domingo, 22 de março de 2015

Carta à destinatária impossível


Para minha destinatária impossível.

A noite de sábado engole não só a luz, querida, mas também meu dedilhado neste teclado sujo em que, certa vez, talvez você tenha fixado demais o olhar. Acho que você estava aqui, sentada ao meu lado, neste apartamento pequeno, úmido e vazio. Ainda me lembro de "Pictures of you" soando leve, ainda me lembro das fotos de sua infância que você me mostrou, ainda me lembro de seu sorriso doce. Tomado de espanto, acho que acabo por inventar essa noite, ou a memória não é uma construção do futuro mais do que do passado? Acho que você nunca esteve a meu lado e que você não passa de um desses fantasmas solitários a zombar dos solitários bichos que pensam ser os únicos a falar. Querida, gostaria de poder não escrever esta carta, mas é ela que não cessa de não se escrever (e acho que você entende essa tola piada, não?). A noite segue longa e não paro de me perguntar o porquê das cartas, o porquê de eu ter escrito, até que me deparo com versos de um chileno à meia luz:

"Estuve enfermo, sin lugar a dudas
y no sólo de insomnio,
también de ideas fijas que me hicieron leer
con obscena atención a unos cuantos psicólogos,
pero escribí y el crimen fue menor,
lo pagué verso a verso hasta escribirlo,
porque de la palabra que se ajusta al abismo
surge un poco de oscura inteligencia
y a esa luz muchos monstruos no son ajusticiados."

Querida, nenhuma palavra que dirijo a você é capaz de ajustar-se ao abismo da nossa impossibilidade. Nada sutura a distância e jamais poderemos atravessar um campo florido que nos entregaria a um alegre abraço. São apenas mapas; aliás, sempre foram minhas cartas os mapas desse campo cheio de flores onde pássaros inventariam a infâmia e cantam sem que ninguém os ouça. As ideias fixas que atormentaram o poeta também desenham-se nestas palavras que talvez você lerá. Mas essas palavras desajustadas não podem dizer que há pouco era sábado, que eu lhe escrevia esta carta e que você, para mim, talvez sempre estará, tal como Flora, vagando à espera do Zéfiro que jamais aparecerá.

Do seu remetente impossível.  

Imagem: Sandro Botticelli. Primavera. (detalhe) 1482. Galleria degli Uffizi, Florença. 

domingo, 15 de março de 2015

A guerra civil paradigma da política

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Stasis, de Agamben, conclui Homo Sacer.
Andrea Cavalletti 

“Hoje há tanto uma “polemologia”, uma teoria da Guerra, quanto uma “irenologia”, uma teoria da paz, mas não existe uma “stasiologia”, uma teoria da guerra civil”. A partir desse diagnóstico, Giorgio Agamben constrói seu novo livro, “Stasis. A guerra civil como paradigma político, Homo Sacer, II, 2” (Bollati Boringhieri, 2015): trata-se da reelaboração de dois seminários ocorridos na Princeton University, em outubro de 2001, que agora são reunidos e compostos como última peça do mosaico Homo sacer. Na ordenação de toda a obra, esse novo volume segue “Estado de Exceção” e precede “O Sacramento da linguagem”, isto é, situa-se no ponto nodal da seção II, dedicada às formas jurídico-políticas e ao governo, e que se conclui com a “genealogia teológica” da economia, ou seja, com “O Reino e a Glória” (cuja exata numeração é II, 4 e não II, 2, como se lê, por conta de um descuido, no frontispício).

É certo que Agamben não pretendeu colmatar a lacuna ao propor uma teoria stasiológica. Como anuncia no subtítulo, Stasis, antes, analisa a guerra civil como “paradigma” da política ocidental, isto é – seguindo um rigoroso princípio metodológico – como fenômeno singular que, com sua exposição, torna inteligível o contexto problemático mais amplo.

O primeiro seminário é dedicado à Grécia clássica e baseia-se nos trabalhos de Nicole Loraux, a mais importante e notória estudiosa contemporânea da stasis. O segundo, dedicado a Hobbes, é uma penetrante e muito inovadora leitura do Leviatã, desenvolvida como uma “iconologia filosófica”, ou seja, como interpretação da célebre água-forte do frontispício de 1651. Assim, de imediato se mostra ao leitor que o confronto com a teoria do estado (e, em particular, com Carl Schmitt) não será velado nem sem implicações. Apenas o gesto genuinamente arqueológico pode, com efeito, atingir o teor político mais relevante.

Vamos pela ordem. De modo completamente inovador, rachando o duro lugar comum segundo o qual o nascimento da polis assinalaria uma superação do oikos, da casa, e dos primeiros vínculos de parentesco, Loraux mostrou como as guerras civis que agitam periodicamente a cidade grega provêm, na realidade, da família. Elas revelam, portanto, a persistência do poder do oikos no seio da cidade. Mas não apenas isso. A relação entre cidade e família é em grande medida ambivalente, uma vez que a própria reconciliação que põe fim à stasis é realizada (como na Sicília, em Nakone, no século III) por meio de uma nova ligação parental, a dos “irmãos por sorteio”. Mas por que a família implica necessariamente o conflito? E por que pode então se representar como forma de pacificação? Agamben relê as fontes e dissolve a ambiguidade: se é verdade que a stasis se situa entre cidade e família, ela, todavia, não provém do oikos, mas se produz em um campo de tensões polares que vão do oikos à polis vice-versa, confundindo o que pertence a uma e a outra, o íntimo e o estranho. Na guerra civil “a ligação política se transfere ao interior da casa” enquanto “o vínculo familiar se aliena em facção”.

Além disso, guerra civil funciona no mundo grego como “revelador” da política: quem nela não toma parte acaba, de fato, punido com a infâmia e deixa de ser um cidadão. Isso significa não apenas que a stasis é consubstancial à polis (exige uma pacificação e não deve dar lugar a ressentimentos, e permanece ao mesmo tempo uma possibilidade aberta), mas que a própria política é “um campo incessantemente percorrido pelas correntes tensivas da politização e da despolitização, da família e da cidade”. A interpretação paradigmática do fenômeno “guerra civil” torna, por fim, inteligível o domínio mais amplo: a política, assim como o mundo grego a concebeu e nos transmitiu.

O segundo seminário (Leviatã e Behemoth) põe à prova o paradigma stasiológico na teoria moderna ou securitária do estado, ou seja, exibindo-o em sua mais severa construção, o Leviatã de Hobbes. Estudando a famosa água-forte como um compêndio de toda a obra, Agamben descobre na série de emblemas e, sobretudo, nas imagens enigmáticas do gigante composto de homens (que é ao mesmo tempo mito e artifício, Leviatã e produto de um dispositivo óptico) e da cidade deserta sobre a qual ele se levanta, as chaves interpretativas dos conceitos fundamentais de Hobbes: o “corpo político” e as duplas populus / mutitudo dissoluta; civitas / status naturalis. A análise da iconologia religiosa (o monstro do Livro de Jó que dá título ao livro assume traços até mesmo demoníacos na tradição cristã) induz então a reler todo o livro a partir da terceira parte: a grande teologia que Hobbes chamava de sua “política cristã”. E é uma política escatológica, do Reino de Deus na terra.

Se a cidade da água-forte aparece vazia, argumenta Agamben, é porque o povo é um conceito contraditório e fantasmático. O povo, que só pode ser representado, desaparece no seu representante – o qual é, por sua vez, o fruto do engano visual que compõe muitos seres em um só. Portanto, a multitudo dissoluta, única presença na cidade, se dá por conta da constituição do soberano. Mas ela é também o sujeito da guerra civil (Behemoth) que permanece assim inseparável do Leviatã como uma projeção do estado de natureza, da luta de todos contra todos, no coração da civitas. Behemoth e Leviatã convivem e, seja segundo a tradição (na origem talmúdica), seja segundo a lógica rigorosa (isto é, profética) de Hobbes, acabarão por matar um ao outro. Somente então, com o desaparecimento do estado profano, poderá afirmar-se, entre os homens, o Reino de Deus: a ficção da representação será apagada e a multidão restituída a si mesma.

Estamos, portanto, no lado oposto da leitura schmittiana, que, como é notório, vê no estado de segurança o katechōn, a potência que impede o fim do mundo. Ora, se Schmitt permanece hoje atual é porque desenvolveu, de maneira imprudente, a visão política ainda dominante, que trai o modelo grego e força o de Hobbes no sentido da associação, excluindo a tendência à dissociação. Justamente a manutenção do mitologema associativo (securitário) implica, entretanto, como é sempre mais evidente, a contínua exposição ao perigo. Um mais sombrio “revelador” do político toma assim o lugar da stasis: aos membros do povo Schmitt requer “o ser disposto à morte”.

Esse livro desvela uma outra perspectiva, messiânica e fiel ao paradigma stasiológico. Ela rompe o encanto mortífero reconhecendo na soberania uma ficção que será destruída. E não diz respeito a Schmitt, mas a Benjamin: o estado não é uma categoria do Reino, mas (sendo internamente disposto à dissolução) “de seu mais silencioso aproximar-se”. 

Texto publicado no dia 01/03/2015 no suplemento de "Alias" (pp. 3-4), do jornal "Il manifesto". Tradução: Vinícius N. Honesko.

Imagem: Capa (água-forte) da edição de 1651 do "Leviatã", de Thomas Hobbes.




sexta-feira, 6 de março de 2015

Estudo sobre o olhar



Percorro as ruas vazias
sem cores e vertidas em palavras
os horizontes preenchem cada esquina
são os traços de uma voz que se foi
desde os dias em que as vistas
ainda eram sonhadas

Cada passo é uma volta ao mundo
estranhas vozes em línguas desconhecidas
no mais íntimo espaço das vias
respiratórias, urbanas, romanas

Piso um campo de flores
saio com perfumes verdes
soltos pelos olhos da moça
que há pouco eu beijava

O sonho do caminho perfeito
a retidão, o cristo morto,
os burocratas que se deleitam
com sua baba

Volto ao caminho, deito nas flores
e espero a moça
ela que nunca esteve aqui
e o deus da noite vazia
zomba da felicidade e dança
com minha sombra arredia

A esquina está distante
como o mundo, como o mundo
silêncios em cada horizonte
sístole, diástole, sístole diástole
e os burocratas quase se afogam
de tanto gozar com suas babas


Imagem: Gerd Ludwig. Pripyat, Ucrânia.

domingo, 1 de março de 2015

Pequeno parágrafo sobre um cruzamento



Há um desperdício de vida em cada instante, disse, mais ou menos assim, uma poeta. Mas o que de uso, de aproveitável é a vida, ou melhor, o que não se perde na vida? Dou alguns passos e chego numa avenida movimentada, um emaranhado de carros e fumaça, barulhos e gente incrustada em latas como mariscos num canto de pedra junto ao mar. Tento não pensar muito e desvio o olhar para as acácias que nestes tempos esbanjam um amarelo que Van Gogh talvez um dia aspirou pintar. Quando criança, tomava as pétalas das flores de acácia para brincar. Eram dias incautos que corriam soltos e todas as cores brilhavam com algum sentido de liberdade: havia vida num mundo por vir, havia amarelos desperdiçados com alegria. Mas isso é bobagem que agora penso e que outrora sequer podia ter qualquer chance de ser pensada já que se perdia com a vida. O cruzamento continua movimentado: por mim passa uma menina com fones de ouvido, no carro parado no semáforo alguém discute pelo telefone, o ônibus está abarrotado de gente, o sol começa a se esconder, buzinam os motoristas nervosos. E se todos tivessem uma alma, esta não estaria perdida à flor do dia ou mesmo antes de ter nascido? Mas escuto ecos de vozes: "isso é coisa de poeta à toa, o mundo real é duro como as latas das quais agora você desvia o olhar." Tento não pensar e me encosto num canto com a caderneta em mãos para tomar estas notas. Mas qual o porquê dessas palavras se a vida é desperdício? As folhas em branco poderiam por acaso ser tingidas pelo amarelo das acácias? É porventura possível seguir pela cidade sem imaginar que tudo, neste dia, já está gasto e perdido? Nossa sorte não é obra do acaso, do inescrutável acaso? A vida, qualquer vida, não é um tecido de citações perdidas e, por isso, justamente desperdício? Consigo, por fim, atravessar o cruzamento e começo a caminhar pela rua que me conduz ao trabalho: e tudo parece já ter sido dito, e a confusão dos barulhos agora soam normal, e a constância das horas parecem ritmadas, e a fragilidade dos projetos parecem ter sentido, e as coisas à toa podem ser apagadas, e as acácias já não têm nenhum amarelo, e a náusea me parece ser o único sentido compartilhado enquanto esperamos a redenção da catástrofe que já aconteceu.