quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Dynamis



Só então uma potência que tanto pode a potência como a impotência é, então, a potência suprema. Se toda potência é simultaneamente potência de ser e potência de não ser , a passagem ao ato só pode acontecer transportando (Aristóteles diz “salvando”) no ato a própria potência de não ser. Isso significa necessariamente que, se é próprio de todo pianista tocar e não tocar, Glenn Gould é, no entanto, o único que pode não não tocar, e aplicando a sua potência não apenas ao ato, mas a sua própria impotência, toca, por assim dizer, com a sua potência de não tocar. Face à habilidade, que simplesmente nega e abandona a própria potência de não tocar, a mestria conserva e exerce no ato não a sua potência de tocar (é esta a posição da ironia, que afirma a superioridade da potência positiva sobre o ato), mas a de não tocar. Em De Anima, Aristóteles anunciou sem meios-termos esta teoria, precisamente a propósito do tema supremo da metafísica. Se o pensamento fosse, de fato, apenas potência de pensar este ou aquele inteligível, então – argumenta Aristóteles – ele desapareceria desde logo no ato e ficaria necessariamente inferior ao próprio objeto; mas o pensamento é, na sua essência, potência pura, isto é, também potência de não pensar e, como tal, como intelecto possível ou material é comparado pelo filósofo a uma pequena tábua de escrever na qual nada está escrito (é a célebre imagem que os tradutores latinos nos restituem com a expressão tabula rasa, ainda que, como observavam os antigos comentadores, se devesse falar antes de rasum tabulae, isto é, da camada de cera que reveste a tábua e que o estilete risca). É graças a esta potência de não pensar que o pensamento pode virar-se para si próprio (para a sua própria potência) e ser, no seu auge, pensamento do pensamento. Neste caso, o que ele pensa, no entanto, não é um objeto, um ser-em-ato, mas essa camada de cera, o rasum tabulae, que não é mais do que sua própria passividade a sua pura potência (de não pensar): na potência que se pensa a si própria, ação e paixão identificam-se e a tábua de escrever escreve-se por si ou, antes, escreve a sua própria passividade. O ato perfeito da escrita não provém de uma potência de escrever, mas de uma impotência que se vira para si própria e, deste modo, realiza-se a si como ato puro (a que Aristóteles chama de intelecto agente). Por isso, na tradição árabe, o intelecto agente tem a forma de um anjo, cujo nome é Qalam, Penna, e cujo lugar é uma potência imperscrutável. Batleby, isto é, um escrivão que não deixa simplesmente de escrever, mas “prefere não”, é a figura extrema desse anjo, que não escreve outra coisa do que sua potência de não escrever.





AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. (Tradução Antônio Guerreiro). Lisboa: Editorial Presença, 1993. pp. 34-35. Imagem: Glenn Gould.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Imagens de mulher II


Entre a beleza e a sensualidade existe uma diferença (uma diferensa, para os derridianos). Uma mulher a caminhar pode resplandecer sua beleza, carregar as dobras do tempo que lhe formam as formas belas, iluminar seu caminho com as luzes e cores de seu corpo, deixar um rastro de perfume que destoe dos cheiros à volta. Porém, nada disso pode ser dito sensualidade. Do serpentear do corpo, do movimento roubado às serpentes e nomeado, como fizera o ser barroso diante das coisas que o deus absconditus havia criado, a mulher só pode ser sensual, ter (uma apropriação do inapropriável) sua sensualidade como algo que não pode ser dito uma qualidade (não há o predicado "ser sensual"). Não há como dizer, num discurso significante, a sensualidade de uma mulher; não há como uma mulher dizer-se sensual. Aquele "q" que atrai o olhar, aquela inocência-culpada (da mesma ordem do par lacaniano amor-ódio) do corpo que passa serpenteando como se o tempo lhe fosse um adereço, parece ser sempre algo que escapa ao que pode ser dito, ao que pode ser compreendido. Não parece haver uma conquista da sensualidade; não parece haver uma consciência da sensualidade. Uma mulher pode saber-se bela, pode ter consciência de sua beleza, porém nunca pode conseguir compreender a própria sensualidade, nunca pode saber (ter ciência dos predicados de sua existência) até que ponto seu corpo pode exalar aquele "q" que é capaz de fazer calar, de fazer esbarrar as bordas da linguagem (como diria Derrida). Hoje, nos tempos do alto capitalismo (pernicioso ao ponto de tudo pensar saber e compreender, para então esse tudo vender) parece que toda sensualidade pode ser descrita, escrita, no corpo, como se fosse apenas uma característica (um predicado) de um corpo que jaz sob os céus da história (um simples dado constatável, um algo apreensível pela linguagem). Porém, diante da beleza do corpo feminino, talvez o único elemento de teologia negativa em toda esta malfadada tentativa de texto (que é só pre-texto), seja a sensualidade um post-scriptum: uma assinatura indecifrável que, entretanto, permanece ali, sempre por ser escrita sem jamais poder ser escrita, sem jamais poder ser dita na linguagem; aquela mulher é sensual na medida em que continua sensual, em que a ela não escapa a própria (inapropriável) sensualidade. Lançada à existência, aos ventos do tempo histórico, uma mulher sensual (como, em certa medida, todo corpo sensual) é sempre inconsciente (como é inconsciente - é incapaz de dizer - quem a vê) de um segredo que seu corpo conhece em todos os pormenores.

Imagem: Agostino Carracci. As três Graças. Städelsches Kunstinstitut, Frankfurt

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Carta impossível



If you don't mind a ghost in the house it is all
right, but now I have told you about it.

Para minha destinatária impossível.

Querida, por pouco que não lhe envio por engano um papel de carta em branco. Seria um ato falho? Ou, melhor, talvez teria sido minha vontade de lhe enviar a minha mallarmaica blanche agonie? Tudo, querida, a não ser nossas impróprias impossibilidades, é da ordem da possibilidade. Talvez a carta em branco poderia ser mais lúcida do que esta; aliás, é óbvio que a carta em branco seria mais lúcida, pois estaria plena do fantasma (este brilho que é luz) que, em vez dos grammata - estes sinais da escrita, mas também da voz -, deixaria para você tão somente um brilho puro do nada dizer (e mesmo com tantas possibilidades, só me restaram os condicionais...). Porém, querida, ao contrário do que você poderia pensar, não há nada de mais escuro do que esse brilho do fantasma. É o fantasma deus, querida, é o fantasma deus. Já o barroco João da Cruz, lendo o velho Aristóteles, dizia que para o intelecto unir-se a deus seria necessário ficar cego nos caminhos a serem percorridos e, para isso, bastaria fixar o olhar na luz divina, nas coisas altas e luminosas. Mas acho que entendo seus desejos de abstinência de luz, pois acho que vi o fantasma de muito perto quando o colocava no envelope que teria chegado até você e nenhuma de minhas retinas se queimou. Apaguei a brancura do fantasma com o negrume da baixeza destas letras, destas palavras. E talvez você me entenda lendo esta carta só com os olhos, mas ouvindo o que você acredita ser a minha voz; ou talvez, nessa operação um tanto quanto arriscada, um completo sem sentido pode lhe causar risos e, aí sim, penso que talvez possa ter chegado até você, travestida de negrume, a minha blanche agonie.

Do seu remetente impossível.

p.s.: não consegui evitar, mas a epígrafe do Oscar Wilde talvez seja apenas o eco da minha agonia branca...
p.s.II: como em tempo evitei o envio do fantasma em branco, achei por bem escrever-lhe neste postal com o grande fantasma pintado pelo Tiziano...

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Tempos meus


O tempo dos ventos fortes, dos tempos torpes, das musas estilhaçadas. Hoje foi como abrir a cortina do quarto de hóspedes pela primeira vez em anos, como que a sentir o cheiro velho, ocre, nefasto, que vinha da fricção das corrediças da janela já há muito emperrada. Esperava alguém para oferecer a cama, esperava a visita anunciada pela quiromante, que traria novamente o cheiro do outono, das flores secas, das folhas amarelas. A irremediável sensação de sentir o tempo correndo em minhas veias vinha em conjunto com o vento e a luz da manhã que invadia aquele quarto de decoração kitsch, cujas paredes armazenavam fungos testemunhas dos amantes que naquela velha cama de viúva (e os nomes populares às vezes salvam-nos das mazelas dos detalhes técnicos) se deitaram e, entorpecidos, amaram-se só por um instante. E o passado, à luz do sol-centauro de dezembro, cintilou. Quírion, tu que tanto zelaste por Jasão, não conseguiste fazê-lo ver que toda sua razão, toda sua destreza em tomar o velo de ouro, não seria páreo para a irracionalidade daquela mãe distante pela qual o tolo argonauta se apaixonara; tu que te desdobras entre o animal e o homem, entre a ebriedade e a sobriedade, entre a cultura e a barbárie, sabes, desde sempre, que se desdobrar é inútil e que o tempo de uma vida é a coleção de todos os tempos possíveis; nada há de puro, senão o puro contágio entre tudo. É, grande centauro, mesmo teu pai - a quem os grosseiros romanos chamavam Saturno e lhe dedicavam um dia de homenagem, o mesmo dia em que o deus absconditus, também das imediações do Mediterrâneo, escolheu para descansar após ter criado um universo - seria incapaz de sair puro dos ciclos de tempo que aquelas corrediças mal engraxadas fizeram-me entrar; é, Quírion, os anéis que prendem teu pai mostram o paradoxo por excelência: a infinitude do tempo. E foi, penso agora - com a memória contagiada pelos cheiros quase nauseabundos e pelo frescor da manhã centáurica -, naquele quarto de hóspedes que talvez tenha ficado trancafiado um tempo meu, o qual, apenas neste instante - e, por isso, sempre efêmero -, sai para passear à luz do sol e reencontrar, com cheiros e imagens, outros tempos meus que à porta daquele quarto tanto bateram querendo entrar...

Imagem: Anônimo Flamengo. Painel com Centauro. 1160. Musée du Louvre, Paris.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Outra pornopopéia



O polivalente Odisseu não aniquilou a sangue-frio os pretendentes de Penélope


Por desejarem sua morte, seu ouro, seu vinho, seu reinado, sua Penélope


Em doze anos distante de Ítaca, derivando no mar o esposo de Penélope


Em dez noites de cada mês, depois da fiel dedicação ao serão, oh não, Penélope!


Não dormia, não destecia.





Imagem: Penelope and her suitors - J. W. Waterhouse

domingo, 11 de dezembro de 2011

Creio



Descrever a mentira é mentir novamente,
é deixar com que tudo o que se crê verdade
no fundo, creia-se também e integralmente,
o mais puro desdobrar de simples mentiras.

Levantar-se da cama com os olhos úmidos,
chorar novamente o choro já derramado.
Como podem tantas lágrimas retornarem?
Como posso descrever as minhas mentiras?

Cansado dos abusos da verdade, corro
para um tempo no qual toda e qualquer mentira,
desdobrada e fraudada na simplicidade,
é tão somente descrita como verdade.

Eu creio.

Imagem: Pieter Bruegel. Torre de Babel. 1563. Kunsthistorisches Museum, Vienna

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Outro poema de Toboso




Chufa marota inscrita em terracota sevilhana de data incerta, encontrada em mercado de pulgas do Largo Arouche

Nas ilhas de Alcova sou um mero Bloom, um homérico nos tempos do exilado dia
Visitam-me, juntas, despidas, tesudas*: Circe, Calipso e Penélope rendeira
Despacho libações a Zeus, mas oxalá Dionísio-Exu me seja benevolente
Faça-me, demiurgo Freud, FALAR, FALAR, FALAR, bastante...
E não me lembrem de Dulcinéia, a camponesa brejeira,
Estou farto de histórias de cavalaria!


*compatriotas de Teseu.


Imagem: As senhoritas de Avignon - Pablo Picasso

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O sentimento da história



Caro Lizzani,

estou de acordo com o que dizes; poderia mesmo te poupar desta resposta, na realidade. Se te respondo, faço-o de modo pretextual. Portanto: é verdade. Por sua natureza, o cinema não pode representar o passado. O cinema representa a realidade por meio da realidade: um homem por meio de um homem; um objeto por meio de um objeto. Em certo modo, inexato, habitual, pode-se mesmo dizer que o cinema, como langue, é por si só naturalista (um "infinito plano-sequência", já o chamei). Portanto, se quero te representar em um filme, Carlo Lizzani, eu te represento por meio ti mesmo; se, em seguida, quero te representar por meio de um ator "que te interprete", posso talvez te trair, mas não o espírito da época que tu, o ator e eu vivemos em comum. A capacidade de se transfigurar do ator é um momento superior; antes de tudo vem da possibilidade objetiva do cinema - enquanto langue, código, sistema de signos - de representar um momento histórico (o atual) por meio de coisas, fatos, personagens atuais.
Assim, eu jamais teria podido representar Medeia: não só isso; mas nem mesmo por meio de nenhuma outra mulher do tempo de Medeia que a interpretasse. Para representar Medeia chamei Callas: o que é uma falsidade. Jamais Callas - como de resto, em menor medida, as pedras e o mar de uma paisagem de hoje - teria podido regredir no tempo, "ser Medeia", isto é, a verdade, a autenticidade. A câmera (nos filmes de autor) "rejeita" os falsos; desmascara as maquiagens; evidencia cada mínimo erro; e quanto à má fé, a faz pagar até o fim, sem nenhum instante de hesitação ou de piedade. Isso o sei bem. Portanto, nos meus filmes históricos nunca tive ambição de representar um tempo que não existe mais: se tentei fazê-lo, foi por meio da analogia: isto é, representando um tempo moderno de algum modo análogo àquele passado.
Há ainda lugares no Terceiro Mundo onde acontecem sacrifícios humanos; e existem ainda tragédias da inadaptabilidade de uma pessoa do Terceiro Mundo ao mundo moderno: é esse persistir do passado no presente que se pode representar objetivamente. É verdade, assim, que o cinema (Barthes-Jakobson) é essencialmente metonímico; mas no caso de um filme histórico de autor, ele é também, e totalmente, metafórico. De fato, o passado torna-se uma metáfora do presente: em uma relação complexa, pois o presente é a integração figural do passado. Como construir essa metáfora? Por meio tanto da invenção poética e quanto das referências culturais: o limite baixo de todo filme histórico de autor é o maneirismo (veja no meu filme a reconstrução de uma obra de bem estar meta-histórica, uma Corinto alexandrina "pensada" com base na pintura maneirista do Quinhentos etc.). A invenção poética (suponho) teve um melhor desempenho na primeira parte do filme, na qual o sacrifício humano, além de ser uma realidade ainda objetiva, é um "lugar do espírito" (o espírito religioso, e a psiqué, com seus sadomasoquismos).
Assim, caro Lizzani, procurar no cinema a "representação do passado" é tarefa injustificada, porque ou tal representação é falsa ou totalmente maquiada (filmes comerciais) ou não pretende ser real (nos filmes de autor) mas, repito, simplesmente metafórica. Pois, sabe-se, o "sentimento da história" é uma coisa muito poética e pode ser suscitado dentro de nós e comover-nos até as lágrimas por qualquer coisa, porque o que nos chama a voltar atrás é tão humano e necessário como o que nos impulsiona a andar adiante.

Pier Paolo Pasolini. Il Sentimento della Storia. In.: Saggi sulla letteratura e sull'arte. II. a cura di Walter Siti e Silvia De Laude. Milano: Arnoldo Mondadori, 2008. pp. 2818-2820. (O texto foi publicado pela primeira vez em "Cinema Nuovo, XIX, 205, maggio-giugno 1970") - Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

Imagem: Eugène Delacroix. Medea matando seus filhos. 1838. Musée du Louvre, Paris.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A cidade e a poesia


Caproni é o mais cidadão dos poetas italianos do século XX. Em nenhum outro como nele a poesia vive integralmente da cidade e na cidade. Montale e Penna, nos quais também vibra uma tensa atmosfera metropolitana, permanecem indissoluvelmente ligados um à concisa paisagem lígure e o outro ao doce campo úmbrio. A poesia de Caproni é, ao contrário, inexoravelmente cidade. E não somente Gênova ("eu sou feito de Gênova!") e Livorno, mas também, de modo mais submerso e quase sufocado, a nunca nomeada Roma - não a Roma monumental e histórica, mas a semi-periférica e impura dos bairros nos quais por muito tempo o poeta viveu: Monteverde (nas duas contíguas variantes ditas "velho" e "novo"). E quando, exatamente no fim, um desabitado campo começa a aparecer sempre mais áspero e noturno na sua poesia, acontece concomitantemente ao romper-se da maravilhosa tessitura da métrica caproniana. É a sua própria poesia que se desfaz e se perde nas angustiantes paisagens do Conte e de Res amissa. Assim, Caproni viveu exemplarmente, depois do juvenil sonho genovês, o fim da cidade na fase do capitalismo que começa nos últimos anos da década de setenta e que estamos ainda, sem visíveis êxitos, vivendo.

Giorgio Agamben. La Città e la Poesia. In.: Categorie Italiane. Studi di poetica e di letteratura. Roma-Bari: Laterza, 2010. p. 155. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Giorgio Caproni (fotografia de Dino Ignani)