O filósofo Jean-Luc Nancy explica a necessidade da arte para ir além da significação.
O grande filósofo Jean-Luc Nancy, nascido em 1940, é um dos espíritos mais abertos de nossa época. Marcado por sua amizade com Jacques Derrida, durante muito tempo professor na universidade de Strasbourg, ele publicou muitos livros e artigos, em particular sobre a arte. Seu pensamento vai em direção do “sentido da existência”, que para ele é um horizonte inacessível (“O mundo não repousa sobre nada e está aí seu sentido mais vivo”), e também em direção da “existência do sentido”, em particular por meio da arte. “O fato de que esta faça sentido, isto é, que a arte circule entre as pessoas, ou entre o objeto e a pessoa. Não há sentido para um só.” Ele fala de uma “finalidade do sentido”, retomando a expressão de Kant sobre o julgamento estético.
Para ele, o pensamento é, então, levar-se às extremidades da significação. A significação sempre para algo, uma vez que o pensamento abre as possibilidades do sentido.
Seu trabalho também passa pelo corpo, dentre outros o seu, uma vez que vive, desde 1991, com um coração transplantado. Jean-Luc Nancy com frequência colabora com artistas, como a coreógrafa Mathilde Monnier ou Tomas Hirschhorn. Ele acaba de escrever para o catálogo da exposição Anselm Kiefer, na BNF, e Olafur Eliasson pediu-lhe para ajudar em sua exposição em Versalhes neste verão. No último dia 07 (07/04/16), ele esteve no Kaaitheater, em Bruxelas, para falar do “pensamento da arte”. Nós o encontramos nessa ocasião.
De onde vem sua ligação com a arte?
Sempre fui fascinado pelas imagens, mas foi no começo dos anos 70 que tive o “clique”, quando um pintor que não conhecia, François Martin, me pediu para escrever sobre seu trabalho e para dar nome a uma série de desenhos a lápis. Escolhi a palavra “stencil”. E isso verdadeiramente despertou algo em mim.
Há uma ligação entre filosofia (pensamento) e arte?
Há uma ligação entre filosofia (pensamento) e arte?
No século XX não encontramos nenhum filósofo que não tenha se interessado pela arte: Sartre, Foucault, Lyotard, Derrida. Barthes começou fazendo teatro. Isso é devido a uma dupla conjunção; a arte entrou no século XX num questionamento sobre ela própria. Não há uma só obra que não se interrogue ao mesmo tempo sobre o que é a arte. A arte se vira, então, para a filosofia para reencontrar o sentido daquilo que não conhecemos. Em sentido inverso, a filosofia sempre se interessou pela arte. Nietzsche nela via uma função de proteção “contra o abismo da verdade”. “A arte nos é dada para nos impedir de morrer pela verdade.” A arte apareceu como uma sequência possível da morte de Deus e a perda de segurança do logos. Leibniz dizia ainda que “Nada é sem razão”, mas rapidamente vimos que o mundo perdeu sua razão. Hegel reivindicava uma superação da linguagem. E como, ao mesmo tempo, a arte perdia seu papel de representação da Verdade, aí havia um encontro inevitável.
O diretor Romeo Castellucci considera que os filósofos e os artistas estão na borda de nosso barco humano e tentam esclarecer as trevas que nos circundam, mas o que descobrem são, ainda, trevas.
O diretor Romeo Castellucci considera que os filósofos e os artistas estão na borda de nosso barco humano e tentam esclarecer as trevas que nos circundam, mas o que descobrem são, ainda, trevas.
Eles descobrem que além da bruma há ainda a bruma, mas, ao menos, eles nos evitam a neblina total. A arte, entretanto, não pode ser uma muleta do vazio de sentidos. Atingimos um pico de non-sense quando Ai Weiwei diz “todo ato de resistência é um ato estético”, invertendo a frase que dizia que todo ato estético é um ato de resistência.
O que é a arte então?
O que é a arte então?
A arte se coloca ao lado da linguagem, ou é atravessada pela linguagem (literatura, poesia), para expor o sentido, fora da significação. A linguagem nos leva à borda extrema onde não podemos mais nomear. A arte está ali e pode nos levar para além. Ela mostra que há uma dimensão fora da linguagem. Eu discutia com o artista Barcelo, que é apaixonado pela gruta Chauvet e suas pinturas de animais. Todas as explicações funcionais dessas pinturas das cavernas são pouco convincentes. Nelas o homem sem dúvidas mostrou, com esses animais, seres viventes que, entretanto, estando fora da linguagem, eram inquietantes para ele. Eles eram um chamado para o desconhecido, o não conhecível.
É chocante que na França a FN (Frente Nacional) tomou para si a arte atual.
É chocante que na França a FN (Frente Nacional) tomou para si a arte atual.
A FN se refere à verdade dada, à França, ao catolicismo tradicional. Ela se aproxima de uma arte figurativa que exprime essas verdades e rejeita, pois acha inquietante, tudo o que provém da incerteza, uma vez que a arte designa o que vale para além da significação. Ora, para mim, o critério da arte é não se reduzir à significação, àquilo que aparece de pronto e é, além disso, nomeado com o título de obra. A tal critério, ajusta-se a necessidade de uma forma autônoma, como Kapoor criando sua grande estrutura uterina vermelha no Grand Palais.
As noções de belo e de arte evoluem.
As noções de belo e de arte evoluem.
Graças aos artistas. Proust já dizia que é o escritor que forma seu público. Os artistas fazem evoluir. Poussin dizia que Caravaggio tinha vindo ao mundo para destruir a pintura.
O corpo está também na borda da significação.
O corpo está também na borda da significação.
Sim, aliás, o corpo está presente em todas as artes. O esporte e o erotismo são maneiras de abrir a outros sentidos. A diferença é que o erotismo remete à intimidade enquanto na arte o desejo e o gozo são dirigidos aos outros.
A arte é hoje uma nova religião?
A arte é hoje uma nova religião?
Há muito tempo que sacralizamos “a arte pela arte”. Não temos mais verdades, mais logos, mais fundamentos racionais, desconfiamos da racionalidade tecnocientífica que encena a comédia dos fins infinitos (desejar um telefone, depois um celular, depois um smartphone etc.). De todo modo, será preciso encontrar uma finalidade ou aprender a viver sem finalidade. Há finalidades que resistem obstinadamente: viver, fazer filhos e fazer arte. Teria sido possível deixar a arte decair, mas porque ela permanece tão preciosa para nós? Não é por causa do mercado da arte, “repugnante”, pois tal mercado existe desde sempre, lembremo-nos as fortunas que François Iº gastou para trazer Leonardo da Vinci a Amboise. Não, a arte sempre foi associada a um valor de exposição do sentido, além de seu valor de mercado ou de uso.
Entrevista publicada no jornal belga "La libre", em 16/03/2016. Disponível em: http://www.lalibre.be/culture/arts/jean-luc-nancy-l-art-pour-retrouver-du-sens-56e86fde35708ea2d3964b1f#08c51 (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Entrevista publicada no jornal belga "La libre", em 16/03/2016. Disponível em: http://www.lalibre.be/culture/arts/jean-luc-nancy-l-art-pour-retrouver-du-sens-56e86fde35708ea2d3964b1f#08c51 (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Tiziano. Anjo da anunciação. 1560. Galleria degli Uffizi, Firenze.