quinta-feira, 28 de abril de 2016

Jean-Luc Nancy: "A arte para reencontrar o sentido"


O filósofo Jean-Luc Nancy explica a necessidade da arte para ir além da significação.
O grande filósofo Jean-Luc Nancy, nascido em 1940, é um dos espíritos mais abertos de nossa época. Marcado por sua amizade com Jacques Derrida, durante muito tempo professor na universidade de Strasbourg, ele publicou muitos livros e artigos, em particular sobre a arte. Seu pensamento vai em direção do “sentido da existência”, que para ele é um horizonte inacessível (“O mundo não repousa sobre nada e está aí seu sentido mais vivo”), e também em direção da “existência do sentido”, em particular por meio da arte. “O fato de que esta faça sentido, isto é, que a arte circule entre as pessoas, ou entre o objeto e a pessoa. Não há sentido para um só.” Ele fala de uma “finalidade do sentido”, retomando a expressão de Kant sobre o julgamento estético.
Para ele, o pensamento é, então, levar-se às extremidades da significação. A significação sempre para algo, uma vez que o pensamento abre as possibilidades do sentido.
Seu trabalho também passa pelo corpo, dentre outros o seu, uma vez que vive, desde 1991, com um coração transplantado. Jean-Luc Nancy com frequência colabora com artistas, como a coreógrafa Mathilde Monnier ou Tomas Hirschhorn. Ele acaba de escrever para o catálogo da exposição Anselm Kiefer, na BNF, e Olafur Eliasson pediu-lhe para ajudar em sua exposição em Versalhes neste verão. No último dia 07 (07/04/16), ele esteve no Kaaitheater, em Bruxelas, para falar do “pensamento da arte”. Nós o encontramos nessa ocasião.

De onde vem sua ligação com a arte?  
Sempre fui fascinado pelas imagens, mas foi no começo dos anos 70 que tive o “clique”, quando um pintor que não conhecia, François Martin, me pediu para escrever sobre seu trabalho e para dar nome a uma série de desenhos a lápis. Escolhi a palavra “stencil”. E isso verdadeiramente despertou algo em mim.

Há uma ligação entre filosofia (pensamento) e arte?
 
No século XX não encontramos nenhum filósofo que não tenha se interessado pela arte: Sartre, Foucault, Lyotard, Derrida. Barthes começou fazendo teatro. Isso é devido a uma dupla conjunção; a arte entrou no século XX num questionamento sobre ela própria. Não há uma só obra que não se interrogue ao mesmo tempo sobre o que é a arte. A arte se vira, então, para a filosofia para reencontrar o sentido daquilo que não conhecemos. Em sentido inverso, a filosofia sempre se interessou pela arte. Nietzsche nela via uma função de proteção “contra o abismo da verdade”. “A arte nos é dada para nos impedir de morrer pela verdade.” A arte apareceu como uma sequência possível da morte de Deus e a perda de segurança do logos. Leibniz dizia ainda que “Nada é sem razão”, mas rapidamente vimos que o mundo perdeu sua razão. Hegel reivindicava uma superação da linguagem. E como, ao mesmo tempo, a arte perdia seu papel de representação da Verdade, aí havia um encontro inevitável.

O diretor Romeo Castellucci considera que os filósofos e os artistas estão na borda de nosso barco humano e tentam esclarecer as trevas que nos circundam, mas o que descobrem são, ainda, trevas.  
Eles descobrem que além da bruma há ainda a bruma, mas, ao menos, eles nos evitam a neblina total. A arte, entretanto, não pode ser uma muleta do vazio de sentidos. Atingimos um pico de non-sense quando Ai Weiwei diz “todo ato de resistência é um ato estético”, invertendo a frase que dizia que todo ato estético é um ato de resistência.

O que é a arte então?
 
A arte se coloca ao lado da linguagem, ou é atravessada pela linguagem (literatura, poesia), para expor o sentido, fora da significação. A linguagem nos leva à borda extrema onde não podemos mais nomear. A arte está ali e pode nos levar para além. Ela mostra que há uma dimensão fora da linguagem. Eu discutia com o artista Barcelo, que é apaixonado pela gruta Chauvet e suas pinturas de animais. Todas as explicações funcionais dessas pinturas das cavernas são pouco convincentes. Nelas o homem sem dúvidas mostrou, com esses animais, seres viventes que, entretanto, estando fora da linguagem, eram inquietantes para ele. Eles eram um chamado para o desconhecido, o não conhecível.

É chocante que na França a FN (Frente Nacional) tomou para si a arte atual.  
A FN se refere à verdade dada, à França, ao catolicismo tradicional. Ela se aproxima de uma arte figurativa que exprime essas verdades e rejeita, pois acha inquietante, tudo o que provém da incerteza, uma vez que a arte designa o que vale para além da significação. Ora, para mim, o critério da arte é não se reduzir à significação, àquilo que aparece de pronto e é, além disso, nomeado com o título de obra. A tal critério, ajusta-se a necessidade de uma forma autônoma, como Kapoor criando sua grande estrutura uterina vermelha no Grand Palais.

As noções de belo e de arte evoluem.
 
Graças aos artistas. Proust já dizia que é o escritor que forma seu público. Os artistas fazem evoluir. Poussin dizia que Caravaggio tinha vindo ao mundo para destruir a pintura.

O corpo está também na borda da significação.
 
Sim, aliás, o corpo está presente em todas as artes. O esporte e o erotismo são maneiras de abrir a outros sentidos. A diferença é que o erotismo remete à intimidade enquanto na arte o desejo e o gozo são dirigidos aos outros.

A arte é hoje uma nova religião?
 
Há muito tempo que sacralizamos “a arte pela arte”. Não temos mais verdades, mais logos, mais fundamentos racionais, desconfiamos da racionalidade tecnocientífica que encena a comédia dos fins infinitos (desejar um telefone, depois um celular, depois um smartphone etc.). De todo modo, será preciso encontrar uma finalidade ou aprender a viver sem finalidade. Há finalidades que resistem obstinadamente: viver, fazer filhos e fazer arte. Teria sido possível deixar a arte decair, mas porque ela permanece tão preciosa para nós? Não é por causa do mercado da arte, “repugnante”, pois tal mercado existe desde sempre, lembremo-nos as fortunas que François Iº gastou para trazer Leonardo da Vinci a Amboise. Não, a arte sempre foi associada a um valor de exposição do sentido, além de seu valor de mercado ou de uso.

Entrevista publicada no jornal belga "La libre", em 16/03/2016. Disponível em: http://www.lalibre.be/culture/arts/jean-luc-nancy-l-art-pour-retrouver-du-sens-56e86fde35708ea2d3964b1f#08c51 (tradução: Vinícius Nicastro Honesko) 

Imagem: Tiziano. Anjo da anunciação. 1560. Galleria degli Uffizi, Firenze. 


quarta-feira, 6 de abril de 2016

O coxinha-croissant


O coxinha que sonha em ser croissant vomita sua ira nas redes sociais ao lado da selfie no Arco do Triunfo. Ele acaba de visitar Paris e sente saudades das delícias do "velho mundo": a cidade do almanaque cerebral deste brasileiro não concebe leis antiterror, imigrantes afogados no mediterrâneo, acampamentos de refugiados, periferias pobres, sujas e violentas no coração da "civilização". O coxinha-croissant é um místico em busca de parques temáticos imaginários regados a cenários de blockbuster pseudo-cult, roupas cafonas, vinhos caríssimos ruins e muito fast-food gourmetizado. Bens culturais sob medida para otários colonizados. "Como é triste viver em um país subdesenvolvido, inculto e corrupto!", "que tragédia um ex-presidente metalúrgico", bradam os coxinhas-croissants, comendo "foi gras" com notas fiscais em nome de empresas e desviando muito em seus impostos de renda. O coxinha-croissant se sente humilhado por não poder mais vestir no estrangeiro a camisa da CBF (do morto-vivo José Maria Marin) depois dos 7 a 1 - culpa do PT! -, mas pode usar ressentidamente seu modelito na avenida Paulista, mesmo que seu gosto e formação possa às vezes destoar do coxinha-hotdog (que sonha viver em Miami e votar em Trump, apesar do senhor de cabelos pintados de loiro sonhar um dia ver os latinos enterrados em fossas comuns) ou do coxinha-coxinha modesto, cujo sonho é viver em Curitiba (a cidade de Beto Richa, a mais limpa e europeizada do Brasil). O coxinha-croissant é um devoto da religião de santos da PF, eles salvarão o Brasil, higienicamente! A PF, "única instituição que funciona no país", é a corporação que o coxinha-croissant tem intimidade quando renova seu passaporte ou precisa gentilmente pagar uma propina para poder entrar com mercadoria contrabandeada (a propósito, todos os coxinhas-croissants são brancos e fazem uso correto do vernáculo). A PF que conseguiu eficazmente combater o tráfico de armas, drogas e pessoas na fronteira brasileira. O bom-mocismo da PF que limpará a lama do atoleiro chamado Brasil. A PF que nos faz sonhar com Paris e com os voos da Air France. A PF e suas botas. O coxinha-croissant é um ordeiro adorador de botas. Um pacífico e refinado lambedor de botas. Un parfait lécheur. 

terça-feira, 5 de abril de 2016

Pequeno parágrafo sobre o amor IV



Certa vez o anti-poeta disse, com uma verdade própria, que a morte é um hábito coletivo. As vestes, os hábitos, portanto, que trajamos a cada manhã, com o primeiro rumor dos pássaros, envolve-nos por completo. O despertar do sonho - essa pequena morte travestida ora de paraíso ora de inferno -, o abrir de nossos olhos, é o convite para nos vestirmos, mais uma vez (e mais outra, outra...), com esse nosso hábito. Mas talvez o milagre do despertar e a cor dessa veste impossível de não vestir também sejam o caminho para nossa condição fundamental: somos seres amantes. Um filósofo italiano escreveu:
"Nós amamos porque morremos. Se não morrêssemos não amaríamos. Tanto é verdade que jamais amamos como no momento em que percebemos que a pessoa amada está para morrer. E por que a amamos? Porque sabemos que por mais esforços que façamos, por mais que tenhamos o desejo de iludir-nos, não podemos segui-la na morte. Nós a abandonamos ao seu destino: tampouco um pai pode seguir na morte um filho, e se por acaso o seguisse, por exemplo através do suicídio, não o segue de fato na morte, porque cada um morre sozinho. A minha morte não é a sua e, vice-versa, a sua morte não é a minha. E a morte não une, mas separa, para sempre. Só porque somos mortais somos capazes de amar. Não há experiência maior do que o amor por Deus, pela pessoa amada, pelos filhos, pelos sofredores... mas essa experiência é possível graças ao fato de existir a morte."
Morremos só, mas, ao mesmo tempo, caro filósofo, também um pouco juntos. Cada um que parte leva consigo um pedaço de nosso hábito e, assim, passamos a vida a remendar nossa veste coletiva com um pouco do tecido das vidas que vamos encontrando. Nesses encontros, partilhamos a vida com esses outros e, como que com linha e carretel em mãos, costuramos juntos, um ao outro, nosso hábito coletivo.


Imagem: Hieronymus Bosch. Jardim das delícias terrestres (detalhe). 1500. Museo del Prado, Madri.


segunda-feira, 4 de abril de 2016

Pequeno parágrafo sobre o lugar



Habitamos o tempo e sentimos o cheiro de nossa vida embolorada, alheia à matéria que compõe o espelho ao qual dirigimos nosso olhar e, ininterruptamente, ousamos dizer eu. A persistente vigília e alguns versos que caem de um livro tomado ao acaso zombam de nossa habitação: "Talvez o persistente trigo esconda um pouco da verdade / Talvez seja de Deus o nosso tempo // E a alegria é uma casa demolida". Seguimos a imagem do tempo, seguimos, portanto, esse eu tentando desmentir a fábula daquele cheiro que há pouco nos nauseava. "É a vida! É a vida!" poderia talvez gritar algum personagem ditirambo, ciente de que do passado o que verdadeiramente importa é o que se esquece. Mas uma luz brilhante nos cega e um verso apenas reverbera enquanto escrevemos o livro de nossas vidas: "a luz do futuro não deixa um só instante de nos ferir."

Imagem: Francis Bacon. 1946 Painting.