terça-feira, 20 de setembro de 2011

O talismã de Furio Jesi




Quando Furio Jesi, em 1972, confia às páginas de Comunità esta Leitura do "Bateau ivre", encontra-se em um ponto decisivo do seu itinerário espiritual. Com a publicação de Germania segreta (1967) e de Letteratura e mito (1968), o enfant prodige, que aos quinze anos havia atravessado impenetráveis campos da egiptologia, já havia se imposto como o mais inteligente estudioso italiano de mitologia e ciência das religiões e, ao mesmo tempo, como uma das personalidades mais originais da cultura daqueles anos, difícil de rubricar nos limites de uma disciplina acadêmica. Se Letteratura e mito é indubitavelmente um dos livros que contam no magro balanço da ensaística italiana do século XX, é porque o autor consegue a todo instante quebrar as categorias sobre cuja oposição fundavam-se as frágeis certezas da ideologia italiana do pós-guerra: racionalismo/irracionalismo, mito/história, laicismo/religiosidade, esquerda/direita. Com um gesto simétrico àquele de Apuleio (evocado justamente no fim do livro) que, escrevendo o seu romance, de modo contínuo exorciza e profana sua própria conivência com o mundo mágico, Jesi instala seu trabalho na terra de ninguém em que essas oposições se indeterminam e revelam por fim sua secreta solidariedade (cuja saída ruinosa temos hoje diante dos olhos).

A Leitura é, nessa perspectiva, um documento único das dificuldades e dos riscos, mas também da riqueza e das isenções implícitas nessa situação extrema. De um lado, ela desenha, com efeito, uma cartografia sumária do território inominado entre a história e o mito para cuja exploração serão dedicadas as obras que Jesi conseguirá levar a termo nos oito anos que o separam da morte; de outro, ela funciona como uma espécie de talismã no qual o autor, antes de continuar a sua viagem, compendia os próprios "pensamentos secretos" e restabelece, no giro vertiginoso de poucas páginas, os paradoxos e as aporias da sua pessoal experiência de mitólogo, projetando-a sobre a de Rimbaud. Não surpreende, portanto, que o que na Leitura ocupa um lugar central seja uma aporia de fato política. Não apenas, com efeito, a evocação de Rimbaud permite-lhe escrever uma página em que vibra uma inconfundível marca de memória pessoal e que está entre as coisas mais belas já escritas sobre a relação entre cidade e política ("Pode-se amar uma cidade, podem-se reconhecer suas casas e suas ruas nas próprias memórias mais remotas e secretas; mas apenas na hora da revolta a cidade é sentida verdadeiramente como o 'haut lieu' e ao mesmo tempo como a própria cidade... Apropriamo-nos de uma cidade fugindo ou avançando no alternar-se dos ataques muito mais do que jogando como crianças nos seus jardins ou pelas suas ruas, ou por elas passeando com uma mulher..."); mas todo o texto corre sobre a oposição irresoluta entre a revolta, que é sempre experiência de uma suspensão do tempo histórico, e a revolução, definida, ao contrário, como o complexo das ações destinadas a mudar no tempo histórico uma determinada situação. À oposição revolta/revolução corresponde aquela entre "este mundo" e "outro mundo", produzida pela "máquina mitológica" que Jesi vê em função na poesia de Rimbaud.

Se não estamos enganados, a Leitura é um dos primeiros textos nos quais Jesi apresenta esse conceito, que nomeia a prestação mais própria do seu trabalho de mitólogo e que será de todo articulado no ensaio de 1973, A Festa e a máquina mitológica. Segundo Jesi, não há uma substância do mito, mas apenas uma máquina que produz mitologias e que gera a tenaz ilusão de selar o mito dentro das suas próprias e imperscrutáveis paredes. Entretanto, seria inútil opor à máquina a inexistência do mito: a antítese é/não é é impotente tanto para atingir quanto para apenas criticar eventos que se colocam por definição em um outro mundo (e dos quais, portanto, só se pode dizer, nos termos de Jesi, que aqui não-são[1] [ci non-sono]: "não há fé mais exata em relação a um 'outro mundo' que aqui não-é [ci non-è] do que a declaração que tal 'outro mundo' não é"). A potência insuperável da máquina está, com efeito, na tensão que ela produz entre mito e mitologia, entre o preexistente e o existente: "a máquina mitológica é autofundante: coloca sua origem no fora de si que é o seu interior mais remoto, o seu coração de pré-ser, no instante em que se põe em ato".

A inevitabilidade da máquina, que condena ao naufrágio tanto a revolta quanto a revolução (ambas exemplificadas em Rimbaud), é confirmada com força por Jesi em um ponto crucial da sua leitura: "De resto, uma e outra, a revolta e a revolução, não contradizem em nível conceitual o modelo proposto pela máquina mitológica. Ao contrário: na perspectiva aberta seja por uma quanto por outra, esse modelo acaba por identificar-se com o a priori que permanece o fundamento sólido e obscuro do processo gnosiológico. Diante da existência do lugar comum - ou da essência do mito - não há autêntica alternativa conceitual, mas apenas alternativa gestual, de comportamento, mas de comportamento que permanece, entretanto, circunscrito dentro da caixa delimitada pelas paredes da máquina mitológica. Revolta e revolução, em nível conceitual, continuam a ser nada além do que diversas articulações (suspensões do tempo; tempo 'justo') do tempo que vige no interior daquela caixa."

Ainda que Jesi nunca o diga explicitamente, é lícito supor que esse "fundamento sólido e obscuro" do processo gnosiológico não seja, em última análise, nada mais que a linguagem. Toda língua (poder-se-ia dizer parafraseando uma tese de Humboldt que Jesi amava citar) lança ao redor do povo que a fala uma espécie de círculo mágico, do qual não é possível sair a não ser com a condição de entrar no círculo de uma outra língua e de um outro povo. O mito é esse círculo mágico, e a esfera das coisas que aqui não-são [ci non-sono] com a qual ele se identifica é aquela que a linguagem humana incessantemente produz e pressupõe no seu coração de não-ser.

É possível sair do círculo, "quebrar a raiz do tempo" que se esconde entre as paredes impenetráveis da máquina (que, segundo Jesi, assinalam, como aquelas da linguagem, "a marca de confim do ser")? É no fim da Leitura que Jesi parece acenar para uma possibilidade desse gênero escrevendo: "Quebrar essa raiz significaria dispor de uma linguagem ou de um complexo de gestos tais ao ponto de afrontar a máquina mitológica em um plano que consentisse declarar ao mesmo tempo a existência e a não-existência daquilo que a máquina diz conter...". Dois anos depois, no ensaio sobre Kerényi, ele cita a frase com a qual o grande mitólogo compendiava o justo comportamento em relação ao "mito da morte" na consciência de que "a morte é algo e ao mesmo tempo nada".

Nesse sentido, a Leitura, na biografia intelectual de Jesi, representa por certo um daqueles momentos privilegiados em que é dado a um autor contemplar lucidamente, por um átimo, numa espécie de desencantada divinização, o próprio limite último e de tocar, por assim dizer, a raiz mais íntima da sua experiência da linguagem. Juntamente a esse limite, no qual o coração da máquina coincide com a sua própria existência, o mitólogo deve depor os seus instrumentos. A existência e a não-existência da máquina circunscrevem agora sua própria estratégia vital, decidem-se na fronteira da sua própria linguagem.



Giorgio Agamben. Il talismano di Furio Jesi. in.: Furio Jesi. La Lettura del "Bateau Ivre" di Rimbaud. Macerata: Quodlibet, 1996. pp. 5-8. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.



Imagem: Tiziano Vecellio. Baco e Ariadne. 1520-1522. National Gallery, Londres.





[1] N.T.: No original: ci non-sono. Agamben faz referência ao jogo que Jesi faz ao utilizar uma forma de negação invertida para os termos “c’è” e “ci sono” (indicativos da presença de algo em algum lugar). De fato, um uso mais comum seria “no c’è” ou “non ci sono”. Ou seja, a expressão ganha, em Jesi, uma função conceitual. Além disso, é importante lembrar que a partícula “ci” também pode ser traduzida por “para nós” (num jogo linguístico ambíguo como poderia sugerir uma outra construção possível da frase: "... que não são para nós"). Ou seja, traduzir por “aqui não-é” ou “aqui não-são” não dá a dimensão da complexidade conceitual que Jesi pretende com o modelo máquina mitológica.   

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