terça-feira, 27 de setembro de 2011

Pequeno manual para a construção de habitações

Leve apenas o que puder ser carregado, não impeça o movimento.


O corpo é a região mais íntima e suave de concretude, não o sobrecarregue com utensílios.
Aproveitável é tudo aquilo que pode ser carregado, aquilo que não impede o fluxo das passadas.
O espaço passa, caminhar é espaçar.
Você não levará nada para o túmulo, nem a si mesmo. Descarregue-se.
Só os vestígios e marcas permanecem. Eles pertencem ao mundo.
O mundo é formado por pluralidades de relações imponderáveis.
Toda ética só pode ser efetiva, isto é, mundana e material.
Crie, mas não se fie nas obras.
A hesitação é o signo pleno da potência.
Habite os intertícios.

Esqueça.

Carta



Para minha destinatária impossível.

Querida, acho que esta é a terceira ou quarta vez que tento escrever. Parece que a distancia e o longo tempo transcorrido desde a última vez que a vi (não me lembro exatamente nem quando, nem onde... aliás, chego a pensar se alguma vez nos vimos) são impeditivos para as cartas; se bem que cartas, quando cartas eram, serviam para a imaginação locupletar essa relação espaço/tempo. Parece que o que tinha para lhe contar dos meus últimos movimentos torna-se tão pouco e tão parco diante desse grande vazio, dessa impossibilidade entre nós, que a desistência do escrever parece ser o único gesto digno desta carta (a qual, portanto, é de uma indignidade patente). Mas, talvez alguns sons da manhã que acaba de passar possam ter me servido para não rasgar esta carta que, talvez, chegue até você. Na verdade, o som provinha da minha própria voz; porém, não pensava em voz alta, nem conversava com outra pessoa. Apenas lia uma carta que acabara de escrever, a qual tinha como destino Bologna. Ao ler e reler tal carta em voz alta, prestando atenção nos detalhes que poderiam escapar ao meu italiano standard, escutava a mim mesmo com uma sensação de estranhamento completa, tanto pela língua quanto por algo que não saberia lhe explicar. É, querida, talvez tudo não tenha passado da lembrança de uma mania, de hábito de outrora, talvez perdido, que agora me tomava a contrapelo. Mas é essa a doçura da mania da insistência, esse pathos. Pathos, querida, também é paixão; aliás, em sentido médico moderno é que ele tomou os rumos da doença - discorrem sobre ele, tentam sacar dele uma verdade, fazem patologia. O emaranhado de recordações e tempos que às vezes nos tiram da seriedade do cumprimento das tarefas (por que lhe escrevo?), suscitados por quimeras, por pequenos ruídos, parece ser algo faltante no nosso mundo (possuímos um mundo em comum?). "Ya no quedan locos... Todo el mundo está cuerdo, terrible, monstruosamente cuerdo." Isso que disse León Felipe (é, ele mesmo, aquele sujeito sem rumo, o do poeta prometeico, cuja poesia farta de sangue e parábolas tanto encanta) talvez poderia ter sido a epígrafe à carta. Mas ainda se colocam epígrafes nas cartas? Querida, iria até pedir perdão pelos delírios, mas, creio eu, já o fiz e recebi lírios (quiçá tivessem sido colírios...). Talvez não deveria ter lido a carta em voz alta; talvez nem mesmo deveria ter escrito para Bologna; mas tantos talvez não foram capazes de segurar mais uma vez minha mão...

Do seu remetente impossível.

p.s.: Peço (ainda que saiba que pedidos são perdidas palavras sem volta...) para que, desta vez, se assim o desejar, rasgue esta carta. Aliás, acho que nem a deveria ter escrito...

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Supersensações

Por presença entenda-se prioritariamente uma junção espacial, efetiva colagem de descontinuidades físicas, e só secundariamente uma aproximação ou montagem temporal, já explorada pela alta modernidade. O que muda, decisivamente, neste presente, é a inexistência ou esgotamento de qualquer tipo de presença ou plenitude, substituída agora por uma aproximação ou distância de presença, que torna qualquer essere – mesmo o qualquer um, qualunque, como argumentaria Agamben – mera questão de interessere. Poderíamos nos valer de uma ficção, como Smoke, de Paul Auster, para dar conta da mínima mudança no cotidiano desenvolvido; porém, Clarice Lispector também nos oferece variados e abundantes exemplos desse processo em âmbito brasileiro. Aquilo que a autora de A hora da estrela chama de supersensações é a inversão pontual da imagem modernista de Drummond, impugnação efetiva da técnica como religião do Estado: ‘são instantâneos fotográficos das sensações-pensadas, e não a pose imóvel dos que esperam que eu diga: olhe o passarinho! Pois não sou fotógrafa de rua’. A supersensação é o avesso do signo, explicação e implicação simultâneas do mesmo e do outro, discordia concors ou dissonância irresolvida dos interstícios da própria representação. Nessa dramática do suportável e do insuportável, a supersensação afiança a condição larval do sujeito. (...) Não se confunda, portanto, a supersensação com a vivência do mistério. Ela ultrapassa inclusive a experiência de ruptura modernista e poderia ser mais cabalmente entendida como experiência interior, maléfica, pós-metafísica, que se coloca além do princípio iluminista da festa para redefinir a comunidade virtual como a da profanação e da desolação. A supersensação, como modo original e, no entanto, repetível da individuação, filia-se ao conceito de haecceitas (Duns Scot) a partir do qual Deleuze imagina uma individuação não mais da forma, porém, na forma, individuação intensiva e eventural, em que a ocorrência magnifica-se até atingir o nada.



Antelo, Raúl. O percurso da supersensações. In: Transgressão & Modernidade. Ponta Grossa: Ed. UEPG, 2001. p. 184-185. Imagem: Kandinsky.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Antes do fim


Também de suas terras foram excluídos os homens. Há alguns anos, estive com os índios wichis na praça do Congresso. Há uma semana faziam uma greve de fome reclamando pelas terras que, como tantas comunidade indígenas, foram-lhes usurpadas desde o tempo da conquista, vitimados por um genocídio que se realizou por força de guerras, epidemias desconhecidas e o inevitável cativeiro. Desde então, a submissão e o maltrato que recebem em todo o continente os obriga a sobreviver em miseráveis reservas, incapazes de satisfazer suas necessidades básicas de alimentação, saúde, habitação e educação.
Hoje, um dos graves problemas que muitas dessas comunidades devem afrontar, com um risco vertiginoso e destrutivo, é a necessidade de emigrar para as grandes cidades, onde vivem alienados, impulsionados pela fome mas também por disparatadas ilusões, como aconteceu em Lima, que nos últimos vinte anos triplicou sua população com a chegada de indígenas. Cidades nas quais vivem degradados em subúrbios onde espalham-se a cólera, a meningite, a tuberculose e todas as calamidades trazidas pela pobreza e pelo desenraizamento. Vivem, pode-se usar esse verbo em sentido amplo e misterioso, ou tristemente sobrevivem, alheios e perdidos.
Aqui mesmo, em Buenos Aires, capital de um país que em um tempo foi quase deserto, com poucas comunidades autóctones, estão chegando milhares de índios bolivianos e paraguaios que atravessam a fronteira e que são escravizados em trabalhos clandestinos por falta de documentos. Dormem pelo chão, amontoados e sujos. Perderam sua dignidade e seus rituais arcaicos.
Nas comunidades indígenas, os fatos essenciais da existência estavam vinculados ao ritmo do cosmos e à natureza. E ainda hoje, muitos deles conservam seus ritos, como os mapuches, que se preparam para receber o Ano Novo com cerimônias acompanhadas de danças e orações, e nas quais rogam aos deuses para que lhes dêem saúde e bons augúrios, para que o ano que começa seja ótimo em chuvas e colheitas. Ao contrário, os ritos e as tradições de nossas sociedades desvirtuaram-se ou converteram-se em simulacros, nos quais já ninguém crê, consequência do barbarismo tecnológico.
Dividido o pensamento mágico e o pensamento lógico, o homem permanece exilado de sua unidade primitiva; quebrou-se para sempre a harmonia do homem consigo mesmo e com o cosmos.

Ernesto Sabato. Antes del fin. Buenos Aires: La Nación, 2006. pp. 108-109. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Parágrafo dos moribundos



Há pouco vi um cão moribundo. Suas ancas decaídas, seu pelo sujo, seu movimentar-se lento e sofrido pela doença que lhe aflige, causaram-me uma espécie de mal estar. Pensava na morte e no adeus, no despedir-se das proximidades que logo tornar-se-ão distancias. A morte é sem qualquer dignidade. Ainda naquelas ruas onde hoje encontrei o cão, porém num outro tempo, eu por ali passara acompanhando uma moribunda. Era seu desejo talvez dar adeus às suas coisas, voltar para suas proximidades, àquilo que para ela eram os artefatos das suas histórias, das suas angústias, das suas lembranças da vida. Acho que ela buscava a despedida das trivialidades do cotidiano de outrora, porém, tenho a convicção de que ela sabia que por trás do aceno trivial que daria às suas coisas estava a infinita separação. Do hospital seguíamos de ambulância, ela e eu, para seu antigo lar. E naqueles instantes sabíamos, ela e eu, que nossa conversa quase faltante, nossa conversa de troca de olhares, nossa conversa infinita que se cumpria em segundos, era talvez a última e talvez o nosso adeus. E foi vendo o cão e rememorando aquele fim de tarde no qual mais um adeus acontecia que me lembrei de outras despedidas e, também, do pequeno texto de Borges sobre a despedida e seu adeus: "Decirse adiós es negar la separación, es decir: Hoy jugamos a separarnos pero nos veremos mañana. Los hombres inventaron el adiós porque se saben de algún modo inmortales, aunque se juzguen contingentes y efímeros." Da ironia borgeana acabei não escapando, afinal, do cão àquela estimada pessoa em trânsito para o adeus, nada mudava muito. Nenhuma dignidade espera-nos; nenhuma duplicação do corpo exposto à morte é capaz de revelar um sentido para as coisas além daquele vazio que sabemos ser uma constante na vida. A morte, caro Borges - e sei que sabias bem -, já está antes do fim, antes do adeus. Claro que a ironia é também em relação à memória; claro que o adeus dos efêmeros e a eternidade dos reencontros faltantes são apenas partes da mesma sensação que, creio eu, compartilhei com Borges ao ver aquele cão hoje pela manhã. Porém, não nos é permitido pedir nada na separação. Des-peço, des-pedimo-nos, entregamo-nos às ironias que nos competem: ora à vida, ora à morte.

O talismã de Furio Jesi




Quando Furio Jesi, em 1972, confia às páginas de Comunità esta Leitura do "Bateau ivre", encontra-se em um ponto decisivo do seu itinerário espiritual. Com a publicação de Germania segreta (1967) e de Letteratura e mito (1968), o enfant prodige, que aos quinze anos havia atravessado impenetráveis campos da egiptologia, já havia se imposto como o mais inteligente estudioso italiano de mitologia e ciência das religiões e, ao mesmo tempo, como uma das personalidades mais originais da cultura daqueles anos, difícil de rubricar nos limites de uma disciplina acadêmica. Se Letteratura e mito é indubitavelmente um dos livros que contam no magro balanço da ensaística italiana do século XX, é porque o autor consegue a todo instante quebrar as categorias sobre cuja oposição fundavam-se as frágeis certezas da ideologia italiana do pós-guerra: racionalismo/irracionalismo, mito/história, laicismo/religiosidade, esquerda/direita. Com um gesto simétrico àquele de Apuleio (evocado justamente no fim do livro) que, escrevendo o seu romance, de modo contínuo exorciza e profana sua própria conivência com o mundo mágico, Jesi instala seu trabalho na terra de ninguém em que essas oposições se indeterminam e revelam por fim sua secreta solidariedade (cuja saída ruinosa temos hoje diante dos olhos).

A Leitura é, nessa perspectiva, um documento único das dificuldades e dos riscos, mas também da riqueza e das isenções implícitas nessa situação extrema. De um lado, ela desenha, com efeito, uma cartografia sumária do território inominado entre a história e o mito para cuja exploração serão dedicadas as obras que Jesi conseguirá levar a termo nos oito anos que o separam da morte; de outro, ela funciona como uma espécie de talismã no qual o autor, antes de continuar a sua viagem, compendia os próprios "pensamentos secretos" e restabelece, no giro vertiginoso de poucas páginas, os paradoxos e as aporias da sua pessoal experiência de mitólogo, projetando-a sobre a de Rimbaud. Não surpreende, portanto, que o que na Leitura ocupa um lugar central seja uma aporia de fato política. Não apenas, com efeito, a evocação de Rimbaud permite-lhe escrever uma página em que vibra uma inconfundível marca de memória pessoal e que está entre as coisas mais belas já escritas sobre a relação entre cidade e política ("Pode-se amar uma cidade, podem-se reconhecer suas casas e suas ruas nas próprias memórias mais remotas e secretas; mas apenas na hora da revolta a cidade é sentida verdadeiramente como o 'haut lieu' e ao mesmo tempo como a própria cidade... Apropriamo-nos de uma cidade fugindo ou avançando no alternar-se dos ataques muito mais do que jogando como crianças nos seus jardins ou pelas suas ruas, ou por elas passeando com uma mulher..."); mas todo o texto corre sobre a oposição irresoluta entre a revolta, que é sempre experiência de uma suspensão do tempo histórico, e a revolução, definida, ao contrário, como o complexo das ações destinadas a mudar no tempo histórico uma determinada situação. À oposição revolta/revolução corresponde aquela entre "este mundo" e "outro mundo", produzida pela "máquina mitológica" que Jesi vê em função na poesia de Rimbaud.

Se não estamos enganados, a Leitura é um dos primeiros textos nos quais Jesi apresenta esse conceito, que nomeia a prestação mais própria do seu trabalho de mitólogo e que será de todo articulado no ensaio de 1973, A Festa e a máquina mitológica. Segundo Jesi, não há uma substância do mito, mas apenas uma máquina que produz mitologias e que gera a tenaz ilusão de selar o mito dentro das suas próprias e imperscrutáveis paredes. Entretanto, seria inútil opor à máquina a inexistência do mito: a antítese é/não é é impotente tanto para atingir quanto para apenas criticar eventos que se colocam por definição em um outro mundo (e dos quais, portanto, só se pode dizer, nos termos de Jesi, que aqui não-são[1] [ci non-sono]: "não há fé mais exata em relação a um 'outro mundo' que aqui não-é [ci non-è] do que a declaração que tal 'outro mundo' não é"). A potência insuperável da máquina está, com efeito, na tensão que ela produz entre mito e mitologia, entre o preexistente e o existente: "a máquina mitológica é autofundante: coloca sua origem no fora de si que é o seu interior mais remoto, o seu coração de pré-ser, no instante em que se põe em ato".

A inevitabilidade da máquina, que condena ao naufrágio tanto a revolta quanto a revolução (ambas exemplificadas em Rimbaud), é confirmada com força por Jesi em um ponto crucial da sua leitura: "De resto, uma e outra, a revolta e a revolução, não contradizem em nível conceitual o modelo proposto pela máquina mitológica. Ao contrário: na perspectiva aberta seja por uma quanto por outra, esse modelo acaba por identificar-se com o a priori que permanece o fundamento sólido e obscuro do processo gnosiológico. Diante da existência do lugar comum - ou da essência do mito - não há autêntica alternativa conceitual, mas apenas alternativa gestual, de comportamento, mas de comportamento que permanece, entretanto, circunscrito dentro da caixa delimitada pelas paredes da máquina mitológica. Revolta e revolução, em nível conceitual, continuam a ser nada além do que diversas articulações (suspensões do tempo; tempo 'justo') do tempo que vige no interior daquela caixa."

Ainda que Jesi nunca o diga explicitamente, é lícito supor que esse "fundamento sólido e obscuro" do processo gnosiológico não seja, em última análise, nada mais que a linguagem. Toda língua (poder-se-ia dizer parafraseando uma tese de Humboldt que Jesi amava citar) lança ao redor do povo que a fala uma espécie de círculo mágico, do qual não é possível sair a não ser com a condição de entrar no círculo de uma outra língua e de um outro povo. O mito é esse círculo mágico, e a esfera das coisas que aqui não-são [ci non-sono] com a qual ele se identifica é aquela que a linguagem humana incessantemente produz e pressupõe no seu coração de não-ser.

É possível sair do círculo, "quebrar a raiz do tempo" que se esconde entre as paredes impenetráveis da máquina (que, segundo Jesi, assinalam, como aquelas da linguagem, "a marca de confim do ser")? É no fim da Leitura que Jesi parece acenar para uma possibilidade desse gênero escrevendo: "Quebrar essa raiz significaria dispor de uma linguagem ou de um complexo de gestos tais ao ponto de afrontar a máquina mitológica em um plano que consentisse declarar ao mesmo tempo a existência e a não-existência daquilo que a máquina diz conter...". Dois anos depois, no ensaio sobre Kerényi, ele cita a frase com a qual o grande mitólogo compendiava o justo comportamento em relação ao "mito da morte" na consciência de que "a morte é algo e ao mesmo tempo nada".

Nesse sentido, a Leitura, na biografia intelectual de Jesi, representa por certo um daqueles momentos privilegiados em que é dado a um autor contemplar lucidamente, por um átimo, numa espécie de desencantada divinização, o próprio limite último e de tocar, por assim dizer, a raiz mais íntima da sua experiência da linguagem. Juntamente a esse limite, no qual o coração da máquina coincide com a sua própria existência, o mitólogo deve depor os seus instrumentos. A existência e a não-existência da máquina circunscrevem agora sua própria estratégia vital, decidem-se na fronteira da sua própria linguagem.



Giorgio Agamben. Il talismano di Furio Jesi. in.: Furio Jesi. La Lettura del "Bateau Ivre" di Rimbaud. Macerata: Quodlibet, 1996. pp. 5-8. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.



Imagem: Tiziano Vecellio. Baco e Ariadne. 1520-1522. National Gallery, Londres.





[1] N.T.: No original: ci non-sono. Agamben faz referência ao jogo que Jesi faz ao utilizar uma forma de negação invertida para os termos “c’è” e “ci sono” (indicativos da presença de algo em algum lugar). De fato, um uso mais comum seria “no c’è” ou “non ci sono”. Ou seja, a expressão ganha, em Jesi, uma função conceitual. Além disso, é importante lembrar que a partícula “ci” também pode ser traduzida por “para nós” (num jogo linguístico ambíguo como poderia sugerir uma outra construção possível da frase: "... que não são para nós"). Ou seja, traduzir por “aqui não-é” ou “aqui não-são” não dá a dimensão da complexidade conceitual que Jesi pretende com o modelo máquina mitológica.   

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Carta da cura

Caro Professor Kerényi,

agora que a sua visita a Turim e o nosso encontro apenas aconteceu, não quero tardar em manifestar-lhe toda a alegria de o ter tido aqui e de ter podido passear com o senhor pelas mesmas ruas que percorria quando menino, quando os livros de Kerényi me iniciavam à ciência das religiões e do mito. O Museu Egípcio foi o lugar em que pela primeira vez conheci o rosto do passado, e não poderia chamar apenas "acaso" a sorte que tive em reencontrar-me naquele lugar juntamente ao meu mestre, que me ensinou a reconhecer nas aparências vivas do passado a promessa de uma "cura" profunda.

As razões do pensamento humano são sempre secretas e as conclusões nascem de longas metamorfoses que, por toda sua duração, deixam-nos "aterrorizados e temorizados". No instante em que me sentia mais fraco para reagir contra o mito "não genuíno", deformado através da lente do demonismo, estava na realidade mais próximo do início da "cura": no instante em que o demônio não teria mais aparecido para mim como parte integrante do deus. Mas a consciência dessa "cura" tive somente quando o senhor, diante do quadro pintado por Appiani[1], disse-me: "Esta é mitologia genuína. E não há demônios". Também o raptor de Kore, como o senhor me fez notar, era um deus[2].

Mesmo que possam parecer retóricas – mas não acredito que assim pareçam para o senhor –, as suas palavras diante daquelas pinturas e também as que o senhor me disse sobre Thomas Mann e as “Flores”[3], revelaram-me o que já dentro de mim estava acontecendo, isto é, que o mito – o mito genuíno – não é a essência do bem e do mal afrontados e conjuntos, mas “um ponto mais no alto”, no qual o demônio não pode existir, já que o demônio pode estar somente dentro de nós, como um trágico “erro de visão” ou como uma força para ser vencida, que jaz no nosso olhar: não no horizonte da realidade.

Compreendo claramente que não me exprimo nesta circunstância com a necessária clareza; mas estou certo de que o senhor compreenderá e acolherá – não somente como ato formal – o meu reconhecimento. Se hoje posso afrontar com uma serenidade conquistada pela primeira vez a realidade da vida e do ser é graças ao seu ensinamento, o qual não se retirou de mim nem mesmo quando o meu pensamento, ainda distante da “cura”, contrastava com as suas certezas.

Agora o senhor se prepara para lembrar os noventa anos do nascimento de Thomas Mann, o qual também foi meu guia tão profundo que às vezes não soube compreendê-lo e pertenci ao grupo dos seus mal-entendedores. Ao senhor devo também isto: ter voltado a ler Thomas Mann com ânimo mudado, disposto a nele acolher o ensinamento e não a deformar-lhe, por ignorância e “doença”, as palavras.

Quando o senhor tomar a palavra em Zurique contará certamente com a aprovação de tantos, vivos ou já desaparecidos, fiéis àquele grande espírito. Por pouca e pouco insignificante que seja a minha devoção, diante daquela de tantos “iluminados”, queira crer neste instante, caro professor, também na adesão do meu espírito “curado”; e sempre me tenha, juntamente com sua esposa,

do seu,

Furio Jesi.

p.s.: Um pedido, talvez um tanto desenvolto: poderia ter, caro professor, uma fotografia sua para conservar entre as lembranças mais caras da minha devoção por aquilo em que o senhor crê? Ser-lhe-ei muitíssimo grato.



[1] As pinturas de Albani (não Appiani) representam os quatro elementos. [O nome é corrigido a mão no rascunho conservado entre as cartas de Jesi].

[2] Cfr. F. Jesi, K. Kerényi – I pensieri segreti del mitologo, em Materiali mitologici, Einaudi, Torino, 1979, pp. 12. sgg.: “No fim de maio de 1965 estava junto com Kerényi na Pinacoteca Sabauda de Turim. Kerényi parou longamente diante dos quadros mitológicos de Francesco Albani; olhava, então, como lhe era de costume e tomava rápidas e densas notas numa caderneta. Parou especialmente diante de O rapto de Proserpina. Perguntava-me e, sobretudo, perguntava-lhe como ele se colocava diante de uma evocação de tonalidade extremamente serena da irrupção ‘demoníaca’ da potência ínfera por excelência. A resposta de Kerényi vem rápida, como se fosse para uma pergunta óbvia: ‘Hades não era um demônio, mas um deus’”. Na sequência, Jesi cita várias passagens da carta de Kerényi de 25 de maio de 1965 que documentam a opinião de Kerényi sobre a diferença entre o que no mito é demoníaco e o que é divino.

[3] Alusão ao texto do discurso pelos noventa anos de Thomas Mann que Kerényi estava escrevendo exatamente durante a visita a Turim e que se inspira no drama Fiorenza de Thomas Mann.

Furio Jesi; Károly Kerényi. Demone e mito. Carteggio 1964-1968. A cura di Magda Kerényi e Andrea Cavalletti. Macerata: Quodlibet, 1999. pp. 60-62. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

Imagem: Francesco Albani. Adônis guiado até Vênus por Cupido. 1600. Musée du Louvre, Paris.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Parágrafo sobre a queda


Pensei que talvez pudesse escrever poesias. No abismo febril das impressões e do cotidiano, nesta cidade que é um deserto de amontoados de solidões, talvez a única saída para conseguir viver sem a ilusão de que estamos em ascensão, ao invés de em franca queda no abismo, seja buscar a etimologia dos sentimentos, isto é, como falou Pasternak, fazer poesia. Mas será que conseguimos apreender por meio de um discurso (logos) algo de real (ètymon) das palavras (estas que são, digamos, a matéria indissociável do discurso)? Mesmo que, ou, ainda que, tal discurso se diga poético, como isso é possível? Desde nossa entrada na existência começamos a não existir. É a dubiedade, é a separação brusca que nos tinge com as cores das coisas que achamos que são e daquelas que dizemos que são, o que no fundo é a mesma coisa. Se existimos já na queda no não existir, como ainda queremos ser? Como queremos subir o abismo se todo o peso na existência nos carrega para seu fundo - também ele, o fundo, inexistente? A marcha da história não encontra seu ritmo numa composição de passos que tentam escalar o abismo em conjunto - esse puro mito -, nem nas impressões dadas por aquilo que pensamos real e existente; tampouco nos rostos introspectivos dos outros que passam por nós como bolhas de sabão que a qualquer momento estalarão e, no máximo, deixarão suas pequenas gotículas como herança - que, tão logo herdada, evapora. A marcha é uma queda que pretende nos manter solitários uns aos outros. Porém, ainda é possível contar com outros decadentes, com outros corpos que descem e que também têm suas suspeitas de que é preciso tentar olhar para o movimento da queda encarando a dubiedade do nosso falimento. Não se trata de viver uma derrota, nem de choramingar uma vitória que poderia ter sido; também não é uma entrega à melancolia da espera pelo fim (e da perda de um estado prístino ideal), mas, minimamente, um tentar encarar a queda sabendo que é nela que nossos possíveis se dão, que nossos outros nos aparecem e que o real e o discurso não passam de uma hipótese poética.


Imagem: Hieronymus Bosch. Inferno: a queda dos danados. 1500-1504, Palazzo Ducale, Venezia.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Carta a Dulcinéia del Toboso





Des Esseintes, Quixote, Teste, madame Bovary & Bouvard e Pecuchet, Julien Sorel, Mersault, o Príncipe Michtin, Bartleby

Não há natureza que os contenha, são seres de hybris, de excesso - e a loucura é um excesso - de sonambulismo

Crias artificiais de uma escrita ensimesmada, de uma literatura em estado bruto - e por isso destilada em tempo e esquecimento - porém cega diante do menor, mortal e mais trivial

Há esquinas insípidas e talagarelice vazia por todos os lados. Há amores malfeitos, estados depressivos, imobiliárias e bancos, delegacias de polícia, salas de aula e de hospital, tumores e quimios, extratos de condomínio e cartões de crédito


Fala-se, fala-se, fala-se!

É a luta agônica contra esta tagarelice (ela mata a conta-gotas) que os move. Serão engolfados, mas não há tragédia. As armas são as mesmas. Seu triunfo é o tremor e a hesitação.

La ragazza indicibile II


Na poesia Eleusis, dedicada ao amigo Hölderlin, Hegel, então com vinte e seis anos, dirigindo-se a Ceres (“tu que em Eleusis tinhas o trono”) evoca “a profundidade do indizível sentimento” com relação ao qual o iniciado, para quem o discurso aparece como uma culpa, prefere “fechar a boca vivo”. Nos versos que seguem, “aquilo que o iniciado vetou a si mesmo” define a tarefa do filósofo, que custodia na memória “o que foi visto, ouvido e sentido na sagrada noite”, para que não se torne “brinquedo e mercadoria do sofista” e, esvaziado de todo sentido, sobreviva apenas “no eco de estranhas línguas.”[1]
Dez anos depois, no início da Fenomenologia do Espírito, Hegel volta a evocar o mistério eleusino; mas, dessa vez, o pathos do indizível dá lugar a uma visão mais desencantada e quase irônica na qual, juntamente aos iniciados, também os animais parecem participar da sabedoria mistérica: “Àqueles que afirmam a verdade e a realidade dos objetos sensíveis, é possível dizer-lhes que devem voltar à escola primária da sabedoria, isto é, aos antigos mistérios eleusinos de Ceres e de Baco e que devem primeiro aprender o mistério do comer o pão e do beber o vinho; já que o iniciado nesses mistérios chega não apenas a duvidar da realidade das coisas sensíveis, mas também a desesperar por elas. Por um lado, cumpre ele próprio a sua negatividade, por outro, vê que são essas mesmas a cumpri-la. Também os animais não estão excluídos dessa sabedoria, mas se mostram iniciados nela no modo mais profundo, porque não permanecem diante das coisas sensíveis como se estas fossem em si, mas, não esperando essa realidade e na absoluta certeza da sua negatividade, apreendem-nas sem hesitar e as consomem. E a natureza inteira celebra esses mistérios a todos revelados, que ensinam qual é a verdade das coisas sensíveis.”[2]
Colli apresentou a fecunda intuição de que o culto de Deméter tivesse a ver com uma “estreita relação religiosa entre esfera divina e esfera animal.”[3] A figura de Deméter, invocada em Eleusis como potnia, “senhora”, remeteria ao culto arcádio da deusa “senhora dos animais”. A causa da indecidibilidade deveria então ser procurada “em certo caráter do mito que está na base”, que concerne “ao acasalar-se em várias formas do deus com o animal”[4]: Touro e Pasífae em Creta; Posídon – em forma de cavalo – e Deméter em Arcádia; Zeus que copula em forma de serpente com Reia e em seguida com Perséfone, nascida daquela união. Além disso, aceitando-se a identificação de Dionísio com o Minotauro, “será lícito dizer que a filha da copulação arcádio, Despina-Kore, unindo-se com Zeus serpente na cópula eleusina, fará nascer o mesmo filho que já nascia da primordial copulação cretense na brutal forma conjunta do deus-animal, isto é, Dionísio, o deus ‘dos muitos nomes’.”[5]
Dionísio, segundo os testemunhos antigos e os estudiosos modernos, estava presente em Eleusis. Iaco, que aparece nas histórias de Deméter, é identificado com Dionísio já em Sófocles. E Dionísio, escreve Colli, “não é um homem: é um animal e ao mesmo tempo um deus, assim manifestando os pontos terminais das oposições que o homem carrega em si.”[6]
Em grego, animal diz-se apenas “vivente” (zoon) e, para um grego, o deus é por certo um “vivente” (mesmo se a sua zoe é ariste kai aidios, “ótima e eterna”). Ao serem ambos “animais”, isto é, viventes, o homem e o deus se comunicam. Por isso, ao unir-se sexualmente aos humanos o deus assume a forma animal.
Segundo Xenócrates, uma das três leis transmitidas por Triptólemo em Eleusis era: “não fazer mal aos animais (zoa me synesthai)”. Rohde está equivocado quando observa que “é inconcebível que em Eleusis se impusesse aos iniciados, com base no modelo órfico, uma perpétua abstinência de alimentar-se de carne... Pode ser, de resto, que o preceito (que, com efeito, não fala de modo claro do matar animais) tivesse outro significado e quisesse recomendar ao camponês... tratar com cuidado os seus animais.”[7]
O preceito é colocado em relação com a outra lei de Triptólemo mencionada por Xenócrates, a qual aconselha “honrar os deuses com os frutos da terra (theous karpois agallein).” A economia das relações entre o homem e o divino era regulada, na Grécia, pelo sacrifício animal. O homem é um vivente que mata outros viventes para definir sua relação com o deus. Em Eleusis, durante a iniciação, não acontecem sacrifícios (agallein não pertence ao vocabulário do sacrifício e significa “adorno, dou alegria”), porque em questão está o próprio limiar que divide e une o animal com o homem (e com o deus) e o homem (e o deus) com a sua animalidade. A “menina indizível” é esse limiar. Do mesmo modo como confunde e indetermina a cesura entre a mulher e a criança, a virgem e a mãe, assim também o faz com aquela entre o animal e o humano e entre este e o divino.
Nas fontes órficas Kore é keroessa, “munida de corno” (Hymn. Orph., 29, 11). E Zeus contra ela usa violência em forma de serpente (biasamenos kai tauten en drakontos schemati).
Os gregos tinham acesso tanto à animalidade quanto à divindade, mas não ao humano como esfera autônoma. Cristo nos separou tanto do animal como do deus e nos condenou ao humano.
Nos mistérios, os gregos experimentavam os extremos da condição humana, esta que, sem aqueles, era para eles impensável: o deus e o animal. O vivente que tinha se perdido na animalidade se reencontrava no divino e, ao contrário, aquele que tinha se perdido no divino se reencontrava na animalidade. Esse é também o sentido do labirinto, no centro do qual o herói encontra um homem com cabeça de touro, Astério, o minotauro.
Rohde suspeita das interpretações de “certos modernos mitólogos e historiadores”, segundo os quais os mistérios eleusinos seriam uma encenação da “religião natural grega, que eles descobriram. Deméter seria a terra, Kore-Perséfone, sua filha, a semente, o rapto e o retorno de Kore significariam o enterramento da semente na terra e o despontar do gérmen, ou, com uma formulação mais ampla, ‘o anual perecer e renovar-se da vegetação’... imagem da sorte da alma humana, a qual também desaparece para reviver.”[8] Essa interpretação é tão tenaz que, depois de ter sido retomada por Frazer no Ramo de ouro, aparece em forma ainda mais refinada em Kerényi, que fala, a propósito de Kore, de um “abismo da semente”,[9] símbolo daquilo que supera o indivíduo e do incessante surgir da vida a partir da morte. Também essa interpretação, aparentemente mais profunda, tem o defeito de pressupor um significado escondido, do qual o mito seria apenas a cifra.
“A vida, uma vez que é uma iniciação (myesis) e o mais perfeito rito mistérico (teleten teleiotaten), deve ser plena de serenidade e de alegria... Nas iniciações nós sentamos em religioso silêncio (euphemoi) e em bela ordem; a ninguém vem em mente lamentar-se durante a iniciação, nem se geme quando se contempla as festas píticas ou quando se bebe nas festas a Chronos. Pelo contrário, as festas em que o deus prepara e nas quais nos inicia, os homens as contaminam vivendo entre lamentos, preocupações e dificuldades” (De phil., fr. 14).
Viver a vida como uma iniciação. Mas a quê? Não a uma doutrina, mas à vida mesma e à sua ausência de mistério. Aprendemos, assim, que não há nenhum mistério, apenas uma menina indizível.
Os homens são viventes que, diferentemente dos outros animais, devem ser iniciados na sua vida, isto é, devem primeiro perder-se no humano para reencontrar-se no vivente e vice-versa.

[1] G.W.F. Hegel, Frühe Schriften, in Werke in zwanzig Bänden (1832-1845), vol. I, Frankfurt am Main 1986, pp. 231-233.
[2] G.W.F. Hegel. Phänomenologie des Geistes, in Werke, cit., vol. III, p. 91.
[3] G. Colli, La sapienza grega, vol. I, Milano 1977, p. 382.
[4] Ivi., p. 383.
[5] Ibidem.
[6] Ivi, p. 15.
[7] E. Rohde, Psyche, cit., p. 302.
[8] Ivi. p. 294.
[9] K. Kerényi, Prolegomeni, cit., p. 218.
Giorgio Agamben; Monica Ferrando. La Ragazza Indicibile. Mito e mistero di Kore. Milano: Mondadori Electa, 2010. pp. 25-32. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko
Imagem: Tintoretto. A criação dos animais. 1551-52. Galeria dell'Accademia, Venezia.

domingo, 11 de setembro de 2011

La ragazza indicibile


O que os iniciados faziam na noite eleusina é sempre expresso com o verbo "ver" (opopen: Hymn. Cer., v. 480; idon: Pind., fr. 137; derchthentes: Soph., fr. 837) e "visão" (epopteia) é o termo que designa o estado supremo da iniciação. Epoptes, "iniciado", significa também "espectador" e os mistérios que os iniciados contemplavam eram espécies de "quadros viventes", os quais comportavam gestos (dromena), palavras (legomena) e exibição de objetos (deiknymena).
Daqui a pertinência do nexo entre mistérios e pintura, tão presente na arte do Renascimento, a cuja explicitação Wind dedicou um livro famoso. Se o conhecimento supremo tinha sido assemelhado pela tradição filosófica à visão mistérica, se ele não tinha caráter discursivo mas era contraído em ver, tocar e nomear, então a pintura oferecia para esse conhecimento a expressão talvez mais adequada. A tradição já consolidada dos estudos da escola de Warburg veio confirmar oportunamente essa tese.
Todavia, é preciso resguardar-se de um risco que até os estudiosos mais atentos nem sempre conseguiram evitar. Assim, segundo Wind, "o iconógrafo que procura reconstruir o tema perdido de uma pintura do Renascimento" se encontra confrontado com uma tarefa paradoxal. Para “remover o véu de obscuridade com o qual não somente a distância temporal (por si só já suficiente para esse fim) mas também a ambiguidade no uso da metáfora tinham encoberto as grandes pinturas renascentistas", ele deve apreender nos temas e nos significados escondidos mais do que o pintor mesmo podia saber. Ainda que aquelas obras tivessem sido produzidas no contexto de uma cultura que considerava necessárias obscuridade e mistério, o iconógrafo "deve lutar para a clareza" contra a intenção dos autores, porque "esteticamente falando, não há dúvidas de que a presença de um resíduo de significado irresoluto é um obstáculo ao desfrute da arte."[1]
Contra esse preconceito é bom recordar que as alegorias de Lotto ou de Tiziano, como as iniciações eleusinas, não são “misteriosas” porque têm um conteúdo doutrinal escondido, que a acribia do intérprete deve trazer à luz, mas porque nelas conteúdo e forma, como em Eleusis, tornaram-se indecidíveis. O terceiro, que aparece na sua recíproca neutralização, é propriamente misterioso porque, nele, não há mais nada de escondido. Não importa qual pudesse ser a opinião dos comitentes e dos doutos da época, aquelas imagens atingiram o ponto no qual, já que no plano do discurso não há mais nada para dizer, pensamento e visão coincidem. Forma e conteúdo coincidem não porque o conteúdo aparece agora sem véu, mas porque, segundo o significado literal do verbo latino concidere, esses “caem juntos”, declinam-se e aquietam-se. O que agora contemplamos é uma pura aparência. A menina indizível se mostra.
Por isso, não podemos exprimir o conhecimento que acontece em tais pinturas de forma discursiva; podemos, eventualmente, apenas nomeá-lo em um título.
Se é verdade que, de todo modo, as alegorias renascentistas oferecem ao pensamento uma expressão mais adequada do que muitos tratados de filosofia a elas contemporâneos, então não apenas a pintura é restituída, nessa perspectiva, ao seu estatuto próprio, mas também a própria natureza do pensamento deve por elas acabar iluminada. Talvez as telas de Botticelli e de Tiziano, longe de precisarem ser esclarecidas por meio dos escritos de Ficino ou de Pico, podem nos ajudar a compreender o pensamento que aqueles tratados não conseguem dizer adequadamente. Como escrevia Kerényi: “No quadro de Botticelli (O nascimento de Vênus) há ao menos tanta mitologia viva quanto há no hino homérico.”[2]
Wind mostrou como a tradição mistérica pagã havia exercido, através de Plotino e Proclo, uma influência decisiva sobre os líderes do idealismo alemão, em particular no modo com o qual Hegel e Schelling pensaram a dialética e o processo do pensamento segundo o modelo da coincidentia oppositorum. Schelling – que compara esse processo aos “mistérios de Osíris”, nos quais está em questão a fragmentação e a recomposição do corpo de um deus – cita (na tradução de Jacobi) uma passagem de Bruno em que “o mais profundo mistério da arte” consiste em pensar a extrema divergência dos opostos e, ao mesmo tempo, o ponto da sua coincidência. O terceiro, no qual os opostos coincidem, não pode ser homogêneo àqueles e requer uma diversa forma de exposição, na qual os opostos são conjuntamente neutralizados e mantidos. Há o conteúdo, mas nada o contém; há a forma, mas não é mais forma de nada, expõe somente a si mesma.
A ideia de uma filosofia por imagens, que Benjamin parece por vezes evocar, não é uma metáfora, mas deve ser tomada literalmente. A “imagem de pensamento”, como a alegoria renascentista, é um mistério no qual o que não pode ser exposto discursivamente  brilha por um átimo através das ruínas da linguagem.

[1] E. Wind. Pagan Mysteries in the Renaissance, Harmondsworth, 1967, p. 15.
[2] C.G. Jung; K. Kerényi, Einführung in das Wesen der Mytologie, Amsterdam-Leipzig 1941 (III ed. Zürich 1951). p. 153.

Giorgio Agamben; Monica Ferrando. La ragazza indicibile. Mito e mistero di Kore. Milano: Mondadori Electa, 2010. pp. 21-25. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.
Imagem: Tiziano Vecellio. Sísifo. 1548-49. Museo del Prado, Madrid.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Parágrafo dos fantasmas


Era uma tarde em que a chuva não dava tréguas e a solidão parecia ser um modo de entrar em si e permanecer em silêncio. Deitado, fumando e soltando a fumaça de seu cigarro lentamente contra a luminosidade pastosa daquele dia, tentava não pensar em como havia passado os últimos anos, em como tinha transcorrido o tempo desde que descobrira o amor em olhos outros e, sobretudo, em como parar de pensar. Era claramente uma tentativa fadada ao insucesso e ele sabia disso. Sabia também que aquele seu pensamento sobre o não pensar era uma espécie de ingresso numa fuga dos outros, um ensaio por esconder-se da multidão, do cheiro pestilento de gente. Tinha em mente que a vida era uma enfermidade da mente, e, portanto, tratava de mentir pra si mesmo. A luz agora entrava de forma que sua incidência na fumaça criava, tal como o fazem as nuvens, efêmeras formas inusitadas. Distraiu-se com elas e relaxou; o pensamento agora o tomava e ele não mais tentava controlá-lo ou torná-lo um não pensar. Era atravessado pelas imagens que via e sentia que estas eram uma constante ameaça que parecia vir de longe e que o rondava, como que insultando o sossego do seu estar só. Viver era para ele indefinível e a loucura da existência era como refratária das misteriosas formas de fumaça. Novamente voltou a pensar que a plena solidão poderia lhe dar acesso ao tão esperado silêncio. Mas tal vislumbre nada mais era do que a luz que, invadindo seu quarto e sua intimidade, fazia com que sentisse o absurdo da existência como luminoso e vazio, como um dar-se conta de si mesmo. Porém, sentia que não existe plena solidão, pois sempre se divide o espaço íntimo com espectros, sejam aqueles formados pela fumaça ou os que apareciam na zona, também ela esfumaçada e obscura, da memória. Os fantasmas estão sempre de prontidão e, na maneira mais sorrateira, ao perceberem o isolamento físico, inventam a solidão na qual somente eles podem comparecer. E pensava: "Será que na solidão também falamos ou falam-nos somente os fantasmas?" O estar só agora se mostrava para ele como uma história contada para si mesmo e perpassada por fantasmas, por uma multidão de espectros. Era a enfermidade da sua mente convertendo-se em espectros, mas espectros que são vivos; era então a vida uma emanação delirante das mentes adoentadas dos homens; era a fumaça no quarto a ausência de pensamento por ele tão procurada e que, porém, para ele continuará a ser inatingível; mas a procura era a sua invenção para manter-se afastado do desespero sem, no entanto, gerar qualquer esperança. A luminosidade diminui e ele se adormentou; e a fumaça acabou tão logo começara a sonhar. Aí sim o reino dos fantasmas estava completo e com todas as fronteiras fechadas. A luz do delírio acabou vertendo nele palavras as quais aqui foram derramadas...

Imagem: Gueorgui Pinkhassov. Beirute, Líbano. Trabalhador descansando no Hotel Saleh, 1996.