Giorgio Agamben
A mostra que aconteceu ano
passado no museu Thyssen-Bornemisza de Madri marcou uma importante data na
história da pintura de nosso tempo, pois, dentre outras coisas, impõe a revogação do singular monopólio que uma difusa tendência museográfica
pretende ter sobre o sintagma “arte contemporânea". De fato, as obras dos sete
pintores e escultores expostas na mostra cobrem um período que vai
do fim dos anos cinquenta do século XX até hoje e, portanto, são, sem sombra de
dúvidas, contemporâneas. Igualmente indubitável é o fato de tratar-se de um grupo, no
sentido próprio do termo: amizade e solidariedade de formação e de intentos
ligam desde o início as quatro mulheres (Isabel Quintanilla, Amalia Avia, Maria
Moreno e Esperanza Parada) e os três homens (Antonio, Francisco e Julio López)
em uma intimidade tão estreita que é difícil encontrar um equivalente ao grupo
em toda a arte do século XX. Entretanto, justamente por isso, eles sempre
declinaram qualquer intenção estratégica de “grupo". “Éramos amigos"
e isso bastava, mesmo se a amizade fosse por vezes tão intensa a ponto de se
transformar em amor: quatro dentre eles (Isabel Quintanilla e Francisco López –
que conheci em Roma na Accademia di Spagna no início dos anos sessenta –,
Antonio López e Maria Moreno) se casaram.
A rubrica “realistas de Madri”, que
dá título à mostra, talvez soe incongruente (seria como intitular
"realistas venezianos” uma mostra que reunisse quadros de Bellini,
Tiziano e Giorgione) e prova mais uma vez, como se fosse necessário, que o
vocabulário da crítica de arte de nosso tempo deverá, cedo ou tarde, sofrer uma
drástica revisão; todavia, os termos realidad,
o qual me lembro de ter escutado Francisco Lopez pronunciar enquanto
modelava na argila suas esculturas, e forma
real, com que Antonio Lopez nomeia o objeto de sua pintura, por certo
designam a estrela polar por meio da qual esses artistas orientam tenazmente
seu olhar.
Francisco Calvo Serraler, no
catálogo da mostra, observa que o realismo, que começa na metade do século XIX
e ainda hoje continua, é talvez o movimento de vanguarda mais duradouro de
nosso tempo. A palavra “realismo”, no entanto, tem sentido apenas caso se especifique
o que se entende por “realidade” – o que, em particular, tais artistas têm em
mente quando falam de realidade. Uma primeira indicação de resposta pode
ser oferecida pela frequência com que eles elegem, como tema de suas telas,
desenhos, esculturas, portas e, sobretudo, janelas – pensemos, entre outros, na
estupenda Noche (1995), em Puerta roja (1978), em El atardecer en el studio (1975) e em La ventana (1970), de Isabel
Quintanilla, em La cocina de Tomelloso (1972),
de Maria Moreno, em Ventana de noche (1972),
de Francisco Lópes, ou ainda em Quarto de
baño, de Antonio López. O próprio Serraler oportunamente lembrou que a
equiparação do quadro a uma janela a partir da qual se contempla a realidade
remonta a Leon Battista Alberti (De
pictura, I, 19). Ainda mais singular é que justamente essa janela se torne
aqui o objeto da visão do pintor, quase como se, para ele, não se tratasse de
representar diretamente a realidade, mas, antes de tudo, a própria pintura. A
especial autorização de modernidade desses artistas não consiste, assim, apenas em
ter trazido novamente à vida a janela albertiana que a arte moderna havia
pretendido excluir da pintura; antes, fazendo dela o tema de suas telas, eles a
colocaram em questão com muito mais radicalidade do que as vanguardas de que
eram contemporâneos. A realidade – e tal é a mensagem deles – não é o que a
janela da pintura representa: real é apenas a coincidência de pintura e
realidade na superfície da tela. Por isso, com uma singular inversão, a janela
que eles representam não abre à luz e ao mundo visível, mas – como na Noche, de Quintanilla, e na Ventana di Noche, de Francisco Lópes –
às trevas da noite. Com razão Guillermo Solana, em sua introdução, fala de uma
arte dos umbrais, uma arte das soleiras: como um ícone bizantino invertido, a
tela é aí a soleira que coloca em comunicação dois mundos incomensuráveis – que
não são mais o terreno e o divino, o typos
e o prototypos, mas a própria
arte e a própria realidade.
Giorgio Agamben. Realistas de Madrid, Thyssen-Bornemisza, Madrid (9 febbraio - 22 maggio 2016). In.: Pictura, n. 2. Macerata: Quodlibet, Junho/2017. p. 265-269. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko.
Imagem: Maria Quintanilla. La Noche. 1995.