott-el-affaire-agamben-expandido/?fbclid=IwAR0HEENx1vAraxTPnpjF6JNaGBVswAEer4g3DX_a6G1TYXqKJ1jrI_cm4JA

[4] KLEIN, Naomi. How big tech plans to profit from the pandemic. In.: The Guardian, 13/05/2020. Disponível em: https://www.theguardian.com/news/2020/may/13/naomi-klein-how-big-tech-plans-to-profit-from-coronavirus-pandemic?CMP=share_btn_fb&fbclid=IwAR137HXQwctG5xg_QDwIdFvQAFzsSNwy5XuEGy3rsMwXvP7NyUFZtkXDQo4
 

Imagem: Marcelo Pogolotti. Joven intelectual. 1937. Museu de Bellas Artes de Cuba

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Sobre a técnica e a arte - Giorgio Agamben



Creio que seria útil partir de um simples dado linguístico, qual seja, que a palavra latina ars é a tradução do termo grego techne. Uma primeira consequência disso é que o termo arte aí é subtraído da esfera estética à qual a modernidade quis reduzi-lo e restituído à sua original amplitude semântica. Uma segunda consequência, então, é que o humano pode ser definido como o animal ou o vivente artista, isto é, como o vivente que em sua forma de vida está constante e essencialmente ocupado com uma pluralidade de práticas técnicas.

Nesse sentido, ele não se diferencia dos outros viventes que, cada um à sua maneira, também parecem ocupados com técnicas e hábitos vitais. Mas o que podemos dizer é que os humanos levaram essa característica própria do vivente mais adiante, enquanto expulsaram as técnicas vitais para além de seu próprio corpo, confiando-as a uma tradição exossomática e histórica que nos outros viventes está presente apenas numa medida reduzida. Daí a produção crescente de dispositivos e instrumentos técnicos em sentido estrito e a criação de um verdadeiro patrimônio exossomático que se coloca ao lado das capacidades endossomáticas do organismo. É a partir disso que se dá a legitimidade das concepções da técnica como uma projeção externa das funções orgânicas do corpo humano. Os instrumentos técnicos seriam apenas o desenvolvimento, em forma de prótese, de capacidades funcionais do organismo que são projetadas fora do corpo.

Assim, compreende-se por que não é fácil definir a técnica: ela é de tal forma parte integrante da vida humana, das práxis vitais do vivente artista que é o homem, que pensar a técnica é tão problemático quanto pensar a vida. Disso decorre que também pensar a vida é impossível sem pensar a técnica: a antropogênese e a tecnogênese parecem coincidir, e definir uma sem a outra parece impossível.

A partir dessa perspectiva, o que procurei pensar como “vida nua”, isto é, como uma vida que é separada de sua forma, talvez se torne mais claro caso seja pensada como uma vida separada não apenas de sua forma, mas também de sua técnica, de uma técnica definida como "arte da vida”. Também a confusão entre arte e vida que está na base da arte denominada contemporânea se torna evidente nessa perspectiva: ela é apenas uma tentativa inadequada e equivocada de pensar a coincidência de técnica e vida. Da mesma forma, a relação entre uma prática artística e a forma de vida que Foucault buscou pensar em A hermenêutica do sujeito é restituída a esse contexto problemático. É preciso pensar vida e técnica (arte) juntas, em seu co-pertencimento, como uso de si e ethos – mas, justamente, isso não é fácil.

Aqui, gostaria de brevemente evocar uma concepção da técnica que capta um aspecto essencial disso, para além daquele de projeção externa das funções orgânicas do corpo humano. Já nos anos vinte do século XX, Paul Alsberg mostrou de forma oportuna que o que na realidade acontece na projeção externa das funções dos órgãos corpóreos é que esses órgãos são progressivamente desativados em favor dos instrumentos artificiais que os substituem. O que distingue o homem dos animais é o assim chamado Ausschaltungprinzip, o princípio de desativação. Enquanto o animal adapta as próprias funções corpóreas às condições naturais, o homem as desativa para confiá-las a instrumentos artificiais. A cada processo exossomático corresponde assim um regresso das funções endossomáticas.

Utilizando-me de um conceito forjado por Gunther Anders, prefiro falar, a propósito disso, de um "desnível prometeico", isto é, de uma separação crescente entre o homem e o mundo de seus produtos, o que torna, em última análise, o homem incapaz de estar à altura das próprias produções técnicas e, portanto, de dominá-las. Podemos dizer que hoje esse desnível chegou ao ponto de máxima tensão. O homem como indivíduo endossomático, também pelo progressivo atrofiamento de suas capacidades internas, parece totalmente incapaz de assumir o controle da esfera exossomática dos produtos por ele criados. Dito de outra forma, a cultura humana parece ter sido de todo separada e tornada autônoma em relação à natureza humana.

Tentemos compreender como essa fratura se produziu. Ivan Illich mostrou como já entre os séculos XII e XIII se assiste a um autonomizar-se do instrumento em face da mão do homem. O que de início era apenas um prolongamento de uma função corpórea – por exemplo, o martelo ou a escova em relação à mão – destaca-se do corpo e adquire uma existência autônoma. A essa progressiva liberação do instrumento de seus vínculos corpóreos corresponde, nos filósofos e nos teólogos, a elaboração do conceito de causa instrumental, que não por acaso tem na teoria dos sacramentos seu lugar tópico. A descoberta da causa instrumental é a primeira tentativa de dar uma figura conceitual à tecnologia.

O que define a causa instrumental é o autonomizar-se do instrumento da causa final que o ligava ao corpo daquele que o usava. O que acontece é que certo objeto cessa de ser um instrumento para um fim a ele imanente e se transforma em uma função em si autônoma. A instrumentalidade dá lugar à funcionalidade. Assim, a caneta, que era instrumento para a escrita, torna-se agora o suporte de uma função-escrevibilidade, que pode ser realizada das mais diversas maneiras. O martelo, instrumento que a mão usa para bater, transforma-se na função-batedora, que se autonomiza da mão e pode assumir as mais variadas formas mecânicas. Isso é evidente nos sacramentos: a água, que tem a função de lavar, não sabe nada do apagamento do pecado que ela opera no batismo. A função de lavar ou purificadora da água adquire um estatuto autônomo e pode ser dirigida aos fins mais disparatados.

Podemos, assim, dizer que o que vemos é a transformação do uso em função. Não se usa um instrumento, mas se coloca sua função em operação. De um ponto de vista linguístico, que é sempre iluminador, isso corresponde à passagem do significado do verbo uti (em grego: Chresthai), acerca do qual me ocupei em O uso dos corpos, ao do verbo fungor. Enquanto uti honore, ocupar um cargo, exprime a relação que se tem consigo enquanto se exercita um cargo, munere fungi significa, pelo contrário, o puro exercício de uma função, sem relação com o sujeito. Assim, functa corpora, os corpos defuntos, são os corpos que cumpriram a função de viver, isto é, a vida não como uso, mas como uma função. A esse autonomizar-se da função em relação ao uso corresponde a diferença entre o gesto da mão que escreve e o apertar de um botão que coloca em função um dispositivo técnico. Proponho o uso do termo dispositivo e não instrumento para sublinhar essa passagem do uso à função.

Daí uma importante consequência: enquanto o uso do instrumento, uma vez que coloca integralmente em jogo um indivíduo em sua corporeidade, implica um ethos e uma forma de vida, a execução da função de um dispositivo parece – ao menos em aparência – não ter nenhuma consequência ética para o sujeito que nela está implicado. Na teoria dos sacramentos, essa indiferença ética se exprime na eficácia do sacramento opere operato, isto é, pelo puro exercício do ato sacramental, independentemente das qualidades do sujeito que o administra.

Se voltarmos agora ao nosso problema do desnível prometeico, compreenderemos como essa transformação do uso gerador de ethos em função neutral torna ainda mais árdua a tarefa de sair desse desnível. Podemos dizer que na modernidade essa tarefa foi confiada à consciência, isto é, a algo que por certo não é fácil definir, mas a respeito da qual podemos dizer que, na perspectiva que nos interessa, deveria se não dominar tal tarefa ao menos reduzir ou conter o desnível. De fato, vemos que isso não acontece, porque o que chamamos consciência é apenas, na realidade, o resultado da progressiva desativação das capacidades endossomáticas do organismo humano. Quanto mais a desativação aumenta por efeito da técnica mais hipertrófica se torna a consciência, a qual se transforma em um órgão que pretende controlar e gerir o patrimônio exossomático da humanidade, mas que não o pode fazer, porque na realidade está totalmente no interior desse patrimônio. O que aconteceu, com efeito, é que a consciência parece ter esquecido sua tarefa de sair do desnível prometeico para se tornar, pelo contrário, parte integrante do sistema tecnológico. A consciência poderia, de fato, sair do desnível apenas se se situasse decididamente nele, ou seja, se encontrasse seu lugar entre o endossomático e o exossomático, entre a natureza e a cultura.

Por isso, creio que não é a consciência que pode ser a resposta humana e política ao desnível prometeico, mas apenas uma filosofia restituída a seu lugar originário entre a natureza e a cultura. A filosofia se dá na não coincidência entre natureza e cultura, no hiato entre habilidades endossomáticas e capacidades exossomáticas e abre entre estas um terceiro espaço, que necessariamente terá a forma de um ethos e de uma forma-de-vida.

Com esse objetivo, ela não poderá deixar de afrontar o princípio de desativação das funções corporais que vimos definir o desenvolvimento tecnológico da espécie humana. Isto é, a filosofia deverá, por assim dizer, a cada vez "desativar a desativação", tornar inoperosa a inoperosidade das funções corpóreas não para substitui-las por outro dispositivo tecnológico, mas para delas fazer uso, ou seja, para abri-las a um uso político e poético.

O homem se mostra, nessa perspectiva, como o vivente que faz uso de suas ineptidões e o conceito de inoperosidade, que várias vezes buscamos definir, recebe um esclarecimento ulterior. Fazer uso da própria ineptidão significará, assim, regredir arqueologicamente ao momento da antropo-tecnogênese, mantendo a cada vez a técnica em uma relação política e poética com o corpo que a produz.

Será o caso de restituir à impotência sua potência, de transformar o “não poder usar” em um "poder não usar". As formas e as modalidades desse "poder não usar" e dessa relação com o corpo definirão, segundo os lugares e as ocasiões, a matéria da política e da arte que vem.
 
 
Original disponível em: 
 
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko
 
Imagem: Gruta de Chauvet. 





segunda-feira, 20 de abril de 2020

As dobras do mundo - Giorgio Agamben





A lenda começa com uma fábula: “Era uma vez, na cidade de Nicomédia, um homem de nome Dióscuro, ilustre por nobreza, que se destacava sobre todos pela abundância de bens temporais. Ele tinha uma filha lindíssima (speciosissima) que se chamava Bárbara. Seu corpo era tão belo que o pai a amava mais do que qualquer outra coisa. Por isso, mandou construir uma torre muito alta e aí prendeu a filha de modo que nenhum outro homem pudesse vê-la."

Nesse ponto, a lenda áurea toma a palavra da fábula, o apólogo edificante substitui a narração fantástica. “A beata menina era cheia de engenho (ingeniosa) e desde tenra idade, abandonando todo pensamento vão, pusera-se a pensar as coisas divinas (coepit divina cogitare)". Vendo em um templo as estátuas dos deuses pagãos que o pai venerava, compreendeu que estes eram, na realidade, humanos e não divinos. E uma vez que os quatro elementos de que é feito o homem não podem ser feitos por si, mas são criaturas, deduziu que devia existir um ser que os havia criado. E ao saber que em Alexandria havia um homem de nome Orígenes, que instruía os homens nas coisas divinas, escreveu-lhe uma carta contando sobre suas intuições e suas dúvidas. A resposta do sábio não tardou: "Deves saber, menina, que o verdadeiro Deus é um na substância e trino nas pessoas, isto é, pai, filho e espírito santo”.

E aqui a lenda de Bárbara se confunde com a da torre que o pai estava construindo. Ao ver que os arquitetos, seguindo as instruções paternas, haviam colocado na torre duas janelas, pediu insistentemente e conseguiu que fosse aberta uma terceira janela. E quando o pai lhe perguntou a razão dessa intrusão, ela respondeu: “três iluminam o mundo e regulam o curso das coisas, isto é, o pai, o filho e o espírito santo”. Neste ponto, o destino da mártir é traçado. O incestuoso ciúme do pai se transforma em fúria homicida. Depois de ter mandado torturá-la com tochas ardentes, à espera de que se arrependesse, Dióscuro primeiro fecha a filha na torre e na sequência a leva para um monte e a decapita. Mas enquanto desce do lugar onde consumou seu delito, é fulminado pelo fogo celeste.



Na grisaille de Van Eyck, Bárbara é representada em primeiro plano enquanto pensa nas coisas divinas. Às suas costas, uma massa de operários trabalha na construção da "altíssima torre", a qual lhe servirá como prisão. Alguns levam pedras, outros cozinham tijolos e preparam o concreto, outros batem os ferros. Os quatro cavaleiros à esquerda talvez sejam os arquitetos da imponente obra, cuja fachada gótica se levanta por trás da cabeça da menina. No alto, as três janelas testemunham que Bárbara foi bem-sucedida em sua intenção alegórica. E, no entanto, a impressão é a de que o pintor havia conferido à torre um significado ulterior, que vai além daquele contado na lenda. A torre – o número e a variedade dos mestres de obras e a posição isolada da cidade parecem sugerir isso sem reservas – é, na verdade, a mesma que os homens, na narrativa de Gênesis 11, 1-9, começaram a construir no país de Senaar e que foi chamada de Babel. Como esta – e assim o mostram as gruas e operários concentrados no trabalho no alto –, a torre de Van Eyck é interminável, e é possível que Bruegel dela se lembrasse enquanto pintava sua célebre imagem babélica.

Ao estudo das coisas divinas representado por Bárbara contrapõe-se a louca ciência dos homens ocupados na construção da torre que devia chegar até o céu e que foi causa da confusão das línguas. O edifício, tenha ele duas ou três janelas, pertence inequivocamente à esfera do poder paterno, simboliza a arrogância e, ao mesmo tempo, a prisão do mundo.

Também a menina, que Van Eyck curiosamente escolheu situar não em um interior mas sentada diante da torre, é uma alegoria. Como Babel, também o nome “Bárbara” alude a um balbucio, que, no entanto, é aquele da humilde razão humana diante da ciência divina. Ela busca, sem o conseguir, parar a obra interminável, nesta inserindo uma imagem da trindade. Suas cogitationes divinae são representadas não pelo livro aberto, que o olhar oblíquo da menina não parece ler, nem pelo ramo de palma, símbolo da justiça, mas pelo cruzamento das dobras na imensa veste que ocupa o terço anterior do quadro. Suas esparsas e quase tenras volutas pousadas no solo, sobre as quais a mão do pintor tão pacientemente se demorou, desmentem a rigidez da torre, que em vão se estende para o alto. E aqui Deus não é apenas uno e trino, mas, como nas páginas de Nicolau de Cusa que Van Eyck podia conhecer, está preso e envolvido nas inumeráveis implicações do mundo, nas dóceis dobras do ser cujo desdobramento infinito representa. 
 
Giorgio Agamben. Le pieghe del mondo. In.: Giorgio Agamben. Studiolo. Torino: Einaudi, 2019. pp. 9-14. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko 
 
Imagem: Jan Van Eyck, Santa Bárbara, técnica mista sobre madeira, 32,3cm X 18,5cm. Assinado na moldura: Joh(ann)es De Eick me fecit.

domingo, 12 de abril de 2020

Para além dos atos e dos silêncios: gestos de resistência no olhar



Vinícius Nicastro Honesko



Em março 2000, após a leitura de um relatório que apontava para a série de fracassos das missões de paz da ONU – a UNPROFOR (UN Protection force), na ex-Iugoslávia em 1995, as UNOSOM (UN in Somalia) I e II, na Somália em 1992 e 1993 e, principalmente, a UNAMIR (UN Assistence Mission for Ruanda) em Ruanda em 1995 – o então secretário geral da ONU, Kofi Annan, solicita a realização de uma comissão, com a participação de especialistas em prevenção de conflitos, que deveria sugerir novos modos de atuação das forças de paz. Como resultado dessa comissão surge, em agosto de 2000, o relatório Brahimi (em referência ao então ministro das relações exteriores da Argélia, Lakhdar Brahimi, que esteve à frente dos trabalhos da comissão), que, apresentado em setembro de 2000 na Cúpula do Milênio, trouxe vinte recomendações para as missões de paz da ONU,[1] dentre elas a possibilidade de, diante de violências presenciadas contra civis, a necessidade de intervir. Essas recomendações foram aplicadas às missões de paz que, àquela época, já estavam em curso, dentre elas a UNTAET (UN Transitional Administration in East Timor; missão seguinte à a UNAMET (UN mission in East Timor)[2]), da qual o Brasil, que desde 1994 declarava suas intenções para uma cadeira efetiva no Conselho de Segurança da ONU, foi participante, com a notória participação, como observador do secretário geral da ONU, do diplomata Sérgio Vieira de Mello, além de diversos chefes militares, como o então general de brigada Walter Braga Netto.

As missões da ONU no Timor Leste tinham como fundamental componente a garantia das possibilidades da construção de um país com as pilastras fundamentadas em um Estado de Direito (isto é, a garantia de um processo de constituição legislativa – por meio de Assembleia constituinte –, de eleições livres de representantes etc.) e surgiram diante da necessidade de intervenção da ONU quando da intensificação da violência propiciada pela atuação do governo indonésio que, desde a revolução dos cravos em 1974 e o fim do domínio português, ocupava o território do Timor-Leste. Tal ocupação, grosso modo, acontece quando no Timor-Leste surge a FRETELIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente), capitaneada por José Ramos Horta (que ganharia, com o bispo Carlos Ximenes Belo, o Nobel da Paz em 1996) e com claros ideais socialistas. Suharto, o presidente da Indonésia entre 1968 e 1998, vê na ascensão do FRETELIN o perigo comunista – que anos antes ele próprio se encarregara de eliminar na Indonésia – e, por meio de forças especiais do exército[3], ocupa o Timor-Leste. Dentre as táticas de ocupação – considerada um genocídio[4] –, estava o uso ostensivo de napalm, massacres que não discriminavam mulheres, crianças idosos etc. e, por fim, já nos anos 90, mesmo com uma suposta política de controle dos atos do exército, o uso da tortura e a prisão arbitrária de independentistas (denunciados com ênfase pela Anistia Internacional). O fim da ocupação Indonésia no Timor foi propiciado em certa medida pela intervenção da ONU (UNAMET) e, sobretudo, a partir da renúncia de Suharto após a grave crise financeira que abalou o país (a crise dos Tigres Asiáticos) e as revoltas estudantis de maio de 1996, ocorridas após o assassinato de quatro estudantes (o comandante das ações contra os estudantes foi, justamente, Probowo Subianto).

O sofrimento e a violência, a destruição e a subjugação, de fato, foram frequentes nas ações do governo de Suharto no Timor Leste. Todavia, como é uma constante no século XX, essa história não teria sido possível sem que, no contexto geopolítico global, ao menos em alguma medida e por um período Suharto tenha tido, senão apoio direto, ao menos suporte internacional para o cumprimento de seu papel nos jogos de poder globais (ainda que este tenha sido um papel minoritário e setorizado). Ou seja, o mesmo sujeito que subjuga e destrói pode ser, a depender de quem subjuga e destrói, aliado ou inimigo, pode estar à mesa de discussões de estratégias na política econômica ou pode estar no famoso banco dos réus da história.

Se a intervenção e ocupação do Timor Leste pelo governo indonésio – sob a justificação do perigo comunista – foi caracterizada como genocida por boa parte da comunidade política internacional, o mesmo não se pode dizer da eliminação do partido comunista indonésio (PKI) por meio da dizimação de seus membros e supostos simpatizantes, entre 1965 e 1966, sob o comando do então general Suharto. Nesses anos, a Indonésia, que se tornara independente da Holanda entre os anos de 1945 e 1949, ainda passava por um processo de estabilização política. O presidente, Sukarno, líder na revolução de independência e desde então na chefia do governo, equilibrava-se com o que denominava de Democracia Guiada, um modo de gerir as tensões entre os três pilares da jovem república indonésia, o Nas-A-Kom (nacionalismo, agama – religião – e comunismo), representados pelo exército, o islã e os comunistas (a Indonésia tinha então o terceiro maior partido comunista do mundo). Com o acirramento da Guerra Fria, os Estados Unidos passam a dar suporte para setores à direita do exército indonésio, que, por outro lado, contava também com um crescimento de membros ligados ao comunismo. Além disso, com sua aproximação dos soviéticos e sua política externa intervencionista na região (p.ex.: em Brunei), Sukarno passa a ser visto com certa cautela pelos governos ocidentais.

Nesse contexto de fragilidades, em primeiro de outubro de 1965, um grupo de oficiais de patente mediana sequestra e mata seis generais do exército numa espécie de tentativa de golpe de estado. Ainda no mesmo dia, as tropas do exército, comandadas pelo general Suharto, sufocam a tentativa de golpe com certa facilidade, haja vista que, como se revelou adiante, os supostos golpistas tinham uma articulação bastante frágil. Até hoje as explicações sobre os motivos e as origens desse golpe são nebulosas, mas que, naquele momento, ele foi imediatamente ligado ao Partido Comunista Indonésio[5]. Logo após o incidente, inicia-se na Indonésia uma perseguição aos comunistas, estendida a supostos simpatizantes, que, além da extinção do PKI, causaria a morte de aproximadamente um milhão de pessoas sem que até hoje por estas ninguém tenha sido responsabilizado. Além disso, é nesse contexto que Suharto dará início a seu programa de governo denominado New Order, a nova ordem para o povo indonésio: tratava-se de um governo baseado no Pancasila (os cinco princípios que deveriam reger a nação: 1- Um Deus; 2- Uma humanidade justa e civilizada; 3- A Indonésia unificada; 4- Democracia guiada pelos sábios representantes do povo e 5- Justiça social) e na inclusão da Indonésia no contexto global do capitalismo (lembro que, desde 1962, a Indonésia fazia parte da OPEP; entre 1968 e 1981, sua economia teve uma média de crescimento de 7%, sobretudo por conta do petróleo e da abertura, com incentivos fiscais, às empresas transnacionais – aliás, a partir dessas circunstâncias, a Indonésia passa a ser enquadrada no rol dos novos tigres asiáticos).

Em 2012, o diretor de cinema Joshua Oppenheimer produz aquele que seria um aclamado documentário de denúncia do genocídio indonésio de 65-66 contra os comunistas: The Act of Killing. A ideia do filme surge, conforme relata o próprio diretor, durante a produção, feita por ele e por Christine Cynn, de The Globalization tapes, documentário de 2003 dirigido em colaboração entre vários diretores indonésios (todos trabalhadores ligados aos movimentos de trabalhadores rurais) que retrata os impactos da globalização no contexto dos países pobres bem como o modo como as instituições financeiras detêm um importante papel na forja do atual contexto global. Durante a produção, Oppenheimer acaba se inteirando da história dos massacres de 1965-1966, sobretudo por parte dos trabalhadores rurais que a ele relatavam que, para além da versão oficial do governo (que diz que os assassinatos dos comunistas e supostos comunistas foram obra do povo, que de modo espontâneo reagiu à ameaça comunista), os assassinatos foram, sim, arquitetados pelos militares como modo de destruir as organizações anticoloniais de trabalhadores existentes até 1965. Muitos desses trabalhadores rurais, participantes da produção de The Globalization tapes, eram eles mesmos sobreviventes e, além disso, sabiam apontar quem eram os perpetradores que ainda moravam nos vilarejos de suas regiões.

Foi seguindo essa pista que Oppenheimer passou à produção de The Act of Killing. O diretor, ao entrevistar os sobreviventes em 2004, na região de Medan, acabou sendo levado aos perpetradores, dentre eles Amir Hasan, o líder do esquadrão da morte atuante na região das plantações onde foram feitas as filmagens de Globalization tapes. Hasan, por sua vez, apresenta outros líderes da região com os quais Oppenheimer também passa a se encontrar para entrevistas e, assim, entendendo melhor a maneira como os esquadrões eram organizados, o diretor passa, paralelamente, a contatar e a entrevistar outros líderes dos assassinatos de 1965 e 1966. Oppenheimer relata que durante as gravações dessas entrevistas passou a se sentir incomodado com uma alegria que transparecia no relato dos perpetradores. Assim, ele acabou se colocando a pergunta que daria origem ao projeto de The Act of Killing (e, como desdobramento deste, ao projeto de The look of silence, filme de 2014 que, por sua vez, expõe não apenas as entrevistas com os carrascos, mas também exibe como os sobreviventes – em específico, um irmão de uma vítima – se sentem em relação ao massacre): "como essa sociedade se desenvolveu até o ponto em que seus líderes poderiam – e desejariam – falar de seus próprios crimes contra a humanidade com um gesto vitorioso que ao mesmo tempo era celebrativo e também expunha-se como uma ameaça?"[6]

A partir dessa pergunta, o diretor modela sua filmagem: traz para o centro do filme alguns perpetradores, dentre eles Anwar Congo, um dos principais líderes do esquadrão de extermínio Pelotão do sapo, atuante no norte de Sumatra. O filme mostra como esses sujeitos, que se auto-intitulavam gangsters, em referência aos filmes norte-americanos (filmes estes que eram rejeitados pelos comunistas; aliás, no filme, os próprios gangsters afirmam que já odiavam os comunistas por isso), e que foram recrutados pelo exército para matar os “esquerdistas", atuavam. Oppenheimer filma de modo a fazer com que o espectador se defronte com a maneira como o perpetrador gostaria de ser visto. Aos perpetradores, ele propõe que encenem e, enquanto são filmados, expliquem como praticavam os assassinatos. Após essas encenações, o diretor mostrava aos atores-assassinos as filmagens, e assim o fazia numa tentativa de despertar algum tipo de reflexão moral. Entretanto, Oppenheimer se surpreende com resultado (surpresa esta que é também a de quem assiste ao filme). Diz ele:

Para entender como eles se sentiram sobre os assassinatos e sua maneira impenitente de representá-los no filme, eu lhes exibia as imagens não editadas dessas primeiras reconstituições e filmava suas respostas. Em primeiro lugar, pensei que eles se sentiriam mal quando vissem as encenações dos assassinatos, e que talvez pudessem chegar a um lugar moral e emocionalmente mais complexo.
Fiquei assustado com o que realmente aconteceu. Ao menos de modo superficial, Anwar estava sobretudo ansioso para parecer jovem e elegante. Em vez de qualquer reflexão moral explícita, a exibição levou tanto ele quanto Herman [outro perpetrador] espontaneamente a sugerir uma dramatização melhor e mais elaborada.[7]



A partir de então, o diretor passa a explorar essa imaginação cinematográfica dos perpetradores, dando a eles uma liberdade para reencenar os assassinatos e também alguns de seus sonhos, que, por vezes, revelavam certa fixação traumática nos perpetradores (lembro das diversas vezes em que, em The look of silence, um dos perpetradores relata como era apavorado pelos mortos em seus sonhos; ou mesmo Anwar falando sobre seus diversos pesadelos; é importante ressaltar que um dos sonhos filmados por Oppenheimer e que faz parte de The Act of killing, mostra Anwar se reconciliando com os mortos debaixo de uma cachoeira e com uma tentativa de encontro com certa paz de espírito). A liberdade para encenação que o diretor propunha de modo inteligente, incluía um set de filmagens no qual os perpetradores poderiam utilizar-se de recursos de maquiagem, som, efeitos e, até mesmo, poderiam dirigir a cena questionando um ao outro se aquilo efetivamente conseguiria representar o que viveram. Nesse processo, Oppenheimer se dá conta de que, para além de uma tentativa de encenação cinematográfica para o filme que estava sendo feito (e do qual tinham ciência os perpetradores), o que o gesto dos gangsters expunha é que já à época dos assassinatos os filmes sobre gangster eram a inspiração para como eles iriam matar os “comunistas”. Então, nessas encenações dos assassinatos outrora praticados por eles mesmos, mais do que encenar suas lembranças, agora, diante das câmeras de um diretor de cinema (isto é, sabendo que iriam ingressar na tela, a mesma que em 1965-66 era a inspiração para como matar), os perpetradores estavam elaborando imageticamente suas memórias para exibi-las de modo que pudessem se tornar, no filme, uma espécie de exposição de si tal como gostariam de ser lembrados (uma esperança de lembrança futura que, portanto, seria construída a partir do filme do qual, agora, eles eram os atores e personagens principais).

Oppenheimer relata que já durante a produção de The Globalization tapes tinha a impressão de que os modos como os perpetradores falavam sobre as mortes trazia em si algo de performático. Assim, quando da realização de The Act of killing, a opção por dar aos gangsters a liberdade imaginativa e a sensação de que controlavam o material que estavam produzindo era uma tentativa do diretor de captar essa dimensão performática. Oppenheimer diz ainda que percebia esses gestos carregavam a ideia de certa garantia impunidade, e, com isso, os gangsters almejavam dar a suas imagens uma força ameaçadora que expõe o fortalecimento e continuidade do regime político que tem início com esses massacres e perdura em certa medida até hoje.[8]

Nesse sentido, as performances livres que os gangsters passaram a realizar começaram a produzir efeitos rememorativos: eles agora atuavam da mesma forma quando estavam atuando, inspirados nos filmes que viam, durante os assassinatos. Ainda que a falta de uma reflexão moral seja sentida de imediato, é preciso anotar que há também aí certa ambiguidade; isto é, a potência dessa revitalização das próprias imagens acabou, como vemos no filme, trazendo para o protagonista Anwar um mal-estar incomensurável, sobretudo quando ele encena uma vítima e não o carrasco que ele fora. Nesse momento, ele pergunta: “será que as vítimas sentiam-se tão mal, assim como eu, Joshua?” E, em uma de suas poucas intromissões, o diretor diz: “eles se sentiam muito pior, Anwar. Eles estavam efetivamente sendo mortos." E em outra cena, a do massacre de Kampung Kolam (quando todos os moradores de uma vila foram mortos e, na sequência, a vila foi queimada), o mal-estar dos diversos participantes (filhos, companheiras e membros da juventude Pancasila, um grupo paramilitar ainda hoje ativo na Indonésia) após as filmagens revela, segundo o diretor, "a terrificante história sobre a qual todos na Indonésia estão de algum modo conscientes e sobre a qual os perpetradores construíram suas rarefeitas bolhas de shoppings com ar condicionado, condomínios fechados e ‘muito, muito exclusivos’ objetos de cristal”.[9]

Essa história que aparentemente permanece numa espécie de penumbra da consciência, e que a esta retorna nas imagens capturadas dessas performances (imagens essas que passam a fazer parte de um importante arquivo – Genocide and Genre –, o qual serviu de base a uma pesquisa de quatro anos do United Kingdom Arts and Humanities Research Council), são, como poderíamos lembrar com Georges Didi-Huberman, as lacunas dos eventos.[10] Ou seja, elas não são um arquivo, que por mais proliferante que possa ser nos dá apenas os vestígios dos fatos – e, nesse caso, os vestígios são insistentemente apagados pela narrativa oficial e tampouco conformam apenas uma representação dos massacres –, isto é, as imagens dos perpetradores repetindo mimeticamente como farsa seus atos de outrora. Em outras palavras, as imagens não se confundem com os assassinatos, mas, nessa performance dos perpetradores vivos, elas surgem como uma forma de vestígio dos atos que pretendiam não deixar vestígios. Ou seja, as imagens de Oppenheimer forjam, portanto, os vestígios: os perpetradores, na ânsia por firmar suas posições de dominadores e vencedores na história, entregam para os vencidos as memórias que eles não poderiam ter, a visão da morte desde o ponto de vista daqueles que causaram a morte. Assim, The Act of killing produz, na figura dos perpetradores, uma espécie de testemunhas invertidas.

Trazendo os termos de Furio Jesi – quando da análise das relações entre classe explorada e classe exploradora – para a leitura de The Act of killing, é possível dizer que o filme carrega uma eventual cognoscibilidade da história que se arma a partir não de uma desmitificação, mas de desmitologização[11] das narrativas que compõem a história oficial da Indonésia, lembrando que essas narrativas são as garantidoras da estrutura política que, celebrando a derrota e o massacre dos comunistas, continua a repetir-se ainda no presente nas estruturas de dominação. De fato, o filme não é uma tentativa, que seria vã, de suprimir o mito dos perpetradores, qual seja: a história oficial dos vencedores, ainda no poder, na Indonésia, segundo a qual os massacres foram espontaneamente concebidos pelo povo. Pelo contrário, com suas imagens críticas, o filme exibe o uso político do mito da espontaneidade do massacre pelo povo e, nessa exibição, produz a possibilidade de interrupção da repetição dessa história – desse mito tecnicizado ou desses materiais mitológicos, para usar os termos de Jesi – de subjugação, violência e destruição. Ainda nos termos do teórico italiano, podemos dizer que The Act of killing (e também The look of silence), funciona como um modo de exposição da máquina mitológica que produz a mitologia da espontaneidade do massacre: as narrativas oficiais são desditas – ou mostradas em sua falsidade – por meio da performance dos perpetradores, esta que pretende dar a imagem verdadeira dos verdadeiros agentes históricos. Com isso, o filme faz com que as imagens dos perpetradores, tal como eles próprios queriam que elas fossem produzidas, funcionem como um modo denunciar a falsidade da história oficial da Indonésia, isto é, seu caráter meramente narrativo, mitológico, no sentido de Jesi, operado como instrumento de legitimação política. Assim, podemos dizer que The Act of killing carrega a potência de uma dupla negação: nega de plano, com a própria imagem dos perpetradores, a história oficial das narrativas do governo e, ao mesmo tempo, ao dar aos atores-assassinos a liberdade imaginativa por meio da qual eles pretendiam exibir-se como heróis, nega aos perpetradores o direito, que na prática política daquele país ainda lhes é consentido (inclusive pelas mais altas instâncias políticas do país: vemos, no filme, o vice-presidente da Indonésia falando sobre a função necessária dos gangsters na política do país), de se colocarem nessa condição de heróis. O filme funciona, portanto, como um mecanismo que pode emperrar a máquina mitológica do governo indonésio.

Em The look of silence, por sua vez, podemos dizer que Oppenheimer arma um diagrama de sinal trocado. O filme é montado a partir da exibição das imagens dos perpetradores feitas pelo diretor entre 2004 e 2005 a Adi, irmão de uma das vítimas de 1965-66, que trabalha como uma espécie de oculista em um vilarejo de Sumatra. As imagens dos carrascos relatando como dilaceravam os corpos dos “comunistas”, como os faziam sofrer e, por fim, como os matavam, são exibidas a Adi que sempre se mostra reflexivo diante dessas imagens da barbárie. Além disso, o filme também traz os encontros de Adi com os perpetradores durante seu trabalho de oculista e, em tais encontros, por vezes o irmão da vítima questiona, dentre outras coisas, sobre o porquê de tais mortes, sobre como o exército estava por trás do recrutamento dos perpetradores. Nos embates, há sempre uma tensão entre carrasco e vítima que é exposta em termos de um eventual conflito ainda possível, pois os carrascos, considerando-se como vencedores e garantidores da possibilidade de algo como a Indonésia (lembro que sempre os ideais do Pancasila se fazem presentes), ainda se arrogam o direito da ameaça. Em uma das conversas, Adi pergunta: "Se eu tivesse vindo falar com você durante a ditadura militar, o que você teria feito?" Ao que o carrasco responde: "Não dá para imaginar o que teria acontecido. Sob a ditadura? Quanto tudo estava tenso? Não dá para imaginar o que teria acontecido.” Os filmes de Oppenheimer, no entanto, mostram que essa impossibilidade de imaginação faz parte do mecanismo da máquina mitológica oficial indonésia, que opera sublimando, por meio das narrativas, o massacre como uma espécie de única possibilidade de fundação de uma nova ordem (justamente o termo com o qual Suharto designa seu governo) para a Indonésia. Ou seja, os filmes exibem a impossibilidade narrada de imaginação com a própria imaginação dos perpetradores (seja na performaticidade de The act of killing seja na minúcia de detalhes – e há também o esboço do performatismo já nessas cenas – nas explicações sobre a morte do irmão de Adi em The Look of silence), em outras palavras, mais uma vez, os filmes, ao mostrar a máquina mitológica em funcionamento, apontam para as condições de possibilidade de desativação dessa máquina.

Um dos resultados dessa desativação é a demanda por justiça que desde as primeiras exibições dos filmes aparece com mais força no contexto internacional (tal como as petições junto à Anistia Internacional que estão disponíveis nos sites, mantidos por Oppenheimer, de divulgação dos filmes). Além disso, dessa necessária implicação jurídica dos responsáveis por massacres de seres humanos (digamos, uma implicação dentro do âmbito da petição por direitos na esfera das relações geopolíticas internacionais), os filmes nos possibilitam perceber, de modo paradoxal à demanda por justiça (posto que como crítica radical), que a violência perpassa, como um rizoma, esse inconsciente da história contemporânea. Isto é, em certa medida, os filmes nos dão condições de perceber como a lógica do estado é produtora de morte. Mas, em que sentido eles nos possibilitam isso?

Retomando a pequena digressão sobre a história indonésia, podemos perceber que diante da ameaça comunista de 1965-66, levantada e agitada como pandemônio ao ser conectada ao fracassado golpe de estado de primeiro de outubro de 1966, as Nações Unidas, naquele contexto, pouco se moveram, assim como pouco se moveram quando da ocupação, em 1975, e pelo mesmo governo Indonésio, do Timor Leste. Nesses contextos, a salvaguarda da paz estava no apoio daqueles que, então, tomavam o partido da nova ordem que pelo planeta se espalhava: a democracia nos moldes do capitalismo de mercado (ou, para dizer com Guy Debord, a sociedade espetacularizada). Naquelas ocasiões, a Indonésia de Suharto – a Indonésia que exibia filmes de gangsters – estava do lado da defesa das condições necessárias à implementação da almejada liberdade e, talvez por isso, a máquina mitológica indonésia tenha sido aceita no plano internacional com certa facilidade (e é preciso lembrar que esse valor, liberdade – free world – é aquele que ainda é apregoado como única possibilidade para um mundo melhor; e, em The act of killing, os perpetradores diziam, numa etimologia delirante, que gangster quer dizer justamente free man).

Quando da crise dos Tigres Asiáticos, em 1997-98, quando os mercados estavam em franco processo de desregulamentação, quando Suharto não é mais visto como um parceiro capaz de implementar as mudanças necessárias para que os valores da democracia – que, como lembra Jean-Luc Nancy, é uma palavra vazia que, em grande medida, se confunde com capitalismo – sejam implementados, a máquina mitológica do governo indonésio torna-se vulnerável (talvez pelos próprios interesses que são produzidos no âmbito da grande máquina mitológica da Democracia, do Capital, global). Nesse sentido, as intervenções no Timor Leste do final do século XX, ainda que importantes para o fim da violência do governo indonésio naquele país, também carregam, de modo ambivalente, elementos dessa mesma rizomática da violência. Melhor dizendo, nessa constituição da autodeterminação dos povos (um direito humano por excelência), ainda vislumbramos uma violência que sempre está do lado dos dominadores, ao lado da soberania (uma violência que põe o direito, para dizer com Walter Benjamin).

Na missão da ONU no Timor Leste, como disse, o Brasil esteve presente na pessoa de Sergio Vieira de Mello (como observador do Secretário Geral Kofi Annan) e do general de brigada Walter Braga Netto. Este último, cujo nome poderia soar como sendo o de um completo desconhecido até pouco tempo, aparece nos últimos três anos e sobremaneira nos mais recentes noticiários brasileiros: trata-se do general responsável pelas operações de segurança durante os jogos olímpicos do Rio de Janeiro e, em 2018, designado por Michel Temer para chefiar a intervenção federal no mesmo estado. Além disso, Braga Netto acaba de ser nomeado Ministro Chefe da Casa Civil do governo de Jair Bolsonaro.

Creio que não seja preciso me alongar nos detalhes das operações para a realização dos jogos olímpicos ou sobre o que aconteceu no Rio de Janeiro durante a intervenção militar do governo Temer (neste caso, porém, é preciso ressaltar que a letalidade policial atingiu o maior nível na história do RJ). Além disso, também não pretendo examinar o contexto da exoneração do agora ex-ministro da Casa Civil, Onix Lorenzoni, e os prognósticos de como será a atuação de Braga Netto. Lembro apenas que a máquina mitológica da política ocidental sempre se forjou (e isso já desde Hobbes) com base numa necessária salvaguarda da segurança dos cidadãos –a tão sonhada paz concordada no interior e entre os estados. Que esse modelo esteja se mostrando o que ele verdadeiramente é, um capitalismo de crise, uma stasis, uma guerra civil que se espraia pelo mundo, também parece ser evidente. O que gostaria de frisar é que essa máquina lubrifica suas engrenagens com sangue, que cada vez mais é demandado em volumes cada vez maiores (e é preciso salientar que, durante a intervenção militar no RJ, em 12/03/18, Braga Netto afirmou que a operação na Vila Kennedy[12], onde os moradores – obviamente todos pobres – passaram a ser fichados para chegarem a suas casas, funcionou como uma espécie de laboratório para a intervenção; ademais, durante a pandemia de Covid-19, Braga Netto tem sido chamado – sobretudo no noticiário econômico[13] – de bombeiro e gestor, alguém para diminuir o alarde, em meio às apostas de denegação do potencial mortífero da doença, obviamente, a alta aposta do atual governo na já secular dinâmica de violência da sociedade em que quem morre, sobretudo, são os que sempre vêm morrendo e cujas mortes já estão há muito naturalizadas – aos que engrossarão as estatísticas desses que sempre morrem, a máquina mitológica sacrificial se encarregará de legitimar). Em outras palavras, a deglutição de uma máquina por outra parece dar a tônica da constituição de nossas mitologias políticas – e talvez hoje estamos assistindo à mais devastadora das máquinas mitológicas em funcionamento: o neoliberalismo da era do capitalismo informacional, o qual nos convence, com suas sedutoras narrativas de segurança, empreendedorismo e liberdade, de que nada pode fazer sentido fora dele. Nesse sentido, e pode parecer até mesmo sórdido o que digo, uma vez que a máquina mitológica da narrativa histórica oficial da Indonésia já pode ser absorvida pela máquina mitológica do capitalismo global em sua inteireza, torna-se possível revolvê-la sem maiores danos à legitimação da nova ordem que hoje, mais do que nunca, se faz global (e, no caso brasileiro, nosso novo normal está na cotidiana quantidade de absurdos bradados pelos governantes e replicados, em rede, por sujeitos que, como baratas adoradoras de inseticida, são eles mesmos as vítimas daqueles absurdos).

Diante desse cenário em que parece não haver – e não há – nenhuma saída, nenhum fora possível, os filmes de Oppenheimer nos colocam a pergunta: como ainda resistir? No caso do diretor, diante da brutalidade do apagamento de vidas e de suas memórias chancelado por uma narrativa oficial, a exposição brutal do mecanismo da maneira como esse apagamento e chancela funcionaram e funcionam. O gesto é apelativo, mas ainda assim é um modo, ainda que pequeno, não de tentar uma melhora do mundo, mas, como diria Pasolini, de tentar, com todas as forças, impedir que ele piore.


[1] Sobre o relatório Brahimi cf. http://www.un.org/en/events/pastevents/brahimi_report.shtml

[2] Cf.: BRACEY, Djuan. O Brasil e as Operações de Manutenção da Paz da ONU: os casos do Timor Leste e do Haiti. In.: Contexto Internacional. v. 33, n. 2. Julho/dezembro de 2011. Rio de Janeiro: Puc-Rio. pp.: 316-331.

[3] Um dos comandos das Forças Especiais era chefiado por Probowo Subianto, filho do ex-ministro da economia de Suharto (Sumitro Djojohadikusumo: responsável pela formação da "Berkeley mafia", a formação de economistas nos EUA, estes que, durante os anos do New Order, seriam os responsáveis pela implementação de uma política econômica de abertura aos mercados internacionais), que, em 1985, fora treinado pelo Exército Norte-Americano em Fort Benning. Cf.: https://www.washingtonpost.com/wp-srv/inatl/longterm/indonesia/stories/rights052398.htm Em 2014, Probowo se candidata a presidente da Indonésia, tendo perdido a eleição para o atual presidente Joko Widodo; ele também foi responsável pela operação do exército que causou a morte de 4 estudantes universitários em 1996, fato que levou à queda de Suharto.

[4] Tanto que em Oxford encontra-se arrolado no plano de estudos de "Genocídios no século XX” – http://www.oxfordbibliographies.com/view/document/obo-9780199743292/obo-9780199743292-0105.xml –, assim como na Yale University: https://www.washingtonpost.com/wp-srv/inatl/longterm/indonesia/stories/rights052398.htm

[5] Benedict Anderson e Ruth T. McVey escrevem o que ficaria conhecido como Cornell Paper, no qual questionam as explicações para o golpe dadas pelas autoridades oficiais bem como pela CIA. Cf.: ANDERSON, Benedict; MCVEY, Ruth T. (with the assistence of Frederick T. Bunnell) A preliminary analysis of the October, 1, 1965, Coup In Indonesia. Ithaca, New York: Cornell University, 1971.

[6] OPPENHEIMER, Joshua. Backgroud of "The act of killing”, disponível em: http://theactofkilling.com/background/ (acesso: 10/03/2018)

[7] Idem.

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem queima. Curitiba: Medusa, 2018. Trad.: Helano Ribeiro. p. 28.

[11] JESI, Furio. Spartakus. Simbologia da revolta. São Paulo: N-1. 2018. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko

[12] Cf.: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/03/so-acao-da-policia-nao-basta-contra-violencia-afirma-interventor-no-rj.shtml e https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/02/moradores-deixam-comunidades-apos-serem-fotografados-em-acao-do-exercito.shtml

[13] Cf.: https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/04/06/discreto-braga-netto-atua-como-bombeiro-e-gestor.ghtml
 
*** Este texto é uma versão modificada do texto que foi apresentado no 1º Colóquio Imagens de traumas, em 2018 (fruto do projeto de mesmo nome entre a UFPR e a Universidade de Valência). A primeira versão, de 2018, deverá compor o livro "Artes & Violências" [org.] Rosane Kaminski, Vinícius Honesko e Luiz Carlos Sereza (São Paulo: Intermeios, 2020 - prelo). 
 
Imagem: Cena de The Act of Killing.