Quando Furio Jesi,
em 1972, confia às páginas de Comunità esta Leitura do "Bateau
ivre", encontra-se em um ponto decisivo do seu itinerário espiritual.
Com a publicação de Germania segreta (1967) e de Letteratura e mito (1968),
o enfant prodige, que aos quinze anos havia atravessado impenetráveis
campos da egiptologia, já havia se imposto como o mais inteligente estudioso
italiano de mitologia e ciência das religiões e, ao mesmo tempo, como uma das
personalidades mais originais da cultura daqueles anos, difícil de rubricar nos
limites de uma disciplina acadêmica. Se Letteratura e mito é
indubitavelmente um dos livros que contam no magro balanço da ensaística
italiana do século XX, é porque o autor consegue a todo instante quebrar as
categorias sobre cuja oposição fundavam-se as frágeis certezas da ideologia
italiana do pós-guerra: racionalismo/irracionalismo, mito/história,
laicismo/religiosidade, esquerda/direita. Com um gesto simétrico àquele de
Apuleio (evocado justamente no fim do livro) que, escrevendo o seu romance, de modo contínuo exorciza e profana sua própria conivência com o mundo mágico,
Jesi instala seu trabalho na terra de ninguém em que essas oposições se
indeterminam e revelam por fim sua secreta solidariedade (cuja saída ruinosa
temos hoje diante dos olhos).
A Leitura é,
nessa perspectiva, um documento único das dificuldades e dos riscos, mas também
da riqueza e das isenções implícitas nessa situação extrema. De um lado, ela
desenha, com efeito, uma cartografia sumária do território inominado entre a
história e o mito para cuja exploração serão dedicadas as obras que Jesi
conseguirá levar a termo nos oito anos que o separam da morte; de outro, ela
funciona como uma espécie de talismã no qual o autor, antes de continuar a sua
viagem, compendia os próprios "pensamentos secretos" e restabelece,
no giro vertiginoso de poucas páginas, os paradoxos e as aporias da sua pessoal
experiência de mitólogo, projetando-a sobre a de Rimbaud. Não surpreende,
portanto, que o que na Leitura ocupa um lugar central seja uma aporia de fato política. Não apenas, com efeito, a evocação de Rimbaud permite-lhe
escrever uma página em que vibra uma inconfundível marca de memória pessoal e
que está entre as coisas mais belas já escritas sobre a relação entre cidade e
política ("Pode-se amar uma cidade, podem-se reconhecer suas casas e suas ruas nas próprias memórias mais remotas e secretas; mas apenas na hora da
revolta a cidade é sentida verdadeiramente como o 'haut lieu' e ao mesmo
tempo como a própria cidade... Apropriamo-nos de uma cidade fugindo ou
avançando no alternar-se dos ataques muito mais do que jogando como crianças
nos seus jardins ou pelas suas ruas, ou por elas passeando com uma
mulher..."); mas todo o texto corre sobre a oposição irresoluta entre a revolta,
que é sempre experiência de uma suspensão do tempo histórico, e a revolução,
definida, ao contrário, como o complexo das ações destinadas a mudar no tempo
histórico uma determinada situação. À oposição revolta/revolução corresponde
aquela entre "este mundo" e "outro mundo", produzida pela
"máquina mitológica" que Jesi vê em função na poesia de Rimbaud.
Se não estamos enganados, a Leitura é um dos primeiros textos nos quais Jesi apresenta
esse conceito, que nomeia a prestação mais própria do seu trabalho de mitólogo
e que será de todo articulado no ensaio de 1973, A Festa e a máquina
mitológica. Segundo Jesi, não há uma substância do mito, mas apenas uma
máquina que produz mitologias e que gera a tenaz ilusão de selar o mito dentro
das suas próprias e imperscrutáveis paredes. Entretanto, seria inútil opor à
máquina a inexistência do mito: a antítese é/não é é impotente tanto para
atingir quanto para apenas criticar eventos que se colocam por definição em um
outro mundo (e dos quais, portanto, só se pode dizer, nos termos de Jesi, que aqui
não-são
[ci non-sono]: "não há fé mais exata em relação a um 'outro mundo' que
aqui não-é [ci non-è] do que a declaração que tal 'outro mundo' não é"). A
potência insuperável da máquina está, com efeito, na tensão que ela produz entre
mito e mitologia, entre o preexistente e o existente: "a máquina
mitológica é autofundante: coloca sua origem no fora de si que é o seu
interior mais remoto, o seu coração de pré-ser, no instante em que se põe em
ato".
A inevitabilidade da
máquina, que condena ao naufrágio tanto a revolta quanto a revolução (ambas
exemplificadas em Rimbaud), é confirmada com força por Jesi em um ponto crucial
da sua leitura: "De resto, uma e outra, a revolta e a revolução, não
contradizem em nível conceitual o modelo proposto pela máquina mitológica. Ao
contrário: na perspectiva aberta seja por uma quanto por outra, esse modelo
acaba por identificar-se com o a priori que permanece o fundamento
sólido e obscuro do processo gnosiológico. Diante da existência do lugar comum
- ou da essência do mito - não há autêntica alternativa conceitual, mas apenas
alternativa gestual, de comportamento, mas de comportamento que permanece,
entretanto, circunscrito dentro da caixa delimitada pelas paredes da máquina
mitológica. Revolta e revolução, em nível conceitual, continuam a ser nada além
do que diversas articulações (suspensões do tempo; tempo 'justo') do tempo que
vige no interior daquela caixa."
Ainda que Jesi nunca
o diga explicitamente, é lícito supor que esse "fundamento sólido e
obscuro" do processo gnosiológico não seja, em última análise, nada mais
que a linguagem. Toda língua (poder-se-ia dizer parafraseando uma tese de
Humboldt que Jesi amava citar) lança ao redor do povo que a fala uma espécie de
círculo mágico, do qual não é possível sair a não ser com a condição de entrar
no círculo de uma outra língua e de um outro povo. O mito é esse círculo
mágico, e a esfera das coisas que aqui não-são [ci non-sono] com a qual ele se
identifica é aquela que a linguagem humana incessantemente produz e pressupõe no seu
coração de não-ser.
É possível sair do
círculo, "quebrar a raiz do tempo" que se esconde entre as paredes
impenetráveis da máquina (que, segundo Jesi, assinalam, como aquelas da
linguagem, "a marca de confim do ser")? É no fim da Leitura que Jesi parece acenar para uma
possibilidade desse gênero escrevendo: "Quebrar essa raiz significaria
dispor de uma linguagem ou de um complexo de gestos tais ao ponto de afrontar a
máquina mitológica em um plano que consentisse declarar ao mesmo tempo a
existência e a não-existência daquilo que a máquina diz conter...". Dois
anos depois, no ensaio sobre Kerényi, ele cita a frase com a qual o grande
mitólogo compendiava o justo comportamento em relação ao "mito da
morte" na consciência de que "a morte é algo e ao mesmo tempo
nada".
Nesse sentido, a Leitura,
na biografia intelectual de Jesi, representa por certo um
daqueles momentos privilegiados em que é dado a um autor contemplar
lucidamente, por um átimo, numa espécie de desencantada divinização, o próprio
limite último e de tocar, por assim dizer, a raiz mais íntima da sua
experiência da linguagem. Juntamente a esse limite, no qual o coração da
máquina coincide com a sua própria existência, o mitólogo deve depor os seus
instrumentos. A existência e a não-existência da máquina circunscrevem agora
sua própria estratégia vital, decidem-se na fronteira da sua própria linguagem.
Giorgio Agamben. Il
talismano di Furio Jesi. in.: Furio Jesi. La Lettura del "Bateau
Ivre" di Rimbaud. Macerata: Quodlibet, 1996. pp. 5-8. Tradução:
Vinícius Nicastro Honesko.
Imagem: Tiziano
Vecellio. Baco e Ariadne. 1520-1522. National Gallery, Londres.