Uma obsessão pelos recônditos lugares onde se inventam biografias. Não há propriamente uma voz capaz de dizer a vida. E o que dizer da letra morta, do deslizar da pena pela folha em branco? O livro da vida é escrito numa língua sonhada (e já lembrava o velho Giorgio: "Não é o sonho, sempre, uma dimensão não além das línguas, mas entre as línguas e que, como tal, precisa de uma interpretação e de uma Deutung?"), porém, sempre a partir de um relance obsceno entre a vigília e o sono. Incomodar-se até a morte com a própria obsessão; despertar e levantar tentando deitar as letras no seu leito branco que é a página. E, como Proust, deleitar-se, como se a sensação nessas estâncias obscenas fosse um frêmito interminável: "(...) assim, quando acordava no meio da noite, e como ignorasse onde me achava, no primeiro instante nem mesmo sabia quem era; tinha apenas, em sua singeleza primitiva, o sentimento da existência, tal como pode fremir do fundo de um animal; estava mais despercebido que o homem das cavernas."
quarta-feira, 30 de janeiro de 2013
sábado, 26 de janeiro de 2013
A descida
Às vezes a sensação de que passamos a vida apenas aguardando uma morte digna causava-lhe repulsa. Por que esperar o inevitável? Qual os motivos das perguntas sobre a noite escura do nada? Tudo isso o confundia, fazia com que tivesse desejos de viver enclausurado, despido do contato com outros seres vivos. Roçando a própria barba com seus dedos, passava a manhã ainda deitado no seu quarto, observando através dos primeiros fachos de luz da manhã como as células mortas de seu rosto saltavam a cada passada de dedos. Por que pensar em esperar algo que já nos acompanha desde sempre? Por que crer em algo como a dignidade se esta era tão somente a máscara de cera que substituia o corpo já morto do rei nas pompas fúnebres? Como passar a vida sem esperar o inevitável?
Naquela manhã as angústias estavam ainda mais grosseiras do que de costume. Era como se estivesse pressentindo justamente a sua morte iminente, mas não queria se preocupar com isso. Queria era a possibilidade de perder-se das formas de espera, do encontro inevitável. Ora, pensava, se não há outra saída senão essa, porque os homens querem ser dignos diante dessa passagem pela qual tudo passa? E, se tudo por ali passa, como os homens não se envergonham por uma espera tão vil? Levantou-se da cama caminhando em direção à cozinha, onde pretendia cumprir seus ritos e entregar-se ao vício do café. Não tinha esperanças e, portanto, cumpria os ritos não como as destrezas de um sacerdote, o responsável - justamente por meio do rito - pela delimitação dos espaços sagrados e profanos, mas como um craqueiro coloca mais uma pedra no fundo de uma lata suja (e, pensando nisso, lembrou que toda manhã não lhe ocorria nada mais do que se deixar guiar por essas sevícias da consciência subjetiva - esse quase monstro do ocidente). Enquanto passava o café, lembrou de uma das epígrafes de um dos capítulos do livro que na noite anterior não o tinha deixado dormir: "A descida seduz/ como seduziu a subida./ Nunca a derrota é só derrota, pois/ o mundo que ela abre é sempre uma parada / antes/ insuspeitada".
O mundo da derrota, das perdas, era sim insuspeitado. Não que a derrota lhe interditasse a felicidade. Pelo contrário, não pensava na banalidade das vitórias cantadas, como se fosse possível vencer algo nesta vida, mas no ocaso das perenes esperanças. Era no fosso, onde a vida decorre, que pensava a abertura do mundo que cada derrota diária lhe proporcionava. E o cheiro do café lhe trazia a certeza da banalidade da vida, da visceralidade disso que, tolos, pensamos ser a dignidade. Ao sentar-se, tomando o café amargo, deu-se conta de que toda sua reflexão matinal era uma pantomima dos pensamentos do dr. Fausto. A manhã, portanto, resumia-se a um diálogo.
"Fausto: Primeiro irei interrogá-lo sobre o inferno. Digam-me onde é o lugar que os homens chamam de inferno?
Mefistófeles: Debaixo do firmamento.
Fausto: Está bem, mas onde?
Mefistófeles: Nas entranhas desses elementos, onde somos torturados e ficamos para sempre: o inferno não tem limites, não se localiza num só lugar; porque o inferno é onde estamos, e onde for o inferno, lá estaremos para sempre..."
Imagem: Eugène Delacroix. Fausto com Margarete na prisão (detalhe). 1828. Musée Eugène Delacroix, Paris.
O mundo da derrota, das perdas, era sim insuspeitado. Não que a derrota lhe interditasse a felicidade. Pelo contrário, não pensava na banalidade das vitórias cantadas, como se fosse possível vencer algo nesta vida, mas no ocaso das perenes esperanças. Era no fosso, onde a vida decorre, que pensava a abertura do mundo que cada derrota diária lhe proporcionava. E o cheiro do café lhe trazia a certeza da banalidade da vida, da visceralidade disso que, tolos, pensamos ser a dignidade. Ao sentar-se, tomando o café amargo, deu-se conta de que toda sua reflexão matinal era uma pantomima dos pensamentos do dr. Fausto. A manhã, portanto, resumia-se a um diálogo.
"Fausto: Primeiro irei interrogá-lo sobre o inferno. Digam-me onde é o lugar que os homens chamam de inferno?
Mefistófeles: Debaixo do firmamento.
Fausto: Está bem, mas onde?
Mefistófeles: Nas entranhas desses elementos, onde somos torturados e ficamos para sempre: o inferno não tem limites, não se localiza num só lugar; porque o inferno é onde estamos, e onde for o inferno, lá estaremos para sempre..."
Imagem: Eugène Delacroix. Fausto com Margarete na prisão (detalhe). 1828. Musée Eugène Delacroix, Paris.
segunda-feira, 21 de janeiro de 2013
Sobre a dificuldade de ler
Giorgio Agamben
Cada
um de vocês deve ter feito experiência daqueles momentos em que gostaríamos de
ler, mas não conseguimos, em que nos obstinamos folhando as páginas de um
livro, mas ele literalmente cai das mãos.
Nos
tratados sobre a vida dos monges, isso era, por excelência, o risco ao qual o
monge sucumbia: a acídia, o demônio meridiano, a tentação mais terrível que
ameaçava os homines religiosi, manifesta-se, antes de tudo, com a
impossibilidade de ler. Gostaria de sugerir-lhes prestar atenção nos seus
momentos de não leitura e de opacidade, quando o livro do mundo cai de suas
mãos, pois a impossibilidade de ler lhes diz respeito tanto quanto a leitura,
e, talvez, é tão ou mais instrutiva do que esta.
Há
uma primeira e mais radical impossibilidade de ler que, até não muitos anos,
era extremamente comum. Refiro-me aos analfabetos, esses homens muito
rapidamente esquecidos que há apenas cento e cinquenta anos eram, ao menos na
Itália, a maioria. Um grande poeta espanhol do século XX dedicou um livro de
poesias ao analfabeto, por quien yo escribo. É importante compreender o
sentido desse “para”[1]:
não tanto, ou não somente, “para que o analfabeto me leia”, visto que, por
definição, não poderá fazê-lo, quanto “no seu lugar”, como Primo Levi dizia
testemunhar por aqueles que no jargão de Auschwitz chamavam-se os muçulmanos,
isto é, aqueles que não podiam nem teriam podido testemunhar, pois, pouco
depois de seu ingresso no campo, tinham perdido toda consciência e toda
sensibilidade.
Gostaria
que vocês refletissem sobre o estatuto especial desse livro que, na sua
essência, é destinado a olhos que não o podem ler e foi escrito por uma mão
que, em certo sentido, não sabe escrever. O poeta ou o escritor que escrevem
para o analfabeto tentam escrever aquilo que não pode ser lido, colocam no
papel o ilegível. Mas, exatamente por isso, tornam a sua escritura mais
interessante do que a que foi escrita somente para quem sabe ler.
Há
pois um outro caso de não leitura a respeito do qual gostaria de lhes falar.
Refiro-me aos livros que não encontraram aquilo que Benjamin chamava a hora da
sua legibilidade, que foram escritos e publicados mas estão – talvez para
sempre – à espera de ser lidos. Conheço, e cada um de vocês, penso, poderia
nomear alguns, livros que mereciam ser lidos e não o foram, ou foram lidos por
muito poucos leitores. Qual é o estatuto desses livros? Penso que, se esses
livros eram verdadeiramente bons, não se deve falar de uma espera, mas de uma
exigência. Esses livros não esperam, mas exigem ser lidos, mesmo se não o foram
e se jamais o serão. A exigência é um conceito muito interessante que não se
refere à esfera dos fatos, mas a uma esfera superior e mais decisiva, cuja
natureza deixo a cada um de vocês especificar.
Mas
agora gostaria de dar um conselho aos editores e àqueles que se ocupam de
livros: deixem de olhar para os infames – sim, infames são classificados os
livros mais vendidos e, presume-se, mais lidos – e, por sua vez, tentem
construir na sua mente uma classificação dos livros que exigem ser lidos.
Somente uma editora fundada sobre essa classificação mental poderia fazer sair
o livro da crise que – ao menos pelo que ouço dizer e repetir – está
atravessando.
[1] N.T.: A partir desse trecho, Agamben joga com o
significado de “per”: “para” e “por”.
Na tradução, optei por manter sempre o termo “para”, já que o sutil jogo
operado em italiano deixa-se ver também em português.
Texto publicado no jornal La Repubblica no dia 08/12/2012 (na página 56). Trata-se de um trecho da intervenção de Agamben numa mesa redonda a respeito do livro Leggere è un rischio, de Alfonso Berardinelli. O debate aconteceu em Roma durante a 11ª Feria Nazionale della Piccola e Media Editoria: Più libri, più liberi. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Dedicatória feita por José Bergamín a Murilo Mendes no exemplar de El pozo de la angustia, que pertencia ao poeta mineiro.
sábado, 19 de janeiro de 2013
O espírito da escada
Enrique Vila-Matas
A primeira vez que ouvi dizer que literatura e vingança achavam-se estreitamente relacionadas foi em Antibes, há muitos anos, numa taberna no velho porto. Eram altas horas da noite quando alguém comparou a totalidade da literatura com uma "imensa vingança do esprit de l'escalier". Não entendi nada, mas guardei firmemente a estranha comparação e também aquela enigmática expressão francesa: "o espírito da escada". Muitas vezes, na confiança de que um dia poderei decifrá-las, memorizei frases que inicialmente me pareciam ininteligíveis. O tempo sempre acabou vindo em meu auxílio, ainda que, no caso do "espírito da escada", tenha-o feito com parcimônia, pois tive que esperar décadas. Não voltei a encontrar aquela misteriosa expressão até o ano passado, em Bogotá, quando fui ouvir o que diziam César Aira e Juan Gabriel Vásquez em um colóquio entitulado A vingança na literatura. Ali falou Aira, de pronto, do esprit de l'escalier e explicou que para os franceses significava encontrar uma réplica demasiadamente tarde: passar por esse momento em que encontras a resposta, mas esta já não te serve, porque já estás descendo a escada e a resposta engenhosa deveria ter sido dada antes, quando estavas em cima.
Assim, escrever é vingar-se quando desces a escada, pensei, lá em Bogotá, enquanto me admirava de como aprendemos sobre os passos e deixamos um caminho ao andar e lembrava-me de Samuel Butler, que dizia que nossas vidas se parecem com um solo de violino que temos que interpretar em público enquanto aprendemos a técnica do instrumento à medida que executamos a peça.
Nada é tão certo que, só há pouco, voltei a encontrar-me com essas palavras de Butler em A felicidade dos peixinhos (editorial Acantilado), do grande Simon Leys. Depois de falar da frase sobre o solo do violino, Leys comenta que a vida nos submete a uns azarados testes "nos quais temos de improvisar respostas instantâneas, mas o talento da réplica não é dado a todo mundo: algumas vezes respondemos algo que não tem nada a ver, outras ficamos mudos", e, continuando, cita Paul Valéry para dizer que foi o primeiro a associar a totalidade da literatura a uma "vasta vingança do esprit de l'escalier".
Realmente, a literatura parece uma atividade em contato com um material menos vivo do que a vida e, ademais, tem algo de uma imensa conjunção de frustrados, todos com um atrasado talento para a réplica. Por certo, ainda me lembro dos dias em que persegui obsessivamente um indivíduo para tentar recriar com ele uma situação já vivida e poder, então, por um fim - fracassei no meu intento -, dar minha réplica a umas palavras que em certo momento tinham me deixado mudo e humilhado.
Dias inteiros descendo escadas. Dou-me conta de que, à luz daquele frenético espírito, posso interpretar agora, desde um ponto de vista inédito, uma velha e apreciada leitura: As preocupações do pai de família, a narração de Kafka na qual o protagonista é Odradek, um dispositivo fusiforme, feito de fios velhos e rompidos, inextricavelmente emaranhados (a literatura antes da era digital?), uma criatura animada a respeito da qual nos diz que está "provida de vida eterna" e que vive sempre na escada que desce cada dia o preocupado pai de família. De vida eterna! Mesmo que pareça inútil qualquer tentativa de saber quem é Odradek, especulou-se tanto sobre ele que supreende que ainda ninguém tenha reparado que esse feio objeto kafkiano, que não é nem antropomórfico nem zoomórfico - esse objeto que é o mais objetivo de quanto imaginou seu autor e que é alguém ou algo que assalta sem descanso a mente do pai de família sempre que este desce a escada -, representa todas as réplicas do mundo e, talvez, precisamente por isso, por seu eterno e implacável sentimento da vingança, é a própria literatura.
Texto publicado no jornal El País, em 13/12/2011. Disponível em: http://elpais.com/diario/2011/12/13/cultura/1323730805_850215.html (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
quarta-feira, 16 de janeiro de 2013
Ritmos infantis
Há pouco lembrava dos relógios que desenhava no pulso esquerdo: chacoalhava o braço com insistência par sentir o barulho do ponteiro dos segundos. Era como se a tinta da caneta tivesse criado um verdadeiro relógio. Nessa época ainda não havia feito a primeira comunhão, ainda não tinha ganas de saber e de entender o transcurso da sua curta existência. O relógio de pulso recém criado era já o bastante para compreender o que eram as horas. O tempo, antes da comunhão, era ordenado pelas horas da comida: café da manhã, almoço, café da tarde, janta... para não falar dos entremeios. A fome era reguladora das estações da vida. Um dia podia parecer uma espécie de grande mesa a ser percorrida na ausência dos adultos. Correr para comer, comer para correr e os desenhos e jogos da infância lançavam-no no seu mundo das horas do relógio que acabara de desenhar.
Esgueirar-se por uma vida plena de refeições, sem a preocupação das horas, fazia da criança um ser altivo, esperto no desembaraçar de histórias, de imagens. Talvez os desenhos que todas as crianças insistem em fazer e com eles presentear adultos de que elas gostam sejam o reflexo da atmosfera de passagem, de movimento contínuo, pela qual a imaginação infantil transita sem meios termos. A hora das passagens, no entanto, acaba, num certo momento, sendo cooptada por certas manifestações hipócritas dos adultos. E, talvez, a regulamentação da voracidade alimentar através do ideário eucarístico possa ser um dos exemplos dessas estacas que freiam a imaginação infantil.
A convenção católica absorve o desregramento cronológico do mundo das crianças ao fundar em seu imaginário uma ideia de representação alimentar pautada numa antropofagia às avessas: come-se o pão como se fosse o corpo de alguém; bebe-se o vinho como se fosse o sangue de alguém. Aliás, na concepção católica come-se o próprio corpo e bebe-se o próprio sangue do cristo (não quero entrar no debate acerca da consubstanciação ou transubstanciação, pois acho que já se gastou muita saliva para tentar digerir esses conceitos...). A criança, ao se deparar com a seriedade da refeição, começa a prestar atenção nos tempos necessários para se comer: aliás, o alimento católico somente pode ser servido após um rito (uma coordenação do tempo) que intenta repetir o dar-se à morte do cristo. Apartadas da "magia" das horas pintadas no pulso, separadas dos espaços da grande mesa do infindável dia de fome, as crianças caem: param de desenhar, não mais reparam nos movimentos livres das horas e, por fim, deixam-se apreender pelo ritmo de uma cronologia salvífica que aguarda redenção num para além das fatias de tempo que lhe imprimiram ritmo à vida pós-infantil.
Claro que essa descrição da comunhão católica é apenas um exemplo da separação da criança do mundo de sua imaginação infantil. Tantas outras, ora menos ora mais perversas, hoje se instauram: o mundo da escola capitalista, a educação calcada na proteção imunitária contra tudo e todos, o mundo irrestrito das tecnologias que tolhe determinado aspecto da imaginação, o terrível mundo televisivo etc.. E é no cáustico ritmo impresso na "vida séria adulta" que talvez hoje seja possível assistir à morte da imaginação. As prescrições, os manuais e os modos de fazer impregnados da lógica da seriedade obscurecem qualquer chance de montagem de um saber imaginativo. (É bom lembrar que a imaginação não é um abandono às miragens e delírios de um reflexo, mas um limiar em que sensível e pensamento se tocam e, com isso, abrem um campo de possibilidades aos homens.)
Talvez, a nós, adultos, sejam tempos de tentar redesenhar relógios nos braços, de deixar fluir o ritmo do movimento da vida, de deleitar-se em tempos outros numa refeição, de animar os espaços ritualizados de uma vida "enojada" e, com isso, viver não uma vida sonhada séria e feliz (patética convenção capitalista), mas a banalidade ordinária (para não dizer quase cretina) de uma vida desperta e possível.
Imagem: Paul Gauguin. A refeição (As bananas). 1891. Musée d'Orsay, Paris.
Talvez, a nós, adultos, sejam tempos de tentar redesenhar relógios nos braços, de deixar fluir o ritmo do movimento da vida, de deleitar-se em tempos outros numa refeição, de animar os espaços ritualizados de uma vida "enojada" e, com isso, viver não uma vida sonhada séria e feliz (patética convenção capitalista), mas a banalidade ordinária (para não dizer quase cretina) de uma vida desperta e possível.
Imagem: Paul Gauguin. A refeição (As bananas). 1891. Musée d'Orsay, Paris.
terça-feira, 15 de janeiro de 2013
O nojo
O consolo metafísico - em que nos deixa, como já indico aqui, toda verdadeira tragédia - de que a vida no fundo das coisas, a despeito de toda mudança dos fenômenos, é indestrutivelmente poderosa e alegre, esse consolo aparece com nitidez corporal como coro de sátiros, como coro de seres naturais que vivem inextinguivelmente como que por trás de toda a civilização e que, a despeito da mudança das gerações e da história dos povos, permanecem eternamente os mesmos.
Com esse coro consola-se o heleno profundo, e apto unicamente ao mais brando e ao mais pesado sofrimento, que penetrou com olhar afiado até o fundo da terrível tendência ao aniquilamento que move a assim chamada história universal, assim como viu o horror da natureza, e está em perigo de aspirar por uma negação budista da existência. Salva-o a arte, e pela arte salva-o para si... a vida
O embevecimento do estado dionisíaco, com seu aniquilamento das fronteiras e limites habituais da existência, contém com efeito, enquanto dura, um elemento letárgico, em que submerge tudo o que foi pessoalmente vivido no passado. Assim, por esse abismo de esquecimento, o mundo do cotidiano e a efetividade dionisíaca separam-se um do outro. Mas tão logo aquela efetividade cotidiana retoma à consciência, ela é sentida, como tal, com nojo; uma disposição ascética, de negação da vontade, é o fruto desses estados. Nesse sentido o homem dionisíaco tem semelhança com Hamlet: ambos lançaram uma vez um olhar verdadeiro na essência das coisas, conheceram, e repugna-lhes agir; pois sua ação não pode alterar nada na essência eterna das coisas, eles sentem como ridículo ou humilhante esperarem deles que recomponham o mundo que saiu dos gonzos.
O conhecimento mata o agir, o agir requer que se esteja envolto no véu da ilusão - esse é o ensinamento de Hamlet, não aquela sabedoria barata de Hans, o Sonhador, que por refletir demais, como que por um excesso de possibilidades, não chega a agir; não é a reflexão, não! - é o verdadeiro conhecimento, a visão da horrível verdade, que sobrepuja todo motivo que impeliria a agir, tanto em Hamlet quanto no homem dionisíaco. Agora não prevalece nenhum consolo mais, a aspiração vai além de um mundo depois da morte, além dos próprios dos próprios deuses; a existência, juntamente com seu reluzente espelhamento nos deuses ou em um Além imortal, é negada. Na consciência da verdade contemplada uma vez, o homem vê agora, por toda parte, apenas o susto ou absurdo do ser, entende agora o que há de simbólico no destino de Ofélia, conhece agora a sabedoria do deus silvestre Silenos: sente nojo.
Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, como urna feiticeira salvadora, com seus bálsamos, a arte; só ela é capaz de converter aqueles pensamentos de nojo sobre o susto e o absurdo da existência em representações com as quais se pode viver: o sublime como domesticação artística do susto e o cômico como alívio artístico do nojo diante do absurdo. O coro de sátiros do ditirambo é o ato de salvação da arte grega; no mundo intermediário desses acompanhantes de Dioniso esgotavam-se as crises descritas acima.
Friedrich Nietzsche. O nascimento da tragédia no espírito da música. Parágrafo VII. (Trad. Rubens R. Torres Filho). São Paulo, Nova Cultural, 1999. pp. 30-31. Imagem. Francisco Goya y Lucientes. Los Caprichos.´Placa 77. Unos a otros.
Quando
Quando o quando se
transforma em onde
o tempo se perde num
tolo absurdo
sombras pérfidas de
uma vida que se
esfumaça em
ventos que apagam
estes versos perdidos
em desvarios
como escrever
senão quando?
Imagem: Hieronymus Bosch. Dois monstros - estudo. Staatliche Museen, Berlin.
sexta-feira, 11 de janeiro de 2013
Esboços para uma Teoria do Hipster II
Uma disformia resiliente: eis, talvez, uma síntese explicativa do hipster. Em face à forma do ativista político-cultural das antigas (e mortas) esquerdas, o hipster apresenta-se como uma deformação ético-estilística. Os esquerdistas de outrora "ultrajavam" a própria apresentação de si, tinham um descaso irrisório com as vestimentas (era coisa insignificante), estabeleciam códigos linguísticos para ludibriar as polícias secretas, no geral, todas atitudes que visavam uma ação (por vezes ingênua, também é preciso frisar) na conjuntura política, um engajamento no e por um mundo, por ideais de destruição e ruptura com as supostas lógicas da pequeno-burguesia e das sociedades de consumo então surgentes. O hipster, por sua vez, também está "à esquerda", porém, da rua Augusta - e, em São Paulo, a galeria Ouro Fino ou outras tantas lojas descoladas são o ateliê de criação de sua posição política, ou melhor, de seu look. Ele cria uma apresentação impecavelmente desleixada e incansavelmente procura ser um "sacador": suas tiradas são sempre as melhores, seu humor é sempre o mais refinado e cáustico, seu posicionamento estético é tão indestrutível que a ele é autorizado trafegar por todos os gostos - em música, seu habitat costumeiro, é capaz de louvar Amado Batista, Claudinho e Buchecha, Os Menudos, obviamente, com má consciência e desde o alto de seus púlpitos escolásticos (a partir dos quais dão sermões sobre o último desejo de Ian Curtis), como um biólogo que observa camundongos em seu laboratório - e, com isso, ser hype, além de, no mesmo instante (provavelmente quando lê alguma crítica ao seu "gosto" ou quando sente a irrefreável necessidade de "representar" - que, é preciso admitir, é sua verdadeira vocação), levantar argumentos refinados da última revista londrina ou novaiorquina do circuito cult-indie - claro, com tiradas "exemplares" para o seu crítico. No bar sujo da moda, os hipsters discutem filosofia e, no mesmo papo, acabam divagando sobre a última visitinha ao D.O.M. ou sobre quando buscaram cocaína em alguma bocada perigosa (são, na maioria das vezes, leitores de prefácios, para não dizer de orelhas - ou, aliás, "ouviram" dizer -, ainda que haja outra variante, o hipster acadêmico - ainda por ser analisado -, que não se enquadra nessa regra mas que, mesmo assim, não deixa o hipsterianismo). A vontade de "representar-se" como "esquerda", como alguém que, como seus proteticamente instituídos antepassados, os esquerdistas militantes, vivia em disparate por tentar "revolver" um mundo, é apenas "autopromotiva" (o hipster é a foma do ativista parodiada, simplesmente) e a marca nefasta do ser ele apenas um espectro direitista. De fato, o que pretende é ser não reconhecido, mas quase como adorado, já que o mainstream é muito pouco para ele. No entanto, eis que a ele se apresenta um paradoxo: como ser adorado sem ser adorado? Porque adoração pressupõe que muitos gostem dele e, se assim acontecer, o que seria de sua exclusividade "sacadora", intelectual, estética etc.? (É difícil ser direita hoje, de cara lavada*...) Mas o paradoxo resolve-se na sua resiliência. Ele, ao contrário das postulações de suas formas, modos e posturas, não quer se entregar à vida disparatada dos ativistas de outros tempos, não quer "revolver" nada, não quer lutar para mudar nada, não quer resistir a nada. Quer somente se representar. Ele é resiliente: aceita tudo para poder negar tudo e, assim, continuar aceitando tudo - desde que sua representação permaneça incólume. Assim, o hipster faz-se, sem pudores, a encarnação barata* da mercadoria.
Imagem: Francisco de Goya. No se puede mirar. 1814-1824.
terça-feira, 8 de janeiro de 2013
Insistências democráticas
Entrevista com Miguel Abensour,
Jean-Luc Nancy & Jacques Rancière
Entrevista realizada por Stany
Grelet, Jérôme Lèbre & Sophie Wahnich
Quem poderia hoje não ser
democrata? A democracia, é notório, é o poder do povo. Mas qual poder e qual
povo? Na entrevista que segue, aprofundando seus respectivos trabalhos, Miguel
Abensour, Jean-Luc Nancy e Jacques Rancière propõem três pensamentos singulares
da democracia que se juntam nisto: o povo é o sujeito de uma exigência de
igualdade; seu poder não é o de escolher chefes, mas o de romper com as
hierarquias constituídas. A democracia não é um regime político, mas uma
prática nunca acabada. Três convites para defendê-la como tal.
Os senhores estão em dois frontes: por um lado, desviam-se daqueles que
se contentam em pensar e defender uma democracia estatal. Por outro lado, não
aceitam que se rejeite a democracia em nome da luta de classes ou da critica da
dominação. Os senhores poderiam explicitar essa posição? A maneira com a qual a
elaboraram, em qual contexto intelectual?
Jacques Rancière: Essa dupla
recusa da vulgata “democrática” dominante e da crítica marxista foi inspirada
pelo meu trabalho sobre a história do trabalho. É dentro das formas de luta
republicana trabalhadora dos anos 1830-1840 que eu encontrei o meio de sair dos
impasses da crítica marxista dos direitos do homem e da “democracia formal”. O
jovem Marx dizia: os direitos do homem são, de fato, os direitos dos indivíduos
burgueses. Contra isso os combates operários opõem uma lógica bem mais produtiva:
esses direitos são escritos e, portanto, nós podemos dar-lhes uma forma de
existência concreta. Que todos os franceses sejam iguais diante da lei é não
somente a mentira que encobre a exploração capitalista e o governo oligárquico,
como também um fato que podemos demonstrar para nós mesmos as consequências,
transformando uma querela sobre tarifas em forma de afirmação pública de nossa
igualdade pela greve, pela manifestação pública e mesmo pela criação de ateliês
em que os operários trabalham para si próprios. A declaração igualitária abstrata
dos direitos do homem se ligava a questões de “forma” nas relações entre
patrões e operários, como o direito de ler jornais no ateliê e a obrigação de,
ao adentrar um ambiente, tirar seus chapéus para os patrões. A forma não é,
portanto, o contrário ou a embalagem do real. A luta centra-se na questão de
saber quem domina o jogo e o que dele se pode tirar. Saímos então do dualismo
do real e da aparência em proveito de um conflito entre duas maneiras de
construir o real.
Parece-me, no entanto, que os
frontes se deslocaram. Quase não existem mais pessoas para declarar o nada dos
direitos formais em nome de uma hipotética democracia real. É agora de um outro
lado que a democracia se vê oposta a si mesma. Dizemos que o bom governo
democrático é ameaçado por uma sociedade democrática marcada por um
individualismo consumidor desenfreado de mercadorias e de direitos. Isso
começou em 1975, com as advertências da Trilateral[1]
sobre os perigos que a democracia representa para as democracias. Essa posição
foi retomada na França pelos discursos como o de Marcel Gauchet, que fazem da
aspiração pelos direitos do homem a expressão do individualismo narcisista.
Então vieram os republicanos para nos explicar que o ensinamento do povo foi
arruinado pela afirmação do direito à livre expressão do jovem bárbaro,
consumidor inculto. Além disso, as análises da sociedade de consumo nos moldes
de Baudrillard, a crítica do espetáculo de Debord, a análise lacaniana do simbolismo
etc., foram inscritos para completar o quadro da democracia como reino do
indivíduo consumidor. A ressonância desse discurso à esquerda é muito forte –
tanto mais que ele é em grande medida obra de esquerdistas reconvertidos – e
seu efeito é, talvez, pior do que aquele do velho discurso sobre a democracia
real, na medida em que nutre um consentimento niilista à ordem existente em
nome da brutalidade geral.
Miguel Abensour: A hipótese que
proponho, a da democracia insurgente, resulta também de uma luta nesses dois
frontes: nenhum dos dois levam em conta a excepcionalidade
da democracia. Eles evitam, ao mesmo tempo, interrogar-se sobre a sua
verdade. Para tomar a medida dessa excepcionalidade é preciso sempre voltar ao
nascimento grego da democracia. “Pela primeira vez na história do mundo homens
adquiriram a possibilidade de decidir por si mesmos em que tipo de ordem
gostariam de viver”, diz Christin Meier. Ora, essa ruptura revolucionária –
repetida diversas vezes na história – poupa da confusão entre a democracia com
o que ela não é, o governo representativo e o Estado de direito. Especifiquemos
que não houve um só nascimento da democracia, mas vários
nascimentos-renascimentos, várias rupturas com o curso do mundo. Portanto, é reconhecer
que a primeira posição se engana sobre a verdade da democracia e que a segunda
omite a colocação da questão. Estamos no ponto em que, para não ocultar essa
excepcionalidade, é-nos preciso qualificar a democracia para subtrai-la às
apropriações ideológicas que a banalizam e a desarmam, ou, para não confundi-la
com suas formas degenerescentes. Democracia radical, democracia selvagem,
democracia insurgente, tantos adjetivos como que para marcar essa diferença.
Por surpreendente que possa
parecer, o jovem Marx foi para mim uma ajuda preciosa nesse caminho, pois, no
manuscrito de 1843, A Critica do direito
público de Hegel, ele se colocou a questão da verdade da democracia, sob o
nome da “verdadeira democracia” que ele identifica com o desaparecimento do
Estado político. Sua crítica a Hegel ajuda, de fato, a pensar isto: a
“verdadeira democracia” é um agir político que resiste à sua transfiguração
numa forma organizadora, integradora, unificadora, a forma-Estado. Essa
resistência à alienação estatal permite a extensão daquilo que está em jogo na
esfera política – uma experiência de universalidade, a não-dominação, a
constituição de um espaço público igualitário – conjuntamente à vida do povo.
Além disso, existe, parece-me, uma continuidade subterrânea entre o Marx de
1843 e o de 1871, autor do Adresse sobre a
Comuna. Notando, entretanto, um deslocamento: o advento da democracia não
se cumpriria tanto num processo de desaparecimento do Estado quanto no fato de
que ela se constituiria numa luta contra o
Estado. Segue-se uma divisão da ideia de revolução entre a tradição jacobina,
que visa a tomada do Estado, e a tradição comunalista, que trabalha para
quebrar a forma-Estado para substituí-la por uma comunidade política
não-estatal, por exemplo, uma república dos conselhos.
Jean-Luc Nancy: Para seguir os
termos de sua questão, eu diria que estou suspenso entre esses dois “frontes”:
de um lado, mal vejo como evitar a democracia “estatal”, cujas fraquezas (em
particular aquelas da representação e da dominação dos supostos “experts”) são
difíceis de se reduzir, mas, de outro lado, eu sei bem quais os enormes riscos
que se atribuem a regimes que gostariam de apreender com outros instrumentos
questões agudas da justiça social e da dominação técnico-econômica. Eu só me
pergunto se nós podemos, por fim, evitar tais tentativas, se a “democracia
estatal” não se recuperaria de uma maneira ou de outra. Ora, ela somente o pode
fazer se tentar retomar o fundo deste problema: o que quer dizer “democracia”?
Isso é o que mais me preocupa. Essa palavra, que parece pertencer à classe dos
tipos de regimes políticos, ganhou, com a idade moderna, grande amplitude e
passou a esconder também uma polissemia. “Democracia” é também o nome do
surgimento do homem “emancipado”, autônomo, mestre do mundo e de si mesmo,
sujeito de uma história capaz de conduzir ao cumprimento desse “homem”. “Demos” é “povo”, e sabemos também quais
polissemias nele podem se jogar – mas, para os Modernos, “homem” é,
primeiramente, “todos os homens”. E com isso são os homens (e com eles a
natureza) inteiramente entregues a si próprios, sem recursos tutelares, sem
deus nem super-homens. É preciso, portanto, pensar essa ambiguidade: a
democracia política não trouxe um programa da realização do homem (expressão
que, precisamente, não tem sentido e a partir da qual é preciso pensar essa
ausência de sentido).
Suas concepções da democracia parecem implicar uma visão muito precisa
do sentido a ser dado à palavra povo... Pois os senhores não cedem, o senhores
se atêm a essa palavra. Povo soberano mesmo?
Jean-Luc Nancy: “Povo soberano”,
eis a questão: “povo”, como lhe disse há pouco, é “todos”, não todos
indistintamente, mas todos como singulares entre os quais somente se passa o
que podemos nomear a vida, simplesmente, ou o sentido. Povo que se divide, que
pode se excluir ou entrar em conflito consigo, obviamente, mas que exige a
possibilidade de um “nós”: que em algum lugar um “nós” seja declarado, e não
somente um “eles”. “Nós” sem dúvidas jamais pode ser dado – a não ser na ficção
religiosa. Mas ele pode e deve ser interrogado, inquietado, perseguido... E
sempre recusado quando é pronunciado por um ou alguns que a partir dele apenas
se ostentam. E “soberano”, sim: além do
qual não há nada. E que deve, portanto, lidar com este desafio considerável:
não ter nem tutela, nem garantia, nem recurso de seu próprio “ser-povo”, se
assim posso dizer.
Miguel Abensour: A partir da
reforma de Clístenes, o povo é um sujeito político que se constitui por ruptura
com os pertencimentos familiares, tribais, e que se estabelece por
transferência a um espaço e a um tempo tornados políticos. O povo é o
instituidor de uma cidade igualitária, concebida para privilegiar um centro
comum, a igualdade, a simetria e a reversibilidade. A democracia é, portanto, isonomia. Dessa ruptura com a
naturalidade para constituir o povo, segue-se que este último, enquanto ser
político, não tem nada a ver com uma raça, nem mesmo com uma etnia, nem com um
grupo comunitário. O que descreve Michelet a respeito da festa da Federação
senão o acesso a uma estranha vita nuova,
uma experiência de humanidade? “As velhas muralhas se abaixam... os homens
então se veem, reconhecem-se semelhantes...” Qual é a identidade desse novo
sujeito político? Certamente não uma identidade substancial, mas uma identidade
paradoxal, uma identidade não idêntica. Michelet ainda pensa o povo como jamais
coincidente consigo mesmo. Ele está tanto além de si quanto aquém de si mesmo.
Há aí uma dificuldade. É possível
que esse povo seja definido como o conjunto de cidadãos, um conjunto, senão
indiviso, ao menos que tenda à indivisão, ou, de outro modo, como uma parte,
aquela das pessoas de baixo contra as Grandes, a parte daqueles que não têm
parte nenhuma e que, em nome desse erro, colocam-se como o todo? Ora, se entendemos
o povo nesse segundo sentido, é preciso observar que o termo democracia, que
por seu próprio nome reconhece à parte de baixo um kratos sobre a parte dos Grandes, coloca um problema. Segundo
Nicole Loraux, a palavra kratos é “pesada”
e a questão da democracia torna-se delicada, pois “ter o kratos, é ter o acima”. Como a democracia, que é igualitária – que
institui uma lógica da não-dominação e disso tende ao ser an-árquica –, pode
acomodar-se da posse de um kratos de
uma parte da sociedade sobre uma outra? De que modo a existência desse kratos pode acompanhar uma lógica da
não-dominação? É suficiente dizer que essa situação indica uma tensão
constitutiva e insuperável da democracia? É suficiente invocar o fato
majoritário? Se aceitarmos a ideia da tensão, é de longe mais satisfatório
voltarmos a Maquiavel, que percebendo a divisão de toda cidade humana, nela
reconhece a fonte mesma da liberdade e subsídios adicionais ao povo de ser um
guardião da liberdade muito melhor do que os Grandes.
Povo soberano? Aqui ainda
distinções são necessárias. Soberano o povo o é quanto à sua instituição. Ele
não recebe sua lei, sua liberdade e seu agir de nenhuma instância exterior nem
de nenhuma transcendência, ele recebe apenas de si mesmo. Mas, se prestarmos atenção
à distinção de La Boétie entre o todos uns – experiência da separação que
liga sob o signo do entre-conhecimento, da amizade, portanto, da pluralidade –
e o todos Um, frequente resultado de uma renúncia voluntária da liberdade,
sob “o charme do nome Um”, a questão da soberania se complica estranhamente. De
fato, querendo-se manter a pluralidade do todos
uns, aí onde há ao mesmo tempo pertencimento a uma totalidade aberta,
dinâmica e manutenção da singularidade dos uns, só se pode tomar distâncias da
ideia de soberania e a ela resistir na medida em que esta instaura o reino do
Um e arruína, no mesmo golpe, a desordem fraternal, a desordem enquanto recusa
da síntese, portanto, da totalização estatal.
Jacques Rancière: De fato, eu
resisto à proposta de substituir o termo por um outro como, por exemplo,
“multidões”. À primeira vista, este é mais moderno e não é, como “povo”,
comprometido com ideologias criminais. Mas justamente “povo” tem para mim a
vantagem de ser um sujeito polêmico. “Multidões” define a coincidência de uma
subjetivação política com um modo de ser coletivo. Mas, para mim, a política
começa quando seu sujeito se separa de toda coletividade formada por um
processo econômico e social. Isto é, que “povo” é um sujeito político na própria
medida em que é um sujeito litigioso, em que a política sempre opõe um povo a
um outro. O povo é o demos oposto ao ethnos – isto é, ao povo como organismo
coletivo. É sobretudo o coletivo desses que estão a mais em relação a todas as
consistências sociais. Nisso ele se opõe a todas as concepções identitárias, inclusive
as que querem fundar a política sobre o reconhecimento da multiplicidade das
identidades. O poder do povo é o poder daqueles que não são nada, ou seja, que
não pertencem a nenhum grupo que tenha as qualidades que os predestinam ao
governo. Isso implica uma relação muito particular com a soberania. Se a
soberania do povo tem um sentido, é o de minar o próprio conceito de soberania.
A soberania do povo é a do coletivo daqueles que não têm nenhum título para governar.
Eu me situo, portanto, completamente fora daqueles para quem a soberania do
povo é a herdeira da soberania dos reis, esta que seria ela mesma a delegação
da soberania divina, isto é, para falar de modo geral, estou completamente fora
do discurso teológico-político.
A democracia não é um regime político; ela é um “agir que, na sua
própria manifestação, trabalha para desfazer a forma Estado, para parar a
lógica deste (dominação, totalização, mediação, integração) e substitui-la por
sua própria” (M. Abensour); ela “interrompe qualquer espécie de teologia
política” e “não pode ser subsumida a nenhuma instância ordenadora” (J.-L.
Nancy). Ela interrompe “a lógica policial da distribuição dos lugares” (J.
Rancière). Os senhores poderiam especificar o sentido e o conteúdo da
emancipação que está em jogo?
Miguel Abensour: Efetivamente a
democracia não é um regime político. Além de uma instituição política
conflitiva do social, ela é uma ação, uma modalidade do agir político,
específica naquilo em que a irrupção do demos
na cena pública, na oposição aos Grandes, luta por um estado de
não-dominação na cidade. Trata-se não da ação de um momento, mas de uma ação
continuada que se inscreve no tempo, sempre pronta a tomar novos rumos em razão
dos obstáculos encontrados. De um processo complexo que se inventa
permanentemente para melhor perseverar no seu ser e desfazer os
contra-movimentos que o ameaçam aniquilar e retornar a um estado de dominação.
Tal é a democracia insurgente. Desse ponto de vista, de 1789 a 1799, repetidamente
o povo teve que irromper na cena revolucionária para proclamar sua vocação de
agir ao mesmo tempo contra o Estado do Antigo Regime e suas sobrevivências, e
contra o novo Estado. A partir de tal perspectiva, as últimas insurreições do
ano III, de Germinal (abril de 1795) e, sobretudo, de Prairial (maio de 1795),
são notáveis. O povo invade então a Convenção com uma dupla palavra de ordem: Pão e Constituição de 1793. Associando
esses dois motivos, o povo reivindicava o direito à insurreição que lhe
reconhecia a Constituição de 1793. O que fazia ele senão lutar para retomar o
poder que lhe pertencia enquanto soberano, a saber, o poder constituinte? Nesse
evento, percebe-se bem as características da democracia insurgente: uma
oposição brutal entre o povo e os Grandes do dia, a criação de uma situação de
duplo poder, o poder popular dos sans-culottes
parisienses de um lado e o poder estatal do outro, com o projeto de
substituir este por aquele. De modo mais profundo, é possível ver o princípio
que anima a Insurreição: a busca de uma ligação política viva, intensa, não
hierárquica. A luta visa a preservar a potência de agir do povo e a impedir que
o que faz ligação entre os cidadãos não se degenere, uma vez mais, em ordem
obrigatória, vertical. Basta ler o manifesto A Insurreição do povo para
obter pão e reconquistar seus direitos para ver aparecer o contraste entre
a ligação e a ordem: “Os cidadãos e as cidadãs de todas as seções
indistintamente partirão de todo lado para uma desordem fraternal... a fim de
que o governo astucioso e pérfido não possa mais encabrestar o povo como de
costume e conduzi-lo como uma tropa, por chefes que lhe são vendidos e que nos
enganam.” Tal é a desordem fraterna
contra o poder pastoral dos chefes. Tal é a emancipação an-árquica que carrega
essa forma de democracia.
Jean-Luc Nancy: A “democracia” é,
de uma maneira em parte independente do registro político (independente, por
exemplo, do que era a exigência do Terceiro-Estado ou do que exige a separação
dos poderes), um outro nome da “morte de Deus”. Isto é, de um recolocar em jogo
de modo integral isso que quer dizer um “mundo”, entendido como um espaço de
circulação de sentido. O sentido não desce mais do céu nem a ele sobe. Talvez,
aliás, jamais o tenha feito. Mas pôde-se representar que ele o fazia. Acabou. O
sentido está entre nós e ele não termina, não se conclui. Ele é “nós”, nossas
vidas e nossas mortes, nossas palavras e nossas maneiras, nossas obras, nossos
sentimentos. A política inteiramente dissociada da religião e da assunção de um
“destino de nação (ou povo, ou pátria)” não pode e não deve carregar “o
sentido”. Entretanto, é o que a confusão ao redor de “democracia”, também de
“república” e de “comunismo”, pôde fazer crer. O sentido é carregado de outro
modo: na arte, no saber, no amor, na festa, o esporte, o pensamento, o que sei
eu? A política deve se conceber como o que garante o acesso a todas essas
esferas, mas não pretende inervá-las.
A demarcação dos papeis e das
esferas é muito delicada, sem nenhuma dúvida. Ela é até mesmo infinita. Mas
toda a história das representações modernas da política, por meio do espectro
que vai dos “totalitarismos” aos “socialismos”, serviu para mostrar que não
havia nada mais apressado do que esperar “a política” como a tomada de todo o
sentido. Tudo, sem dúvida, passa por ela, mas nada nela para nem nela se deixa
assumir. Essa diferença, essa diferença interna a “nós”, os homens, devemos
pensá-la e agi-la.
Jacques Rancière: Digamos, de
início, que o conceito essencial para mim é o de emancipação. Eu tentei
repensar as noções de política e de democracia a partir dele, mas, então, foi
esse conceito que se tornou decisivo para mim, pois ele supunha um recolocar em
questão certas oposições que delimitam habitualmente o lugar da política (a
política contra o social ou o privado contra o público). Ele determinou minha
separação em relação a certa visão arendtiana, opondo a excelência do exercício
político e a liberdade às formas de expansão da necessidade social. Sabe-se qual
papel os pensadores de direita a ele atribuíram em nosso pensamento para
estigmatizar os movimentos sociais. A emancipação é a refutação em ato dessa
partilha a priori das formas de vida.
É o movimento pelo qual aqueles e aquelas que tinham sido localizados no mundo
privado afirmam-se capazes de um olhar, de uma palavra e de um pensamento
públicos. Isso pode começar com esses novos honestos trabalhadores, evocados
por E.P. Thompson, que, numa noite de março de 1792, reúnem-se numa taberna
londrina e aí fundam uma sociedade com número de membros ilimitado para afirmar
o direito de todos a eleger os membros do Parlamento. Isso começa também quando
operários em conflito com seus empregadores, na Paris dos anos 1830, fazem de
sua greve não mais um meio de pressão de um grupo de indivíduos sobre um
indivíduo particular, mas uma ação pública dos operários enquanto tal; ou
quando Rosa Parks, em 1955, em Montgomery, converte um ato privado – sentar-se
num lugar vazio – numa manifestação pública – suprimir por sua própria conta a
repartição de assentos em função da cor da pele. O coração da emancipação está
em se declarar capaz daquilo que certa distribuição dos lugares lhe nega a
capacidade, de declarar-se capaz disso como representante qualquer de todos
aqueles cuja capacidade é aparentemente denegada. A emancipação funda uma ideia
do universal político não mais como aplicação da lei comum aos indivíduos, mas
como processo de desidentificação, isto é, de saída por quebra de certo
estatuto sensível, de certo lugar na ordem do visível e do dizível, na
distribuição dos lugares e dos tempos. É a partir dessa desidentificação que
repensei a democracia como o poder dos sem-parte, isto é, daqueles que não
representam nenhum grupo, função ou competência particulares.
Em que medida é um oximoro falar de instituição democrática?
Jean-Luc Nancy: Não há oximoro
uma vez que se entenda “democracia” no sentido de forma ou de regime político: ainda
que seja uma forma em perpétua transformação, a ela é preciso suas pausas, suas
marcas. Há, além disso, instituições que são muito especificamente
democráticas: aquelas que colocam controles ou freios internos ao próprio
sistema (conselho constitucional, conselhos, comissões ou “autoridades” encarregadas
do respeito pela igualdade e pela justiça em tal ou qual setor – por exemplo,
audiovisual, internet). De fato, a instituição pode também ser a melhor
garantia contra o arbitrário e contra todos os direitos de exceção. Mas nenhuma
instituição pode ser colocada como um templo, ou jamais será recolhido o
verdadeiro princípio da democracia.
Jacques Rancière: O oximoro, para
mim, ao menos na origem, é a ideia de democracia representativa. A regra
democrática originária é o sorteio. A lógica da representação é claramente
oligárquica. A monarquia feudal e, em seguida, a monarquia burguesa, foram
cercadas de homens que “representavam” potências sociais (a nobreza, o clero, a
propriedade). Tardiamente é que a representação tornou-se “representação do
povo”, nessa figura de compromisso que nós conhecemos. A noção de instituição
democrática designa o próprio paradoxo da política ou – querendo-se – seu
artifício. A democracia é a forma de poder legítima que leva em si a refutação
de toda legitimidade do exercício do poder. Nossas instituições trazem o traço
desse paradoxo. É possível dizê-las democráticas, caso queira assinalar com
isso a obrigação na qual elas estão de inscrever o poder de quem quer que seja
e de lhe construir formas de efetividade mínimas. Mas o funcionamento mesmo da
máquina estatal tende continuamente a apagar esse traço e a esvaziar essas
formas de toda substância. E é por isso que a democracia deve sempre se separar
da forma estatal à qual se procura reduzi-la. Ela deve ter seus órgãos
próprios, distintos dos órgãos da representação do poder estatal.
Miguel Abensour: A expressão
“Estado democrático” constitui efetivamente um oximoro. Aliás, basta inverter o
sujeito e o predicado para melhor medir o caráter problemático de tal
associação; uma democracia estatal, uma democracia estatizada, é concebível?
Mas o que vale para a instituição Estado vale para toda instituição? A
representação das relações entre a democracia e a instituição apenas sob o signo
do antagonismo seria uma simplificação ultrajante. Isso seria como se uma
sempre se desdobrasse numa efervescência instantânea, enquanto a outra
permaneceria em prol de um estatismo marmóreo. Uma primeira réplica se impõe:
uma relação é possível entre democracia insurgente e instituição, desde que a
constituição reconheça ao povo o direito à insurreição, como foi
excepcionalmente o caso na constituição de 1793.
Mas isso não é suficiente. Ainda
é preciso anotar que a relação dessa democracia com a efervescência não é a
instantaneidade. Também pode ela, para salvaguardar o agir político do povo,
voltar-se para instituições que, no momento de sua criação, tiveram por
finalidade favorecer o exercício desse agir. Assim, desde os acontecimentos de
Prairial, a insurreição apoiou-se nas seções parisienses e nos deputados montagnards, que a apoiaram e votaram,
no dia primeiro de Prairial, na Convenção invadida, pela permanência das
seções. A democracia insurgente pode, portanto, dar início a uma circulação
entre o presente do acontecimento e o passado, na medida em que aí se encontram
instituições emancipadoras que são promessas de liberdade. Não há, portanto,
antagonismo sistemático entre a democracia insurgente e as instituições, uma
vez que estas trabalham para esse estado de não-dominação.
Uma complexidade da mesma ordem
se revela ao tomarmos o problema desde o ponto de vista da instituição. Tomemos
Saint-Just nas Instituições republicanas.
Ele opõe as instituições às leis, com a preeminência sendo concedida às
instituições e a desconfiança reservada às leis suspeitas de serem opressivas.
Notemos que a República deve ser então constituída por um tecido institucional, espécie de lugar primeiro que se distingue
tão bem tanto da “máquina de governo” quanto das leis. Essas instituições, que
têm por finalidade ligar os cidadãos e as cidadãs por meio de relações generosas, devem levar em si
algo como um princípio da República, como sua antecipação sob a forma da
totalidade dinâmica. Lembremos que Saint-Just soube expor uma especificidade da
instituição. A instituição matriz, mais do que o quadro, contém uma dimensão
imaginária de antecipação, que possui uma potência incitativa de natureza para
engendrar condutas que vão na direção da emancipação que ela anuncia. É nesse
sentido que a instituição, “sistema de antecipação”, diz Gilles Deleuze,
opõe-se à lei, na medida em que traz em si um chamado de uma liberdade a outras
liberdades. É por isso que Deleuze opunha nesses termos a instituição à lei:
“Esta é uma limitação das ações, aquela um modelo positivo de ação.” Último
ponto: existe uma incompatibilidade entre a insurgência e a instituição no
nível da temporalidade? Segundo Merleau-Ponty, a instituição dota a experiência
de uma dimensão durável. Mas essa característica equivale tanto menos a um
imobilismo quanto o que pode ser percebido de uma duração criativa, inovadora,
em sentido bergsoniano, numa dimensão durável. Ora, a característica da antecipação
da instituição trabalha, por assim dizer, a duração interiormente, de tal modo
que essa dimensão durável, em vez de ser resistência à mudança, transforma-se
em trampolim que permite, junto com sua estabilidade relativa, uma execução da
invenção. Se, como afirmam certos teóricos, a instituição é a categoria do
movimento, ela pode então se aclimatar sem esforços à temporalidade
democrática.
Quais formas esse “movimento” toma? Se os senhores estão de acordo em
dar um lugar central à resistência e à conflitualidade, parece-nos que a
emancipação é, para os senhores, tanto um movimento continuado quanto um
esforço descontínuo, sincopado.
Jacques Rancière: Eu não estou
seguro de que é preciso opor os dois. Da minha parte, insisti no fato de que a
emancipação era exatamente uma conversão do corpo e do pensamento que começava
por uma leve subversão das atitudes ordinárias. Isso começa, em Gauny (O Filósofo plebeu), pelo olhar do
carpinteiro que esquece o trabalho dos braços e transforma o lugar de trabalho
em espaço de exercício de um olhar estético desinteressado, e ele continua
nisso por meio da elaboração de uma contra-economia doméstica que permite
escapar às restrições físicas e intelectuais da dominação. Isso começa, em
Jacotot (O Mestre ignorante), pela
atenção do iletrado por estudar, palavra a palavra, a relação entre a prece que
ele sabe de cor e o texto que lhe é mostrado no papel. A emancipação é em si mesma,
em ruptura com a lógica da reprodução, a criação de certa continuidade, de uma
espiral que se constrói desviando-se de seu círculo. Descontínuas são as
emergências coletivas do poder dos homens emancipados. Jacotot tinha vinte anos
em 1789 e Gauny em 1830. As estratégias de emancipação individual que eles
elaboraram foram possíveis porque os dias revolucionários modificaram
brutalmente a própria paisagem do possível. E, por sua vez, essas invenções
formaram homens capazes de outras grandes afirmações coletivas.
Levando em conta as histórias singulares, saímos da
homonímia entre a história como processo de evolução necessário e a história
como narrativa sintética de encadeamentos de causas e efeitos. A história da
democracia pode ser a potência de efração e a influência de certos momentos do
poder do povo, as transformações que eles produzem na paisagem do visível e do
possível, as formas de memória que eles suscitam, mas também a maneira pela
qual seu brilho se difrata nas percepções e nas atitudes novas. Isso pode ser,
tomando-se as coisas por um outro viés, o tornar-se bola de neve de uma
modificação singular na vida de um indivíduo ou de um grupo, a maneira pela
qual essa trajetória singular revela todos os constrangimentos reais e
simbólicos que definem uma sujeição, todas as virtualidades de mundos
diferentes que esboçam as transgressões desses constrangimentos. É assim que em
A Noite dos proletários eu tentei
enquadrar toda a paisagem do que a “emancipação dos operários” podia querer
dizer por meio do destino de um pequeno número de proletários, reencontrando
sob diversas formas os constrangimentos da dominação e as promessas de utopia,
e construindo por meio desses reencontros, ao mesmo tempo, uma forma diferente
de vida individual e uma imagem da coletividade operária emancipada. Disse,
então, que é a história de uma geração, isto é, não uma era, mas uma
configuração, meio efetiva, meio ideal, de trajetórias singulares marcadas por
uma mesma abertura revolucionária do possível. Tais histórias não definem
nenhum encadeamento causal de circunstâncias e de consequências. Elas definem
construções alternativas do possível que se inscrevem numa outra configuração
do que tomamos por presente.
Miguel Abensour: Penso igualmente
que, mais do que colocar uma alternativa entre continuidade e descontinuidade,
é mais justo conceber a história da emancipação como relevante para dois
modelos ao mesmo tempo: indissociavelmente contínuo para seus objetivos,
descontínuo pelo seu modo de manifestação. Trata-se, portanto, de uma
comunidade política fazendo-se, orientada para a igualdade e para a
não-dominação. Penso a história da liberdade sob o signo da descontinuidade,
com momentos fortes de emergência entre longas zonas cinzentas. Esses momentos
são a invenção da democracia grega, a república romana, as repúblicas italianas
da Idade Média e as grandes revoluções modernas. Essa história é pontuada pelo
que Saint-Just chama de modo magnifico “profecias da liberdade”, as quais
deixam traços na história destinados a ser retomados e reativados sob outros
nomes, sob outros motivos. Mas a história da democracia – história complexa,
caótica – deve levar em conta também tanto os grandes acontecimentos quanto os
acontecimentos menores, a incontável multiplicidade dos atos de resistência e
de rebelião durante períodos ditos “calmos”, nos quais a ordem estatal parece
reinar, embora ao consultar os arquivos é de um estado permanente de “intranquilidade”
latente que se trata. É assim que Jean Nicolas pode escrever no seu belo livro,
A Rebelião francesa 1661-1789: “Entre
1660 e maio de 1789, a sociedade francesa viveu sob o modo da intranquilidade,
segundo ritmos desiguais, mas numa tremulação quase ininterrupta.”
Jean-Luc Nancy: Pensar a
democracia sob os termos “movimento” e “emancipação”, como “movimento de
emancipação”, não é algo sem problemas. “Emancipação” é sem dúvidas uma outra
grande palavra que para a “democracia” está por trás de outra polivalência
obscura. Emancipação de que, de quem? Dos deuses e dos tiranos, é o que se
entende: mas eles não cessam de voltar! Eles têm muitos avatares! Quem e o que
nos tiraniza e nos coloca na idolatria ou na superstição? Emancipação da
escravização, da exploração, do sofrimento moral e físico? Nós sabemos nos
sujeitar a sistemas inteiros, nós sofremos de nossa própria exploração da
natureza e nós sabemos muito mal como conduzir a saúde de uma população cuja
maior parte passa fome e é negligenciada, enquanto a outra parte está doente
por tanta comida e por excesso de cuidados. Tal é a verdade: emancipação é um
termo herdado do direito da escravidão e, em seguida, do direito da autoridade
paternal. Talvez ele não nos seja mais conveniente. Estamos sem mestres e sem
pais. Talvez, seja mais uma questão de inventar, de criar...
Como situar, a esse respeito, os eventos de maio de 68?
Jean-Luc Nancy: Precisamente, maio
de 68 teria sido o primeiro momento visível de uma crise que começava, para
além de certo modelo social, em particular ainda vigente na França, e para além
de certa representação da luta política (que nos tinha levado até a
independência da Argélia) – começava não para uma perspectiva, mas, justamente,
para o desdém ou a impossibilidade de novas “perspectivas”, de novos projetos,
programas, projeções de futuro. Maio de 68 declarou uma exigência do presente,
contra o passado (sem testamento, para citar ainda Char ou Arendt) e também
contra o futuro (pensado como presente futuro, projetado, para citar Derrida).
O que sabemos do “aqui-agora”? O que sabemos de “nós” e não de nossos pais nem
dos nossos filhos? O que sabemos de um sentido que não seja desde sempre
marcado de céu ou de futuro? No limite, poder-se-ia mesmo dizer que 68 se
declarava contra o “sentido” – um pouco à maneira com a qual Freud escreve que
se interrogar sobre o sentido da vida é já ser neurótico – e pela vida, pela
existência, nossa existência somente enquanto sentido. Ora, a “democracia”, sabendo
ou não, também levou em si uma exigência dessa forma. (Exigência a respeito da
qual ouso me perguntar se talvez não tenha sido melhor encontrada em outras
épocas ou culturas...)
Jacques Rancière: Os
acontecimentos de 68 não têm seguramente uma significação unívoca. Os aspectos
para mim dominantes são o recolocar em causa o determinismo histórico e a
afirmação do que “democracia” pode significa, levando a palavra a sério.
Esquecemos o singular contratempo que maio de 68 representou na paisagem
francesa. Sem dúvidas, o contexto global da Revolução cultural chinesa e a luta
anti-imperialista tiveram papel importante nas capacidades de mobilização da
juventude tanto na França quanto nos EUA, na Alemanha ou no Japão. Mas a
sociedade francesa, na véspera de 68, descrevia-se em termos de reformismo
triunfante: integração da classe operária pela sociedade de consumo, nova
geração estudantil desligada das ideologias do passado, novo rosto do
capitalismo, gerências modernistas etc.. Tudo isso foi varrido em alguns dias
pela espiral de um movimento originalmente muito limitado. Se esse movimento
recolocou em cena o cenário revolucionário, isso foi fora de sua temporalidade
própria e sob o signo da distância entre vanguarda de direito (o partido da
classe trabalhadora) e força motriz nascida do próprio acontecimento. Muito
mais do que os modelos da revolução marxista, a propagação do movimento em 68
lembram as insurreições republicanas do século XIX: uma des-legitimação massiva
do poder estatal, que se transmite para toda a sociedade, faz aparecer por toda
parte o arbitrário e o inútil das hierarquias de um lado e, do outro, as
capacidades de invenção dos indivíduos ordinários. Não temos necessidade de
autoridade, não temos necessidade de hierarquia, podemos perfeitamente
construir um mundo sem isso: é isso que todo o mundo descobria ao mesmo tempo e
um pouco por todo lado. As alternativas cômodas (movimento trabalhador de
reivindicação contra aspirações libertárias da juventude) recobriram essa
experimentação democrática radical.
Miguel Abensour: Para minha
geração, maio de 68 funcionou como uma catarse
em relação aos anos obscuros e sinistros da guerra da Argélia, como se nós
pudéssemos finalmente nos distanciar da tortura, “o câncer da democracia”,
segundo Pierre Vidal-Naquet. Foi também a alegria de recuperar uma potência de
agir de concerto, em comum, de fazer novamente experiência da “desordem
fraternal”, alegria reforçada por uma fala generalizada; o prazer de saber
denunciar em praça pública “os crápulas estalinistas”. Foi uma impressionante
greve operária que lembrava aqueles que tinham tendência a esquecer que nossa
sociedade vivia sob a empresa do capitalismo, que a questão de sua supressão se
colocava para nós e que de tal questão não podíamos nos esquivar. Isto é, maio
de 68 é um fenômeno complexo e compósito. De fato, pudemos ver coexistir um neobolchevismo,
quero dizer, um neo-stalinismo, a dominação das organizações burocráticas
frequentemente afetadas pelo culto do chefe genial e onisciente – e, ao mesmo
tempo, uma potência corrente anti-burocrática que navegava entre a busca de uma
democracia radical e o que era denominado “a autogestão”. Duas tradições
revolucionárias coexistiam, a jacobina, ou de modo mais preciso, a
jacobina-leninista e a tradição comunalista; ao lado das organizações
trotskistas, maoístas, o movimento de 22 de março. Nessa perspectiva, seria
preciso ver até que ponto os comitês de ação, comparando-os em certo sentido
aos clubes da Revolução de 48, conseguiram instaurar uma crítica emancipadora
da forma-partido. Uma das lições de 68, rapidamente esquecida, é a reafirmação da
necessidade de uma crítica inovadora dos partidos políticos, seguindo Simone
Weil, aquela da Crítica Social,
saudada por André Breton no texto Banir
os partidos políticos. Uma outra é que a democracia parlamentar é a inimiga
mais formidável da verdadeira democracia: como prova, decididas as eleições
legislativas, a torrente democrática também voltou ao seu leito e o movimento
acabou.
Para os senhores, nem tudo é política; entretanto, os senhores se
diferenciam na maneira de situar a democracia, em sua relação com a política.
Onde hoje os senhores veem a afirmação e a experiência democráticas, no sentido
em que os senhores as entendem?
Miguel Abensour: Em todo lugar
onde os agentes sociais e políticos decidem “tomar suas tarefas nas mãos” e
lutar eles próprios contra o inaceitável, há experiência democrática, ainda que
essas lutas escapem ao controle das direções burocráticas. Podemos citar o
movimento dos sans-papiers, as ajudas
espontâneas frequentemente associativas aos migrantes, notadamente em Calais, a
luta por abrigo, os inícios de desobediência civil. Em relação a essa
experiência, duas tarefas sem impõem. No exemplo de Louis Janover, denunciar os
fenômenos de dissidência fingida com mais lucidez do que a de um neobolchevismo
que está de volta. Além da oposição muito fácil totalitarismo/democracia, fazer
a análise crítica das degenerescências da democracia, sua deriva em oligarquias
autoritárias. Três direções: crítica da representação, crítica do Estado de
direito que sob a cobertura do formalismo está pronto a integrar o que quer que
seja, mesmo a tortura, crítica da colonização da vida cotidiana. A democracia
deve recuperar seu caráter de ruptura, de interrupção da dominação.
Jacques Rancière: Parece-me que
hoje é possível distinguir os elementos sob duas formas principais. De um lado,
no sentido de refúgio das barreiras que separam os que são daqui e os que são
de outro lugar, portanto, na luta contra as leis iníquas e todas as formas de
repressão que, de fato, criam populações de segunda classe. De outro lado, nas
tentativas múltiplas de fazer viver associações, órgãos de informação, fóruns
de discussão ou ateliês de criação fora dos modelos hierárquicos e mercantis.
Essas duas formas comportam ao mesmo tempo seus riscos ou seus limites. De um
lado, há o risco de transformar a “parte dos sem-parte” em combate contra a
exclusão, de pensar a luta a partir de um “outro” definido por suas privações
mais do que a partir de um “quem quer que seja” definido por suas capacidades.
Do outro lado, há o risco de perder um sentido político global da democracia e
uma percepção global do fortalecimento e da conjunção – em um grau sem
precedentes – dos poderes oligárquicos. É por isso que creio necessário hoje
reformular a radicalidade democrática do poder de quem quer que seja na sua
formulação teórica e nas suas consequências práticas. E, de maneira correlata,
creio necessário proceder a um reexame da tradição crítica e descobrir tudo o
que numerosas formas de denunciação crítica do sistema dominante de fato trazem
à lógica desse sistema.
Jean-Luc Nancy: Tento fazer com
que essa distinção que afirmo entre política democrática e “democracia” como
nome, digamos, “porta-trecos” [fourre-tout],
valha para a abertura de uma grande virada antropológica e, se posso dizer,
metafísica. A esfera política pela qual tudo deve transitar, mas na qual nada
pode se concluir, permite o acesso a outras esferas que são aquelas em que há,
se posso dizer, cumprimento no presente: a arte, o amor, o pensamento, mesmo o
saber no seu ato puro, cumprem-se, eventualmente sem durar, ou entrando numa
outra duração que não a das esperas, das previsões etc.. Todo o “sentido” é
assim: o sentido sensível, a sensação, a sensualidade, o sentimento, a
sensibilidade, o sentido de uma “ideia” ou de uma palavra, o sentido de um
encontro, isso se cumpre. Isso se cumpre infinitamente na sua finitude ou no
seu próprio terminar – um canto, um gesto, um sopro, uma obra talvez, mas não
forçadamente. Sofremos por perder isso de vista observando uma política que nos
conduziria para um cumprimento final. Nós erramos correlativamente em
compreender como esses toque, às vezes quase insensíveis de sentido, podem
circular entre “nós”.
Se nós encontramos as justas
demarcação e emaranhamento dessas
duas ordens (a política não é tudo, mas deve poder velar por tudo, ao mesmo tempo
em que nada mais é tudo, e é nisso que ainda seria preciso muito afinar e
especificar), progrediremos talvez para o que pode nos querer essa
“democracia”, que talvez não diz nada mais do que uma mutação completa da
“civilização”. Isso não virá sem tocar também a ordem econômica e a ordem técnico-científica.
Ora a “democracia” recobre com
seu prestígio “emancipador” o fato de que seus termos fundamentais – a saber,
liberdade, igualdade, fraternidade e justiça – são uma carga metafísica
considerável, mas são também considerados como evidências: liberdade de cada um
limitada pela do outro, igualdade, fraternidade ou solidariedade de todos, por
definição, e, por fim, justiça para cada um. Como se nós soubéssemos o que são
“cada um” e “todos”, onde começa e onde termina um “indivíduo”, uma “pessoa”...
Na verdade, nós nela nos engajamos sem olhar muito uma ontologia do indivíduo,
desligada de tudo e indivisível nessa separação – a partir de que nós tornamos
necessária a questão: como, portanto, indivíduos podem se reunir?
Mas não vimos que o “indivíduo” é
uma pressuposição frágil e pouco consistente. Nós não vimos porque ele foi
produzido num tempo em que a civilização fazia uma escolha fundamental: ela não
remetia mais às marcas dadas (a hierarquia, a fidelidade, diversas figuras da
“comunidade”) mas ela escolhia, inconscientemente, uma referência de valor que
era o valor não dado, e não incomensurável, mas por se produzir e comensurável: o valor da riqueza e da invenção (velocidade,
potência, precisão) – ambas ligadas a seu conhecimento – enquanto capacidades
de auto-expansão ou de produção indeterminadas. Isso mais tarde foi nomeado
“capitalismo” e “técnica”.
Assim, liberdade, igualdade etc.,
foram desde o início as características de um sujeito do valor que, ele próprio,
tornou-se “o” valor. O “indivíduo” abstrato é apenas a imagem – no fundo muito
confusa – do agente de um tal processo: a (re-)capitalização indefinida tanto
da riqueza quanto dos savoir-faire. O
dinheiro, os transistores, as matérias plásticas ou os semicondutores, as
velocidades e as potências são livres, iguais, solidárias entre elas. Quanto à
justiça, no fundo é esse mesmo processo... Em outros termos, é a toda essa
escolha profunda da civilização que “democracia” nos remete: saberemos
reintroduzir outra coisa além do valor intercambiável e auto-expansivo, seja o
dinheiro, a precisão, a velocidade ou o indivíduo?
[para ler]
- Miguel Abensour. La Démocratie contre l’État, Marx et le moment
machiavélien. Paris: Éditions du Félin, 2004; Hannah Arendt contre la philosophie politique? Paris: Sens et
Tonka, 2006.
- Jean-Luc Nancy. La Communauté désoeuvrée. Paris:
Christian Bourgois, 1990; Vérité de la
démocratie. Paris: Galilée, 2008.
- Jacques Rancière. La Mésentente, politique et philosophie.
Paris: Galilée, 1995; La Nuit des
prolétaires, archives du rêve ouvrier. Paris: Hachette Pluriel, 2005 (1ª
edição 1981).
Conforme seus desejos, Miguel
Abensour, Jean-Luc Nancy e Jacques Rancière responderam por escrito e
separadamente as nossas questões.
[1] A Comissão Trilateral é uma fundação privada que
reagrupa, a partir de 1973, as potências dos mundos políticos, industrial,
financeiro e intelectual da Europa do Oeste, América do Norte e Ásia do
Pacífico, e que colocou os quadros da globalização econômica atual.
Entrevista publicada na revista Vacarme, nº 48, verão de 2009. Disponível em: http://www.vacarme.org/article1772.html#nh1 (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Blu. 2008.
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