sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Ano novo


O zóio da cobra verde, foi hoje que arreparei... Cantava Caetano, revendo a longa e sinuosa estrada de Paul e John. Escutando hoje penso nos long ways da vida diária. Estou tentando escrever para frente; a balança que deixava rimar amor e dor agora me permite rimar sons que não são nem mesmo cacos de sentimentos. Pasternak já disse que a poesia é a etimologia do sentimento. Será que a palavra alcança o sentir? O vino rosso sobe, encantam-me os volteios de um pensamento que deixa para trás um rastro quase inegável: é arte de quem já conheço, cantada do alto de múltiplos braços que me abraçam em instantes em que penso encontrar-me a sós.
Sentimentos etimologicamente buscados, amor e dor, desencantam no canto belo e sibilino daqueles instantes em que Fellini era companheiro numa poltrona à pouca luz. Um ano que acaba não diz muita coisa; é mais uma noite que termina e que será aplacada pela luz de uma manhã que aqui chega mais tarde. O rumor do cômodo ao lado acode-me no sonho. Abro os olhos tremendo ainda com as impressões palpáveis daquele corpo.
Apanho meu barco à velas que espera que o vento matutino me carregue para longe, pela long and winding road. Mas só agora me dou conta de que estradas não existem no mar e de que o vento é o único a guiar. Os instrumentos de navegação são inválidos quando se trata de etimologia e a garrafa do rosso que bebo deve ser companheira de viagem a guardar minhas falas que se vão sozinhas. Chegaremos ao mesmo ponto? Quiçá... O vinho já se foi e a ocupar seu espaço agora está esta carta, lançada no instante mesmo em que abri as velas do meu barco. Refaço a estrutura dos meus sonhos sem entender que eles só estão quando não estou eu. Volto a pensar sobre o ano que vai se acabar, mas ele já se acabou. Tudo significa e nenhum significante pode ser preso num significado; e vejo que o tempo só começa quando os calendários são rasgados, quando o sono e a vigília se cruzam à velocidade do vento. As estradas longas e sinuosas não levam a lugar nenhum, só ensinuam... estou parado no mar revoltoso, as velas que antes estavam içadas agora estão recolhidas, a etimologia se vai com a garrafa, mas ainda me resta o sentir...

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Do caderno de viagem

Em uma rodovia, com nuvens espaçadas no horizonte, campos alheios e estrangeiros, vultos humanos que passam velozmente, é inevitável o sentimento de partida e, a la Drummond, ser partido. Saber que mesmo as pessoas amadas estão rodeadas pela crosta de inacessibilidade e aparências ambivalentes que atravessam o mundo humano. Saber-se só e exilado, corpo afastado, pobre e confuso. Seguro da morte e das pequenas e grandes distrações que nos fazem esquecê-la. O espetáculo poeticamente escandaloso do viver.

Pasta ai frutti di mare


Era uma pasta com frutos do mar: camarões, lulas, lagostins. O molho vermelho descia-lhe os dedos delicados e seu sorriso matreiro radiava tanto quanto o reflexo solar que vinha da janela à minha frente. Eu olhava a decoração do lugar: telhas velhas como luminárias, máscaras típicas sicilianas, um jeitão meio anos 80 que se desprendia da aura daquele restaurante. Lá fora o sol brilhava radiante e iluminava o templo da Concórdia o qual, como que emoldurado pela janela do restaurante, mostrava-me sua face imponente do alto do vale. De soslaio percebo a fulguração de sonhos que me passavam ao lado: o Duomo de Milão (por que ele?), o céu arrebentado em luzes do interior paranaense, o som das ondas brandas da ponta do Sambaqui. São figuras retóricas a se insinuar naquele momento de intimidade? Não sei, sinceramente. Peguei meu guardanapo de pano e limpei-me como um cirurgião após cumprir todos os remendos plásticos da paciente (cliente) que gostaria de ter o nariz um pouquinho mais empinado. Olhei para meus dedos limpos, mas que ainda guardavam a gordura do meu prato - do qual não me lembro nem mesmo o nome -, e imaginei a que ponto as paragens que se me apareceram naquelas imagens sorrateiras seriam capazes de me retirar dali, daquele instante.
Olho em direção à janela do quarto onde agora escrevo. Vejo um empilhado de tijolos maciços que se levantam para guardar menores infratores. Paredes grossas, como as minhas, feitas em outro tempo, no qual talvez eu pudesse estar no instante em que as imagens me fisgaram naquele almoço. Ela, com sua presença quente, recupera-me do devaneio ao rir depois de sugar um pouco atabalhoada um resto de molho da casca de um lagostim. Era delicada e aquele jeito meio sem jeito tornava-a ainda mais bela. Eu lhe abri um daqueles meus sorrisos quentes, que involuntariamente saiam e que tanto lhe agradavam. Agora, diante do instituto penal infantil, o vermelho dos tijolos me faz embrutecer. A lembrança daquela tarde ensolarada é fagulha alegre que me salva do presente. Ah, a memória, tema que de reconstrução em reconstrução está me tomando nas últimas horas. Seriam estas também as minhas últimas? Não há como saber, é sempre assim.
Corroído pelas patéticas práticas rotineiras, reexamino o Duomo milanês. Não preciso voltar às fotos. Percorro a galeria da minha memória (devo confiar? Mas e as fotos, não eram seus ângulos prisões construídas pela minha mente no momento de fazê-las?) e vejo a imagem de São Bartolomeu sem a pele. Lembro-me da primeira vez que a vi, há uns 4 anos, e da impressão que me causou: fiquei assustado com a ideia de ser "despelado". Rasgado o órgão do tato, não resta que a sensação crua, na carne lacerada, exposta. Este ano vi uma representação de S. Bartolomeu que para mim é muito mais sutil do que a do Duomo: trata-se da imagem do santo no juízo final da Capela Sistina. Michelangelo foi muito mais "polido" que Marco d'Agrate, o autor da escultura presente no Duomo, e também menos sugestivo.
A força da escultura do Duomo está na impressão inequívoca que causa: dor, desprazer, desventura, martírio, ainda que a pose do santo pareça desprezar qualquer sensação de incômodo. No entanto, por que juntamente com a imagem do duomo, naquele soslaio repentino, apareceram-me também a luz paranaense e o som calmo de fim de tarde das ondas da Ilha do Desterro? A forte sombra de dúvidas continua a pairar... talvez a sensação nem mesmo tenha sido real, daquele momento, mas tão somente uma criação a partir da vista das paredes do instituto para menores; talvez o som do sambaqui seja algo que escuto agora, enquanto dedilho o teclado sujo do meu computador; talvez tenha sido a lembrança de suas mãos delicadas e de seu sorriso matreiro a romper a crosta do lagostim para sugar-lhe todo o molho o que despertou em mim essas imagens. Suas mãos que, ao contrário daquelas de d'Agrate - que no duro calcáreo trabalhava para expor uma ideia atrelada à vida transcendente -, rompia uma casca para dela aproveitar o sabor dos condimentos e temperos sicilianos.
As imagens me impressionam, a memória me pressiona. Há vida lá fora que grita como que querendo entrar sem cartão de visitas no meu espaço interior? Não sei... Outrora mesmo o templo emoldurado era incapaz de esboçar qualquer reação diante da atenção que eu dava àquelas mãos e sorrisos intermitentes; agora os calos dessas imagens salteiam em temperos ora amargos ora dulcíssimos as minhas lembranças, estas que, se não me falhe a memória, são e não são, vêm e se vão...

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Um buquê


Um buquê de rosas de papel com o perfume dela era um aconchego das noites de neblina. A umidade da nova casa, os dissabores e desencontros com a vizinhança irritavam-no profundamente, porém, bastava um aspirar do perfume para que caísse de novo nas graças do fantasma da memória. A vida, como o andar desajeitado de um coxo, passava torta por entre as paredes estreitas cheias de quadros dos passado. Era um surto? Eram devaneios decorrentes do uso de entorpecentes? Era o álcool vibrando saltitante dentro da alma lamuriosa? Não se sabe. No mesmo instante lembrava-se das angústias juvenis e sentia o que sentia outrora; ou era a falsificação da memória a construir sentimentos no passado, sem alvará de licença, sem permissão da secretaria de obras? Um falsear de vida que o irritava. Queria a verdade das coisas. "Por que não posso sentir o que senti, saber o que soube, entender o entendido?!?!" Eis as indagações mais que constantes dos momentos de fúria.
Sentado num banco de praça qualquer arrancava do bolso seu caderno de anotações e relia cada passagem que havia apenas escrito. Já não eram dele aquelas palavras, já não eram dele as assombrações de dois, três dias antes. Olhava um passante com seu cachorro vira-latas, sentia o perfume de uma dondoca que acabara de passar, ouvia o maldito sino da igreja que todos os dias o acordava e, ao mesmo tempo, já não olhava mais nada, não sentia mais nada, não ouvia mais nada. Imergia nas profundezas da falsidade, nas profundezas da memória. Não sabia muito bem qual era o mecanismo que abria a casquinha da ferida, mas, tão logo aberta, bastava um suspiro meio torto para mergulhar fundo nela. O pus e a fedentina da área recém visitada misturava-se imediatamente com o odor do sangue e vida. Era como se o rasgar da pele traumatizada fosse a porta de entrada para as zonas capciosas em que pouco conseguia discernir entre passado, presente e futuro. O anjo da história de Klee! Era essa a imagem desejada: caminhar para frente sem tirar os olhos do passado. Mas que tarefa infernal!!! As mentiras, as invencionices da memória mereciam ser consideradas da ordem do dia? Não lhe restavam alternativas, cada passo era carregado daquelas imagens.
A brisa úmida daquela tarde fria começava a atacar seus pulmões; o latido daquele vira-latas irritava-o; o perfume azedo da dondoca lhe enjoava; os sinos não se dobravam de modo algum... Era um embuste, uma cilada preparada por uma cabeça que não parava de pensar, como se isso lhe fosse uma sina. Cansado de reler o caderno, arrancou-lhe as páginas num ato que parecia indiferente, porém, como que a tentar apagar aquilo que via a todo instante. Inútil! As páginas faltantes eram agora as que ele sabia de cor. A ferida da memória funcionava como as chagas do cristo que estão sempre lá, a mostrar para os fiéis que a travessia para a outra vida deve ser dura. Mas o cansaço já o tomava e, finalmente, parecia que não pensava mais em nada. Voltou para casa, aspirou o perfume do buquê e dormiu um sono profundo.

Imagem: Pierre-Auguste Renoir. Nature morte avec fleurs. 1890.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Excertos de moral epicurista


"O desejo parece tender para um limiar (o prazer) que ele alcança somente para decair em seguida e renascer. Mas não é o prazer que é somente uma aparência, é o desejo. O prazer não é o fim do desejo; ele é o efeito da necessidade quando se a satisfaz."
"Assim como os desejos ganham sua significação a partir das necessidades, também a vida se absorve na realidade do prazer (já que viver é sentir e que sentir de modo conforme à natureza é gostar do prazer); nós não temos necessidade de vida, mas necessidade de prazer. Uma vez que nos movemos no mito e que finalmente o desejo (e seu oposto, o medo, que com ele faz um, já que desejar é medo de não obter o que se deseja) junta-se à própria vida; a vida torna-se assim o último desejo, o fundamento dos outros, e, portanto, o medo de perdê-la, o fundamento dos outros medos. Como o desejo é uma necessidade imaginária, pode-se desejar qualquer coisa, acontece, por fim, que se termina por desejar a morte, enlouquecida por um destino que se opõe aos nossos outros desejos. A morte, no entanto, não deve ser um objeto de desejo, mas a garantia de um prazer puro, pois não somos forçados a viver, e temos sempre o meio de morrer."
"Se uma contínua renovação das excitações parece necessária para sentir, é por causa de nossa 'grosseria de alma'."
"A moral epicurista não consiste em desviar a alma do corpo. É preciso aumentar a sensibilidade da alma e não torná-la indiferente e solitária. Somente assim pode-se diminuir a importância da excitação. Palavra 11: 'Na maior parte dos homens a calma é letargia e a emoção furor'. Essa letargia não tem nada a ver com os estados calmos e esse furor é completamente diferente do prazer em movimento. São estados de desejo, não de prazer: a fúria que dorme e a fúria que vela.
Os prazeres não podem se acumular, diz Epicuro. Uma vida objetivamente lenta no uso dos prazeres pode ser uma vida espiritualmente aumentada no seu sentimento. Epicuro diz que não se pode forçar a natureza, mas que é preciso persuadi-la. Os estados calmos são apenas um movimento alegre que se tornou lento e floresceu-nos a alma. Eles são uma espécie de prazer em movimento, mas pacificados, um prazer bebido lentamente e saboreado com bondade e inteligência, um prazer alongado. 'Não é preciso intensificar o mundo'; essas palavras do hindu Vivekananda traduzem muito bem o espírito da moral epicurista. Intensificar o mundo é fazer com que nosso prazer dependa demasiadamente da excitação; é esquecer que nossa liberdade consiste num certo poder, não de nos separar de nossos prazeres, mas de controlá-los e de retardá-los o uso. O prazer em movimento é portanto necessário; absolutamente, não é para se desdenhar. Sem ele nós não acordaríamos para a vida feliz. O despertar para o prazer é, no entanto, uma só coisa com o despertar da sensibilidade, aquele da alma e do corpo."

FALLOT, Jean. Le Plaisir e la Mort dans la Philosophie d'Épicure. Paris: René Julliard, 1951. pp. 28-42. Tradução livre: Vinícius Nicastro Honesko.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Amarelos

Sentidos à flor da pele com uma mente quase insana: começo a girar por corredores em que linhas traçadas como que em meio a um tumulto se espalham inadvertidamente. Estou quase sentindo a circulação do meu sangue nas minhas mãos frias; assaltam-me pensamentos sobre meu passado recente (a memória é uma grande ferida, diria Chico na boca de um velho agonizante que tenta, como num ato de extrema unção, rever-se em sua própria história familiar). Agora estou sentado diante de um dos mais conhecidos girassóis de Van Gogh. Pena que estou surdo para mim mesmo e não consigo enxergar o que disse; um abandono, uma melancolia retardada, que chega sempre depois e a tentativa de expadir o amarelo dos girassóis para colorir minha vida.
Como nos últimos anos de vida, com a doença, Van Gogh abre o leque de cores e também abre uma troca. Linhas de pensamento era o que ele praticamente pintava a todo instante; cores quentes e mais frias. Quanta angústia estava a guiar estas linhas? Quão dolorosa foi a estrada da loucura?
A entrega para a morte também pode ser um inverso na vida; entregar-se incorrupto ao mar da corrupção: tenso fluxo que não para de impor-se na minha mente... perco-me...
Soltem as luzes da gaiola, abatam os pombos litorâneos, solucionem as questões de vida, lancem-me no mar da morte, no qual não morro ou desapareço, apenas pereço no vermelho escuro da sombra do louco que me chama. A tela "Night (after Millet)" se me mostra como uma obscuridade e me fala do obscuro em minha vida. A luz como uma espiral que se perde nas gotas de sombra até se diluírem e formarem lanças para o futuro, mas com tonalidades multicolores.
A imagem de uma caminhada na praia, a pouca luz de fim de tarde com seus tons amarelados e rosáceos são visões de um "warm short moment called life" (como diria Gilmour); piso em conchas, as pego, sinto como que casas abandonadas a acariciar minha palma da mão, já tão cansada, com suas rugosidades. Os grãos de areia roçam minha face e o calor faz as gotículas de suor aparecerem em seu buço, o qual estava a mirar quando escutávamos o som do mar. E a pouca claridade amarelada é como a luz dos girassóis... eu tento transpor o mar que está a minha frente com a força luminosa que libertei da gaiola.
Ainda corro o dedo pelo meu rosto como que a sentir dedos outros; meu magro rosto, desdenhoso da barba que insiste em crescer, agora quer descanso. A neve queima, o branco me deixa enjoado, corto o polegar direito tentando atingir com meu sangue um tucano que passa no céu da Europa. Volto à praia e a vejo novamente com a pele caramelada, com um sorriso que reluzia ao longe e que me dava a certeza de que era ela... e o pôr-do-sol cobre meus ouvidos como o piano do Thelonious que soa atonal o tom amarelo dos meus sonhos...

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Nuvens


Mil motivos encontro para seguir uma nuvem que passa sobre minha cabeça, numa manhã fria e límpida de dezembro. A variação das formas pode ser o primeiro: como uma nuvem, água, pode deixar-se apreender como coisa imaginada, como um cão, por exemplo? Mas, no instante mesmo em que vejo um cão, sinto a transformação, a ligação imediata da face canina com os dentes de uma gigantesca serpente... Subo na cauda dela e embarco na demora imaterial do céu. Imortal, eis talvez a palavra que mais se vincula à ideia de céu, ao menos na nossa cultura ocidental. A minha viagem na cauda da serpente começa com um balançar que me faz ver a morte de perto. Mas a imortalidade, a eternidade do céu está ali, pronta a receber um corpo morto. O jogo dos mortos e dos vivos se desfaz no passeio guiado pela serpente, a qual acaba de se transformar numa águia. Voo mais rápido, arranco dos meus olhos a visão mais que etérea da eternidade... uma cacofonia pouco escutada, porém que faz seus constantes ataques às profundezas de qualquer nefelibata. Ando no lombo gigantesco da águia e vejo, a partir da sua asa direita, um esplendor de cores de uma aurora boreal. O imortal céu anuncia mortes corriqueiras, mas as nuvens surgem e ressurgem na velocidade da minha vida. Às voltas com o turbilhão do bater de asas da águia, que agora é um lento hipopótomo, sigo a viagem no azul celeste. Agora as cores da aurora seguram o azul com mãos violetas e o hipopótomo procura o seu pântano... desaguamos em chuva; vou junto, ajudo a molhar a terra, penetro em raízes tubérculas que acabam de ser colhidas por um lavrador faminto. Sou cozido e retomo o lombo de um cavalo vaporizado que sai da panela e procura a janela... lá fora rencontramos novas nuvens.
Sinto a luz do sol e a revolta dos ventos que levam meu cavalo e eu ao encontro de faces conhecidas da infância que agora se balançam num gigantesco cumulus nimbus. A eternidade respira assim, no pulsar de vida e morte diário, num passeio elegante sobre uma serpente, ou no cambaleante titubear do bêbado que na esquina tenta diariamente esquecer seus problemas a cada gole. Solto a mão dos meus companheiros que voltaram a chover e voo ao encontro do próximo trem, que acabei de ver passar, cruzando o azul. Estou a vaporizar a vida em cada instante, na turbulência das meta-formas de qualquer nuvem; encontro azuis e vermelhos no negro dia infame e cavalgo ao longo de uma estrada sem caminho, de um eterno infimamente etéreo.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Sentidos

Rabiscos plásticos de um corpo sem alma
que brinca com o amarelado das folhas de um caderno vermelho.
Cores e sonhos, sons e passeios mentais.
A volta do peão, a vida num susto, o vermelho dos olhos.

Paredes brancas, coloridas, assustadas
lampejos espasmódicos que estremecem e assustam.
Natureza morta, risos atemporais, um cristo nu
rasgado na página rabiscada do caderno vermelho.

Corro, cheiro, rio e choro tua ausência
Projéteis fictícios rasgam meu corpo fraco e forte.
Lances de dados mesmo que em circunstâncias eternas
sussurrando ao meu ouvido a palavra faltante.

E a conversa infinita que insiste em finir
As flores débeis nos jardins desgastados da memória.
Uma fragrância quase inusitada de outrora
que se desfaz e se refaz, na velocidade do peão.


...ouço um violino triste que te deseja
nas alturas das nuvens cambiantes.
Corais das vozes e dos mares, reluzentes e sonoros
nas paredes e páginas de um caderno vermelho.


segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

ao mais recente morador dos Jardins, in memorian

pícaro tucura da província ainda fora do google earth
mateiro nas quebradas do parque temático urbanóide de vida
despacho e tocaia tiros de jazz na encruzilhada

macunaíma desarmado desamado enjaulado castrado esterilizado
com a assepsia dos contentes, dos leitores de jornal, dos especuladores
fornicadores aos domingos

literatura marginal de banca de jornal
foco permanente de guerrilha contra contra o tédio, a insônia, a depressão
a disfunção erétil, táctil, ontológica
combates mercenários sem mortos nem vivos

milhagens de horas-extraídas e assédios imorais
para a inextorquível e perpétua aquisição final:
a sepultura de mármore, placa de bronze, número e quadra privativos
no chiquetocharmoso cemitério da Consolação.

Sunday

restos de vinho nas taças
restos da chuva nas ruas
resto de festas, de orgias e marasmos
a cidade ressona, amanhã
"formigas que trafegam sem porquê"

salva-me um som de trompete de Marsalis ao fundo
uma náusea e uma pequena obstinação.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Duas poesias numa leitura




Metamorfoses... à "Beira-mar"...

"Eu consultei o mito,
Interroguei o céu que marcha:

Debato-me na gaiola do mundo
Até que me envolva o futuro.

Luzes ambíguas dançam,
Homens deslocam o busto
E a Esfinge prepara lentamente
O avesso da sua resposta.

Onda que vais, onda que vens,
Dá-me notícias de mim mesmo."

...e ou mergulhado nele...

"Esta noite eu te encontro nas solidões de coral
Onde a força da vida nos trouxe pela mão.
No cume dos redondos lustres em concha
Uma dançarina se desfolha.
Os sonhos da tua infância
Desenrolam-se da boca das sereias.
A grande borboleta verde do fundo do mar
Que só nasce de mil em mil anos
Adeja em torno a ti para te servir,
Apresentando-te o espelho em que a água se mira,
E os finos peixes amarelos e azuis
Circulando nos teus cabelos
Trazem pronto o líquido para adormecer o escafandrista.
Mergulhamos sem pavor
Nestas fundas regiões onde dorme o veleiro,
À espera que o irreal não se levante em aurora
Sobre nossos corpos que retornam às águas do paraíso."

M.M. nas "Metamorfoses" em leitura numa notte grigia-chiara...

Nota sobre a revolução


"(...) deve-se considerar que não há coisa mais difícil de lidar, nem mais duvidosa de conseguir, nem mais perigosa de manejar que conduzir o estabelecimento de uma nova ordem. Porque aquele que a introduz tem por inimigo todos os que se beneficiavam da antiga ordem e, por amigo, os fracos defensores que dela se beneficiariam; fraqueza que em parte deriva do medo dos adversários, que tinham as leis ao seu lado, e em parte da incredulidade dos homens, que na verdade não creem nas coisas novas, a menos que se assentem numa experiência sólida."



Nicolau Maquiavel. O príncipe. Trad. Luiz A. Araújo. São Paulo: Companhia das Letras-Penguin, 2010. p, 63-64.

Imagem: Alberto Korda. In: Cuba por Korda. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 66.