Por presença entenda-se prioritariamente uma junção espacial, efetiva colagem de descontinuidades físicas, e só secundariamente uma aproximação ou montagem temporal, já explorada pela alta modernidade. O que muda, decisivamente, neste presente, é a inexistência ou esgotamento de qualquer tipo de presença ou plenitude, substituída agora por uma aproximação ou distância de presença, que torna qualquer essere – mesmo o qualquer um, qualunque, como argumentaria Agamben – mera questão de interessere. Poderíamos nos valer de uma ficção, como Smoke, de Paul Auster, para dar conta da mínima mudança no cotidiano desenvolvido; porém, Clarice Lispector também nos oferece variados e abundantes exemplos desse processo em âmbito brasileiro. Aquilo que a autora de A hora da estrela chama de supersensações é a inversão pontual da imagem modernista de Drummond, impugnação efetiva da técnica como religião do Estado: ‘são instantâneos fotográficos das sensações-pensadas, e não a pose imóvel dos que esperam que eu diga: olhe o passarinho! Pois não sou fotógrafa de rua’. A supersensação é o avesso do signo, explicação e implicação simultâneas do mesmo e do outro, discordia concors ou dissonância irresolvida dos interstícios da própria representação. Nessa dramática do suportável e do insuportável, a supersensação afiança a condição larval do sujeito. (...) Não se confunda, portanto, a supersensação com a vivência do mistério. Ela ultrapassa inclusive a experiência de ruptura modernista e poderia ser mais cabalmente entendida como experiência interior, maléfica, pós-metafísica, que se coloca além do princípio iluminista da festa para redefinir a comunidade virtual como a da profanação e da desolação. A supersensação, como modo original e, no entanto, repetível da individuação, filia-se ao conceito de haecceitas (Duns Scot) a partir do qual Deleuze imagina uma individuação não mais da forma, porém, na forma, individuação intensiva e eventural, em que a ocorrência magnifica-se até atingir o nada.
Antelo, Raúl. O percurso da supersensações. In: Transgressão & Modernidade. Ponta Grossa: Ed. UEPG, 2001. p. 184-185. Imagem: Kandinsky.
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