terça-feira, 27 de setembro de 2011

Carta



Para minha destinatária impossível.

Querida, acho que esta é a terceira ou quarta vez que tento escrever. Parece que a distancia e o longo tempo transcorrido desde a última vez que a vi (não me lembro exatamente nem quando, nem onde... aliás, chego a pensar se alguma vez nos vimos) são impeditivos para as cartas; se bem que cartas, quando cartas eram, serviam para a imaginação locupletar essa relação espaço/tempo. Parece que o que tinha para lhe contar dos meus últimos movimentos torna-se tão pouco e tão parco diante desse grande vazio, dessa impossibilidade entre nós, que a desistência do escrever parece ser o único gesto digno desta carta (a qual, portanto, é de uma indignidade patente). Mas, talvez alguns sons da manhã que acaba de passar possam ter me servido para não rasgar esta carta que, talvez, chegue até você. Na verdade, o som provinha da minha própria voz; porém, não pensava em voz alta, nem conversava com outra pessoa. Apenas lia uma carta que acabara de escrever, a qual tinha como destino Bologna. Ao ler e reler tal carta em voz alta, prestando atenção nos detalhes que poderiam escapar ao meu italiano standard, escutava a mim mesmo com uma sensação de estranhamento completa, tanto pela língua quanto por algo que não saberia lhe explicar. É, querida, talvez tudo não tenha passado da lembrança de uma mania, de hábito de outrora, talvez perdido, que agora me tomava a contrapelo. Mas é essa a doçura da mania da insistência, esse pathos. Pathos, querida, também é paixão; aliás, em sentido médico moderno é que ele tomou os rumos da doença - discorrem sobre ele, tentam sacar dele uma verdade, fazem patologia. O emaranhado de recordações e tempos que às vezes nos tiram da seriedade do cumprimento das tarefas (por que lhe escrevo?), suscitados por quimeras, por pequenos ruídos, parece ser algo faltante no nosso mundo (possuímos um mundo em comum?). "Ya no quedan locos... Todo el mundo está cuerdo, terrible, monstruosamente cuerdo." Isso que disse León Felipe (é, ele mesmo, aquele sujeito sem rumo, o do poeta prometeico, cuja poesia farta de sangue e parábolas tanto encanta) talvez poderia ter sido a epígrafe à carta. Mas ainda se colocam epígrafes nas cartas? Querida, iria até pedir perdão pelos delírios, mas, creio eu, já o fiz e recebi lírios (quiçá tivessem sido colírios...). Talvez não deveria ter lido a carta em voz alta; talvez nem mesmo deveria ter escrito para Bologna; mas tantos talvez não foram capazes de segurar mais uma vez minha mão...

Do seu remetente impossível.

p.s.: Peço (ainda que saiba que pedidos são perdidas palavras sem volta...) para que, desta vez, se assim o desejar, rasgue esta carta. Aliás, acho que nem a deveria ter escrito...

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