Nós sempre escrevemos a partir da encarnação da alma, mas ela já tinha acontecido, e não por nós, quando nós entramos na poesia.
O poeta que escreve se dirige ao Verbo e o Verbo tem suas leis. Está no inconsciente do poeta crer automaticamente nessas leis. Ele se crê livre mas ele não o é.
Há algo atrás de sua cabeça, ao redor das orelhas de seu pensamento. Algo está em germe na sua nuca, onde já estava quando ele começou. Ele é o filho de suas obras, talvez, mas suas obras não são dele, pois o que era dele na sua poesia não foi ele que nela tinha colocado, mas esse inconsciente produtor da vida que o tinha designado para ser seu poeta e que ele não tinha designado. E que nunca estava à sua disposição.
Eu não quero ser o poeta de meu poeta, desse eu que quis me escolher poeta, mas o poeta criador, em rebelião contra o eu e o si-mesmo. E me lembro da rebelião antiga contra as formas que vinham até mim.
É pela revolta contra o eu e o si-mesmo que me livrei de todas as más encarnações do Verbo que sempre foram, para o homem, um compromisso de covardia e de ilusão, de não sei qual fornicação abjeta entre a covardia e a ilusão. Eu não quero um verbo vindo de não sei qual libido astral e que foi completamente consciente nas formações de meu desejo em mim.
Há nas formas do Verbo humano não sei qual operação de voracidade, a auto-devoração de rapina em que o poeta, limitando-se ao objeto, vê-se comido por esse objeto.
Um crime pesa sobre o Verbo feito carne e o crime é o de ter admitido isso. A libido é um pensamento de animal e são todos esses animais que, um dia, metamorfosearam-se em homens.
O verbo produzido pelos homens é a ideia de um pervertido enterrado pelos reflexos animais das coisas e que, pelo martírio do tempo e das coisas, esqueceu que o tínhamos inventado.
O pervertido é aquele que come seu si-mesmo e quer que seu si-mesmo o nutra, procura no seu si-mesmo sua mãe e quer possui-la. O crime primitivo do incesto é o inimigo da poesia e o assassino de sua imaculada poesia.
Eu não quero comer meu poema, mas quero doar meu coração a meu poema e o que é meu coração ao meu poema. Meu coração é o que não é meu. Dar seu si-mesmo a seu poema é arriscar também ser violado por ele. E se eu sou Virgem para meu poema, ele deve permanecer virgem para mim.
Eu sou esse poeta esquecido, que se viu cair na matéria um dia e a matéria não me comerá.
Eu não quero esses reflexos envelhecidos, consequência de um antigo incesto vindo de uma ignorância animal da lei Virgem da vida. O eu e o si-mesmo são esses estados catastróficos do ser em que o Vivente se deixa aprisionar pelas formas que percebe de si. Amar seu eu é amar um morto e a lei do Virgem é o infinito. O produtor inconsciente de nós-mesmos é aquele de um antigo copulador que se entregou às mais baixas magias e que retirou uma magia da infâmia que há em se reduzir si-mesmo a si-mesmo sem fim até fazer sair um verbo do cadáver. A libido é a definição desse desejo de cadáver e o homem em queda é um criminoso pervertido.
Eu sou esse primitivo descontente com o horror inexpiável das coisas. Eu não quero me reproduzir nas coisas, mas quero que as coisas se produzam por mim. Eu não quero uma ideia do eu no meu poema e nele não quero me rever.
Meu coração é essa Rosa eterna vinda da força mágica da Cruz inicial. Aquele que se crucificou Nele-Mesmo e por Ele-Mesmo jamais voltou a si-mesmo. Jamais, pois esse si-mesmo pelo qual sacrificou Ele-Mesmo, também a este ele deu à Vida após o ter forçado em si-mesmo a tornar-se o ser de sua própria vida.
Eu quero ser para sempre este poeta que se sacrificou na Cabala do si para a concepção imaculada das coisas.
Antonin Artaud. Révolte contre la poésie. In.: Oeuvres. Paris: Gallimard, 2004. pp. 937-938. (trad.: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Antoni Artaud. Autorretrato. 1947