Colocado em confronto com a experiência do riso, o homem pode
subtrair-se àquilo que nela há de mais inquietante transformando-a em problema
psicológico: para fazer isso, é suficiente que ele pare de rir para se
interrogar sobre o riso. A partir desse momento, o riso se torna um objeto que
o pensamento mede pela própria verdade. Mas se, de maneira inversa, o homem que
ri reconhece no riso seu único destino, se aceita fazer dele a experiência
absoluta; ou se, simplesmente, percebe não poder contê-lo, até o ponto de não
ser senão o próprio riso, o sacudir de ossos e músculos, como um “tapa do
absoluto” que lhe seja plantado na cara contra sua vontade; então ele se
encontra empenhado numa experiência mortal, e a pergunta que o pensamento
desfigurado pelo riso coloca assim a si mesmo é: “Pode alguém rir até morrer?
Rir infinitamente?”
Sobre o homem normal, que suspendeu o riso, o homem que ri
goza de uma superioridade que se converte, por sua vez, em motivo de riso; na
experiência do riso ele se descobriu ilimitado e ilimitável, e na medida em
que, abrindo-se ao ilimitado, transcende-se incessantemente, o insolente
colocar em questão de todo o possível, com o qual o riso havia começado,
inverte-se na aceitação de todo o real, na vontade que soberanamente diz sim
porque não há mais nada a negar. Nese ponto, como uma esponja passada no
horizonte do destino humano, o riso abole os deuses e revela ao homem sua
absoluta solidão. E se o homem que ri procura então apreender sua condição para
fixá-la numa máscara, percebe estar vivendo um sonho do qual teme despertar-se
deus.
Jarry é, antes de tudo, essa experiência da divindade do
riso, do homem que, no riso, transcende-se numa infinita e mortal proximidade
com o divino. Por isso, nenhuma seriedade tem o rigor de suas piadas. Por isso,
nenhum riso jamais foi tão próximo ao terror do riso patafísico, que, como dizia
René Daumal, é “a única expressão humana do desespero.” Talvez, antes de Jarry,
só Nietzsche conheceu algo similar, o riso alciônico que coloca nos lábios de
Dionísio, esse deus sem pudor; e Dostoievski, que o fez soar por um instante na
careta obsessiva de Kirillov, alguns minutos antes de disparar contra si para
se tornar deus; e era, talvez, o mesmo riso de Melmoth, de Maturin, sobre quem
Baudelaire dizia que “saiu das condições fundamentais da vida” e que “seus
órgãos não suportam mais seu pensamento.”
O ponto de partida de Jarry está no próprio destino do homem
ocidental. O espaço de sua raillerie é
a História em que tal destino, perdendo-se, mede-se com a linha de chegada de uma
vitória abissal. E seu riso começa, assim, com a impossibilidade de distinguir
se essa vitória não seja, antes, uma clamorosa derrota.
O homem ocidental chegou a um ponto de sua viagem em que
parece que o tempo da história conhece sua meia-noite, e que tenha atravessado
uma linha além da qual só o imprevisível está no aguardo. Esse momento é aquele
em que se cumpre o evento “cuja grandeza é demasiado grande para que nós
possamos nos dar conta”, e do qual Nietzsche diz, na Gaia Ciência, que “todos aqueles que virão depois pertencem a uma
história mais elevada”: a morte de Deus.
O que acontece do homem e de seu reino? A terra se torna planeta no sentido etimológico da
palavra, isto é, errante, o astro que
vaga na solidão do vazio planificado da técnica. O homem se levanta em sua
subjetividade e a consciência de si se torna a essência e o fundamento de todas
as coisas: a vontade que não quer senão a si mesma em cada detalhe eleva-se
sobre o trono do mundo sem que qualquer potência esteja à altura de lhe
resistir, e o homem, que se prepara para assumir a responsabilidade do reino da
terra, entra num crepúsculo no qual os deuses infinitamente se retraem.
Nesse ponto se instaura o Terror.
O paradoxo do Terror – Jarry o sabia bem – é que ele se
inverte numa alegria incontida. Aquilo que no Terror é negado, não é este ou
aquele conteúdo, mas a pura ausência de qualquer conteúdo; sua obra é a morte,
mas uma morte que “não tem nenhum valor interior, que não cumpre nada, porque
aquilo que é negado é o ponto vazio de conteúdo, o ponto do Si absolutamente
livre. Assim ela é também a morte mais fria e mais rasa, sem maior significado
do que cortar uma cabeça de repolho ou engolir um pouco de água”[1].
Essa ausência de todo conteúdo é, justamente, a revelação do
riso. O homem que ri é o homem que perdeu seu conteúdo, o homem tornado pura
pele e que sofre por levar essa pele até o limite extremo da dor e do prazer.
O espaço de Deus é vazio: mas, no riso, um outro espaço se
abre e àquele corresponde metafisicamente. Nesse espaço, move-se a patafísica,
essa “ciência do que se sobrepõe à metafísica”, que um dia talvez cessará de
mostrar-se a nós como uma brincadeira desprezível para se revelar um tremendo
sinal. “Como o metafísico”, escreve René Daumal, “introduziu-se nos poros do
mundo físico sob a aparência da dialética que corrói os corpos e move as
revoluções, agora, uma vez que ‘a patafísica é à metafísica o que esta é à
física’, é preciso se preparar para o nascimento de uma nova era, para ver
surgir em meio às extremas ramificações da matéria uma força nova, o pensamento
devorador, ávido e sem respeito por nada, que não simula fé a ninguém nem
obediência a ninguém, mas é brutal em evidência própria a despeito de toda
lógica, o pensamento do patafísico universal que de repente despertará em todo
homem, quebrando-lhe os rins com um espirro e rindo, rindo e eviscerando a
golpes de riso as cacholas demasiado tranquilas, e aos diabos os sarcófagos
onde estamos terminando de nos civilizar!”
O abismo em que a patafísica toma seu fundamento é o anúncio
que se lê ao fim do penúltimo capítulo do Docteru
Faustroll (esse Faust levado ao extremo): “Homo est Deus”. O homem, a mais morta de todas as criaturas, seria,
assim, o Imortal? E esse pensamento abissal – ridículo até mesmo no nome –
seria a filosofia de um deus? Nietzsche não havia dito que “o fato de que
Dionísio seja um filósofo e de que, assim, os deuses se ocupem também eles de
filosofia, parece-me uma novidade não privada de perigos...”?
A resposta a essa pergunta é também a resposta à pergunta que
coloca este livro: quem é André Marcueil? Quem é le Surmâle?
Não é um acaso que como símbolo dessa impossível mutação do
homem tenha sido escolhido um Surmâle.
No sexo, o homem se confronta com a mesma potência que age na técnica, com a
mesma absoluta exigência de soberania que se afirma por meio de uma imensa
negação. E, como Surmâle, Marcueil
pertence ao tipo humano que aparece, pela primeira vez no horizonte da cultura
ocidental, nos romances de Sade. Sade, tendo feito experiência, no homem, da
infinita potência da negação, pensou-lhe a essência soberana a partir da
coincidência da maior destruição com a maior afirmação. Procurando um princípio
em que essa singular potência do homem encontrasse seu fundamento, ele se
deparou com a ideia que obscuramente preside ainda o destino do ocidente, como
irredutível conceito-base de sua ciência: a ideia de Energia.
Tão logo o homem se quer integralmente, pensa, a própria
natureza segundo o infinito que a Energia lhe revela nele mesmo, isto é, ele
sai do horizonte do velho homem para entrar numa zona onde o humano e o divino
se confundem. Sade se dava perfeitamente conta dessa passagem do homem ao além
do homem: “Mais vous”, pergunta
Juliette, “croyez-vous réellement que
vous soyez des hommes?” “Oh, non, quand on les domine avec tant d’energie, il
est impossible d’être de leur race.” “Elle a raison, oui, nous sommes des
dieux.”[2]
Como os heróis de Sade, como Saint-Fond, como Clairwill, como
o incrível Minski, Marcueil não é Surmâle
apenas por seu excepcional vigor sexual, mas também porque, por meio da
explosão de uma infinita energia, faz em si experiência da morte de Deus e se
abandona por um átimo ao orgulho incontido de ser o primeiro exemplar de uma
raça nova, o homem post deum mortuum de
que fala, nos Demônios, Kirilov
quando diz: “a história será dividia em duas partes: do gorila até a destruição
de Deus, e da destruição de Deus até a transformação física da terra e do
homem.” Quando Bathybius entra no quarto onde se desenrolou a paródica
superação dos limites das forças humanas, tal abismo separa Marcueil “daquela
criatura vestida, envelhecida e com uma barba de símio”, que ele o saúda como
um deus saudaria um mortal comum: “Quem és, ser humano?”. E essa soberana
integralidade da Energia está também no fundo da paixão de Marcueil pelo
infinito numérico, similar ao furor que move os personagens de Sade em direção
de suas vítimas, como se a redução destas a número fosse uma das principais formas
da vontade do carrasco: “Rien n’amuse,
rien n’échauffe la tête comme le grand nombre.”[3]
O homem integral da Energia é o homem da técnica, o homem que
no massacre divino descobre sua infinidade e pensa coerentemente a própria
essência a partir da nova perspectiva que a ausência de deuses lhe revela.
Em sua aspiração a esconder-se para sobreviver, Marcueil
seria assim apenas uma espécie de negativo do Superman da técnica, e, na insolência de seu riso, soaria a antiga
pretensão titânica ao poder celeste dos deuses.
Mas a verdade de Marcueil é verdadeiramente: Homo est Dens? Ou, antes, não seria verdadeiro o
contrário, isto é, que mesmo cumprindo uma experiência titânica, Marcueil acena
para uma direção oposta àquela para a qual a técnica move de maneira insensível
o homem e seu mundo?
O mito do Super-homem, do homem que supera os confins que lhe
foram designados pelo deus para usurpar deste o poder, sempre acompanhou o
destino do ocidente como uma de suas tentações mais insidiosas. O exórdio grego
já havia prefigurado no assalto aos céus dos filhos da terra, os Titãs,
incitados por Gaia a inverter o reino de Zeus para restaurar a idade de ouro.
Por todo o medievo até o limiar da idade moderna o sonho titânico continua na
aspiração da alquimia (cuja comunhão de essência com a técnica moderna
permanece ainda por ser interrogada) para substituir a creatio dei por uma creatio
hominis. A morte e a ressurreição do adepto, projetadas simbolicamente numa
série de operações materiais, é a Obra por meio da qual o homem, colocando-se
como autor de si mesmo, verifica a profecia da serpente: eritis sicut dii. Nesse sentido, a lenda popular de Fausto
interpreta com bastante precisão a figura do alquimista como simia dei.
O mito titânico volta à luz na explosão romântica: e o Melmoth,
de Maturin, que um pacto diabólico condena a vagar perenemente no limite do
humano e do sobre-humano, é o duplo infernal do Fausto goethiano, no qual a
lenda medieval se alarga num grandioso esforço de conciliação das sortes do
ocidente.
Depois da primeira guerra mundial, o mito do Super-homem
entra na cultura de massa com o cinema expressionista: com uma dedução que já
havia sido de Sade, o império do crime é agora o sinal da passagem – não mais
individual, mas coletiva – do homem para além de si mesmo. O diretor do
manicômio, no filme de Wiene, sobre o qual recai o obsessivo imperativo: du musst Caligari werden!, e o Mabuse,
de Lang, que quer instituir sobre a terra um império do mal, são ambos um
símbolo do homem faustiano que se prepara para assumir sua responsabilidade
planetária.
Com a aparição de Superman,
o mito do Super-homem conhece um giro essencial, que constitui talvez o
único fato interessante – justamente porque involuntário – dessa medíocre
invenção da cultura de massa. Até ele, a saída do homem dos limites designados
por deus sempre havia sido apresentada como uma operação diabólica: a revolta
titânica contra a divindade era, aliás, o mal por excelência. A grande novidade
de Superman é que seus poderes
sobre-humanos são apresentados como um fato moral bom e desejável. Entre
Caligari e Superman, nesse sentido,
correm muito mais do que os poucos decênios que cronologicamente os separam; no
intervalo, Deus é definitivamente morto também para as massas e a técnica tomou
em definitivo para si o cuidado com o destino do homem: não há mais nenhum Deus
contra o qual se rebelar. Superman (e
se os conformistas disso se dessem conta, esse campeão do bem apareceria, então,
como teria aparecido em qualquer outra época: a blasfêmia por excelência) se move
no espaço vazio de deuses: esse ingênuo pregador da moral do bem e do mal é, ao
contrário, o mais radical dos niilistas. Ele é verdadeiramente o Super-homem, o
homem que saiu dos limites do humano para ocupar a esfera metafísica do deus.
Como Superman, também
Marcueil saiu dos limites do humano, ou, pelo menos, como com ironia ele mesmo
diz, das “forças humanas”. Mas essa passagem para além do homem se cumpriu diferentemente
de uma invasão da esfera do deus. Marcueil não é mais o velho homem e nem mesmo
é o homem-deus. O personagem que, no romance de Jarry, representa a usurpação
titânica da técnica, é William Elson, o inventor daquele Alimento para o
Movimento Perpétuo que, em seu próprio nome, lembra o velho sonho da construção
de uma máquina que, vencendo as leis divinas da matéria, elevasse o homem ao
estatuto rival de criador.
Quanto a Marcueil, se a proximidade com o divino o ameaça,
esse destino é sentido muito mais como uma condenação do que como uma vitória:
como Kirillov, ele poderia dizer: “Eu não sou deus senão por força e sou
infeliz porque sou obrigado a afirmar
o arbítrio.” Enquanto os deuses se retraem, também Marcueil realiza a agitação
extrema e liga seu destino ao da terra; mas, mesmo dividido pelos deuses, em
relação a estes ele conserva uma estranha fidelidade. É um traidor, mas um
traidor de espécie sagrada. A diferença do homem-deus da técnica, ele sente
aquilo que para ele existe de tremendo e, ao mesmo tempo, de sórdido na
passagem do homem para além do homem, e leva essa consciência até o limite
extremo da dor e do desespero: nesse momento, como diz Hölderlin, “o homem e o
deus comunicam-se na forma, esquecedora de tudo, da infidelidade”.
No mito grego, a revolta titânica é domada graças à
intervenção de uma figura nem divina nem humana: Héracles, o semideus. Como
Héracles, também Marcueil se move na terra de ninguém entre os homens e os
deuses, e, como preço desse exílio, beirando continuamente o abismo titânico e
continuamente o refutando, mantém com os deuses uma relação sagrada. O mundo
titânico é o de William Elson e de Bathybius, que, ao fim, prevalecerão, ao
menos em aparência, sobre o Surmâle, conseguindo
conectar em seu organismo um dínamo gigantesco destinado a uniformizar sua
inexaurível energia para os fins “humanitários” da técnica. E, ao homem-deus da
técnica, esse pobre Surmâle da
patafísica não poderá opor senão seu cadáver distorcido com o ferro, seu
torturado corpo nu de homem.
Nessa extrema fidelidade a seu destino, o homem que rindo
tomou consciência de sua condição desesperada, dá testemunho da insólita
palavra do filósofo que havia pensando, com a mais alta responsabilidade, o
problema do destino do ocidente depois da morte de deus:
“Em geral, existem boas razões para supor que, para muitas
coisas, os deuses fariam bem em vir aprender conosco, homens. Nós, homens, nós
somos – mais humanos.”
Giorgio
Agamben. Jarry o la divinità del riso.
In. Alfred Jarry. Il Supermaschio. A
cura di Giorgio Agamben. Milano: Bompiani, 2012. (1ª ed. 1967)
Trad.: Giorgio Agamben. pp. 105-112. (trad. Vinícius N. Honesko)