segunda-feira, 20 de março de 2017

Jarry, ou a divindade do riso - Giorgio Agamben





Colocado em confronto com a experiência do riso, o homem pode subtrair-se àquilo que nela há de mais inquietante transformando-a em problema psicológico: para fazer isso, é suficiente que ele pare de rir para se interrogar sobre o riso. A partir desse momento, o riso se torna um objeto que o pensamento mede pela própria verdade. Mas se, de maneira inversa, o homem que ri reconhece no riso seu único destino, se aceita fazer dele a experiência absoluta; ou se, simplesmente, percebe não poder contê-lo, até o ponto de não ser senão o próprio riso, o sacudir de ossos e músculos, como um “tapa do absoluto” que lhe seja plantado na cara contra sua vontade; então ele se encontra empenhado numa experiência mortal, e a pergunta que o pensamento desfigurado pelo riso coloca assim a si mesmo é: “Pode alguém rir até morrer? Rir infinitamente?”
Sobre o homem normal, que suspendeu o riso, o homem que ri goza de uma superioridade que se converte, por sua vez, em motivo de riso; na experiência do riso ele se descobriu ilimitado e ilimitável, e na medida em que, abrindo-se ao ilimitado, transcende-se incessantemente, o insolente colocar em questão de todo o possível, com o qual o riso havia começado, inverte-se na aceitação de todo o real, na vontade que soberanamente diz sim porque não há mais nada a negar. Nese ponto, como uma esponja passada no horizonte do destino humano, o riso abole os deuses e revela ao homem sua absoluta solidão. E se o homem que ri procura então apreender sua condição para fixá-la numa máscara, percebe estar vivendo um sonho do qual teme despertar-se deus.
Jarry é, antes de tudo, essa experiência da divindade do riso, do homem que, no riso, transcende-se numa infinita e mortal proximidade com o divino. Por isso, nenhuma seriedade tem o rigor de suas piadas. Por isso, nenhum riso jamais foi tão próximo ao terror do riso patafísico, que, como dizia René Daumal, é “a única expressão humana do desespero.” Talvez, antes de Jarry, só Nietzsche conheceu algo similar, o riso alciônico que coloca nos lábios de Dionísio, esse deus sem pudor; e Dostoievski, que o fez soar por um instante na careta obsessiva de Kirillov, alguns minutos antes de disparar contra si para se tornar deus; e era, talvez, o mesmo riso de Melmoth, de Maturin, sobre quem Baudelaire dizia que “saiu das condições fundamentais da vida” e que “seus órgãos não suportam mais seu pensamento.”

O ponto de partida de Jarry está no próprio destino do homem ocidental. O espaço de sua raillerie é a História em que tal destino, perdendo-se, mede-se com a linha de chegada de uma vitória abissal. E seu riso começa, assim, com a impossibilidade de distinguir se essa vitória não seja, antes, uma clamorosa derrota.
O homem ocidental chegou a um ponto de sua viagem em que parece que o tempo da história conhece sua meia-noite, e que tenha atravessado uma linha além da qual só o imprevisível está no aguardo. Esse momento é aquele em que se cumpre o evento “cuja grandeza é demasiado grande para que nós possamos nos dar conta”, e do qual Nietzsche diz, na Gaia Ciência, que “todos aqueles que virão depois pertencem a uma história mais elevada”: a morte de Deus.
O que acontece do homem e de seu reino? A terra se torna planeta no sentido etimológico da palavra, isto é, errante, o astro que vaga na solidão do vazio planificado da técnica. O homem se levanta em sua subjetividade e a consciência de si se torna a essência e o fundamento de todas as coisas: a vontade que não quer senão a si mesma em cada detalhe eleva-se sobre o trono do mundo sem que qualquer potência esteja à altura de lhe resistir, e o homem, que se prepara para assumir a responsabilidade do reino da terra, entra num crepúsculo no qual os deuses infinitamente se retraem.
Nesse ponto se instaura o Terror.
O paradoxo do Terror – Jarry o sabia bem – é que ele se inverte numa alegria incontida. Aquilo que no Terror é negado, não é este ou aquele conteúdo, mas a pura ausência de qualquer conteúdo; sua obra é a morte, mas uma morte que “não tem nenhum valor interior, que não cumpre nada, porque aquilo que é negado é o ponto vazio de conteúdo, o ponto do Si absolutamente livre. Assim ela é também a morte mais fria e mais rasa, sem maior significado do que cortar uma cabeça de repolho ou engolir um pouco de água”[1].
Essa ausência de todo conteúdo é, justamente, a revelação do riso. O homem que ri é o homem que perdeu seu conteúdo, o homem tornado pura pele e que sofre por levar essa pele até o limite extremo da dor e do prazer.
O espaço de Deus é vazio: mas, no riso, um outro espaço se abre e àquele corresponde metafisicamente. Nesse espaço, move-se a patafísica, essa “ciência do que se sobrepõe à metafísica”, que um dia talvez cessará de mostrar-se a nós como uma brincadeira desprezível para se revelar um tremendo sinal. “Como o metafísico”, escreve René Daumal, “introduziu-se nos poros do mundo físico sob a aparência da dialética que corrói os corpos e move as revoluções, agora, uma vez que ‘a patafísica é à metafísica o que esta é à física’, é preciso se preparar para o nascimento de uma nova era, para ver surgir em meio às extremas ramificações da matéria uma força nova, o pensamento devorador, ávido e sem respeito por nada, que não simula fé a ninguém nem obediência a ninguém, mas é brutal em evidência própria a despeito de toda lógica, o pensamento do patafísico universal que de repente despertará em todo homem, quebrando-lhe os rins com um espirro e rindo, rindo e eviscerando a golpes de riso as cacholas demasiado tranquilas, e aos diabos os sarcófagos onde estamos terminando de nos civilizar!”
O abismo em que a patafísica toma seu fundamento é o anúncio que se lê ao fim do penúltimo capítulo do Docteru Faustroll (esse Faust levado ao extremo): “Homo est Deus”. O homem, a mais morta de todas as criaturas, seria, assim, o Imortal? E esse pensamento abissal – ridículo até mesmo no nome – seria a filosofia de um deus? Nietzsche não havia dito que “o fato de que Dionísio seja um filósofo e de que, assim, os deuses se ocupem também eles de filosofia, parece-me uma novidade não privada de perigos...”?
A resposta a essa pergunta é também a resposta à pergunta que coloca este livro: quem é André Marcueil? Quem é le Surmâle?

Não é um acaso que como símbolo dessa impossível mutação do homem tenha sido escolhido um Surmâle. No sexo, o homem se confronta com a mesma potência que age na técnica, com a mesma absoluta exigência de soberania que se afirma por meio de uma imensa negação. E, como Surmâle, Marcueil pertence ao tipo humano que aparece, pela primeira vez no horizonte da cultura ocidental, nos romances de Sade. Sade, tendo feito experiência, no homem, da infinita potência da negação, pensou-lhe a essência soberana a partir da coincidência da maior destruição com a maior afirmação. Procurando um princípio em que essa singular potência do homem encontrasse seu fundamento, ele se deparou com a ideia que obscuramente preside ainda o destino do ocidente, como irredutível conceito-base de sua ciência: a ideia de Energia.
Tão logo o homem se quer integralmente, pensa, a própria natureza segundo o infinito que a Energia lhe revela nele mesmo, isto é, ele sai do horizonte do velho homem para entrar numa zona onde o humano e o divino se confundem. Sade se dava perfeitamente conta dessa passagem do homem ao além do homem: “Mais vous”, pergunta Juliette, “croyez-vous réellement que vous soyez des hommes?” “Oh, non, quand on les domine avec tant d’energie, il est impossible d’être de leur race.” “Elle a raison, oui, nous sommes des dieux.”[2]
Como os heróis de Sade, como Saint-Fond, como Clairwill, como o incrível Minski, Marcueil não é Surmâle apenas por seu excepcional vigor sexual, mas também porque, por meio da explosão de uma infinita energia, faz em si experiência da morte de Deus e se abandona por um átimo ao orgulho incontido de ser o primeiro exemplar de uma raça nova, o homem post deum mortuum de que fala, nos Demônios, Kirilov quando diz: “a história será dividia em duas partes: do gorila até a destruição de Deus, e da destruição de Deus até a transformação física da terra e do homem.” Quando Bathybius entra no quarto onde se desenrolou a paródica superação dos limites das forças humanas, tal abismo separa Marcueil “daquela criatura vestida, envelhecida e com uma barba de símio”, que ele o saúda como um deus saudaria um mortal comum: “Quem és, ser humano?”. E essa soberana integralidade da Energia está também no fundo da paixão de Marcueil pelo infinito numérico, similar ao furor que move os personagens de Sade em direção de suas vítimas, como se a redução destas a número fosse uma das principais formas da vontade do carrasco: “Rien n’amuse, rien n’échauffe la tête comme le grand nombre.”[3]
O homem integral da Energia é o homem da técnica, o homem que no massacre divino descobre sua infinidade e pensa coerentemente a própria essência a partir da nova perspectiva que a ausência de deuses lhe revela.
Em sua aspiração a esconder-se para sobreviver, Marcueil seria assim apenas uma espécie de negativo do Superman da técnica, e, na insolência de seu riso, soaria a antiga pretensão titânica ao poder celeste dos deuses.
Mas a verdade de Marcueil é verdadeiramente: Homo est Dens? Ou, antes, não seria verdadeiro o contrário, isto é, que mesmo cumprindo uma experiência titânica, Marcueil acena para uma direção oposta àquela para a qual a técnica move de maneira insensível o homem e seu mundo?

O mito do Super-homem, do homem que supera os confins que lhe foram designados pelo deus para usurpar deste o poder, sempre acompanhou o destino do ocidente como uma de suas tentações mais insidiosas. O exórdio grego já havia prefigurado no assalto aos céus dos filhos da terra, os Titãs, incitados por Gaia a inverter o reino de Zeus para restaurar a idade de ouro. Por todo o medievo até o limiar da idade moderna o sonho titânico continua na aspiração da alquimia (cuja comunhão de essência com a técnica moderna permanece ainda por ser interrogada) para substituir a creatio dei por uma creatio hominis. A morte e a ressurreição do adepto, projetadas simbolicamente numa série de operações materiais, é a Obra por meio da qual o homem, colocando-se como autor de si mesmo, verifica a profecia da serpente: eritis sicut dii. Nesse sentido, a lenda popular de Fausto interpreta com bastante precisão a figura do alquimista como simia dei.
O mito titânico volta à luz na explosão romântica: e o Melmoth, de Maturin, que um pacto diabólico condena a vagar perenemente no limite do humano e do sobre-humano, é o duplo infernal do Fausto goethiano, no qual a lenda medieval se alarga num grandioso esforço de conciliação das sortes do ocidente.
Depois da primeira guerra mundial, o mito do Super-homem entra na cultura de massa com o cinema expressionista: com uma dedução que já havia sido de Sade, o império do crime é agora o sinal da passagem – não mais individual, mas coletiva – do homem para além de si mesmo. O diretor do manicômio, no filme de Wiene, sobre o qual recai o obsessivo imperativo: du musst Caligari werden!, e o Mabuse, de Lang, que quer instituir sobre a terra um império do mal, são ambos um símbolo do homem faustiano que se prepara para assumir sua responsabilidade planetária.
Com a aparição de Superman, o mito do Super-homem conhece um giro essencial, que constitui talvez o único fato interessante – justamente porque involuntário – dessa medíocre invenção da cultura de massa. Até ele, a saída do homem dos limites designados por deus sempre havia sido apresentada como uma operação diabólica: a revolta titânica contra a divindade era, aliás, o mal por excelência. A grande novidade de Superman é que seus poderes sobre-humanos são apresentados como um fato moral bom e desejável. Entre Caligari e Superman, nesse sentido, correm muito mais do que os poucos decênios que cronologicamente os separam; no intervalo, Deus é definitivamente morto também para as massas e a técnica tomou em definitivo para si o cuidado com o destino do homem: não há mais nenhum Deus contra o qual se rebelar. Superman (e se os conformistas disso se dessem conta, esse campeão do bem apareceria, então, como teria aparecido em qualquer outra época: a blasfêmia por excelência) se move no espaço vazio de deuses: esse ingênuo pregador da moral do bem e do mal é, ao contrário, o mais radical dos niilistas. Ele é verdadeiramente o Super-homem, o homem que saiu dos limites do humano para ocupar a esfera metafísica do deus.

Como Superman, também Marcueil saiu dos limites do humano, ou, pelo menos, como com ironia ele mesmo diz, das “forças humanas”. Mas essa passagem para além do homem se cumpriu diferentemente de uma invasão da esfera do deus. Marcueil não é mais o velho homem e nem mesmo é o homem-deus. O personagem que, no romance de Jarry, representa a usurpação titânica da técnica, é William Elson, o inventor daquele Alimento para o Movimento Perpétuo que, em seu próprio nome, lembra o velho sonho da construção de uma máquina que, vencendo as leis divinas da matéria, elevasse o homem ao estatuto rival de criador.
Quanto a Marcueil, se a proximidade com o divino o ameaça, esse destino é sentido muito mais como uma condenação do que como uma vitória: como Kirillov, ele poderia dizer: “Eu não sou deus senão por força e sou infeliz porque sou obrigado a afirmar o arbítrio.” Enquanto os deuses se retraem, também Marcueil realiza a agitação extrema e liga seu destino ao da terra; mas, mesmo dividido pelos deuses, em relação a estes ele conserva uma estranha fidelidade. É um traidor, mas um traidor de espécie sagrada. A diferença do homem-deus da técnica, ele sente aquilo que para ele existe de tremendo e, ao mesmo tempo, de sórdido na passagem do homem para além do homem, e leva essa consciência até o limite extremo da dor e do desespero: nesse momento, como diz Hölderlin, “o homem e o deus comunicam-se na forma, esquecedora de tudo, da infidelidade”.
No mito grego, a revolta titânica é domada graças à intervenção de uma figura nem divina nem humana: Héracles, o semideus. Como Héracles, também Marcueil se move na terra de ninguém entre os homens e os deuses, e, como preço desse exílio, beirando continuamente o abismo titânico e continuamente o refutando, mantém com os deuses uma relação sagrada. O mundo titânico é o de William Elson e de Bathybius, que, ao fim, prevalecerão, ao menos em aparência, sobre o Surmâle, conseguindo conectar em seu organismo um dínamo gigantesco destinado a uniformizar sua inexaurível energia para os fins “humanitários” da técnica. E, ao homem-deus da técnica, esse pobre Surmâle da patafísica não poderá opor senão seu cadáver distorcido com o ferro, seu torturado corpo nu de homem.
Nessa extrema fidelidade a seu destino, o homem que rindo tomou consciência de sua condição desesperada, dá testemunho da insólita palavra do filósofo que havia pensando, com a mais alta responsabilidade, o problema do destino do ocidente depois da morte de deus:
“Em geral, existem boas razões para supor que, para muitas coisas, os deuses fariam bem em vir aprender conosco, homens. Nós, homens, nós somos – mais humanos.”       

Giorgio Agamben. Jarry o la divinità del riso. In. Alfred Jarry. Il Supermaschio. A cura di Giorgio Agamben. Milano: Bompiani, 2012. (1ª ed. 1967) Trad.: Giorgio Agamben. pp. 105-112. (trad. Vinícius N. Honesko)


[1] Hegel. Fenomenologia do Espírito.
[2] N.T.: “Mas vocês creem realmente que sejam homens?” “Oh!, não, quando os dominamos com tamanha energia, é impossível ser de sua raça.” “Ela tem razão, sim, nós somos deuses.
[3] N.T.: “Nada me diverte, nada excita a cabeça como o grande número.”