domingo, 29 de julho de 2007

Imagem e semelhança


À imagem e semelhança!

Tal é a fórmula mágica que sobeja escondida
em toda moderna fala ocidental
Quiçá não tivera sido pronunciada!
A revelação que nos traz
é aquela de destempero da vida humana
Nada mais impalatável do que si mesmo
Ora, resolvo isso tragando deus
À imagem e semelhança!
Nessa simples tática tornamo-nos solventes
Deglutindo todo aspecto humano
Restando ilesa a figura no espelho

À imagem e semelhança!

sábado, 28 de julho de 2007

Ode marítima


Almirante tresloucado distante do mar

Milhas e milhas no seco do deserto naufragou

Acres odores do oceano a espreitá-lo na saudade

Marítimos horizontes de lembranças vagas


Pudesse lançar-se às lufadas de vento tépido

Sonâmbulo Odisseu de volta à casa desmesurada

Ao mar extenso mar voltaria

Dançaria com as correntes e, feliz, perder-se-ia.


sexta-feira, 27 de julho de 2007

Idéia da morte


O anjo da morte, que em certas lendas chama-se Samael e com quem diz-se que também Moisés deveria lutar, é a linguagem. Ela nos anuncia a morte - que outra coisa faz a linguagem? Mas exatamente esse anúncio faz com que morrer seja tão difícil para nós. Desde tempos imemoriais, de quando dura a sua história, a humanidade está em luta com o anjo, para arrancar-lhe o segredo que ele se limita a anunciar. Mas das suas mãos pueris pode-se retirar apenas aquele anúncio que, de resto, ele nos tinha, de todo modo, vindo trazer. Disso o anjo não tem culpa, e somente quem compreende a inocência da linguagem entende também o verdadeiro sentido do anúncio e pode, eventualmente, aprender a morrer.

(AGAMBEN, Giorgio. Idea della Prosa. Macerata: Quodlibet, 2002. p. 117. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

quarta-feira, 25 de julho de 2007

El intruso



Estoy, junto con mis semejantes cada vez más numerosos, en los comienzos de una mutación. En efecto, el hombre comienza a sobrepasar infinitamente al hombre (esto es lo que siempre quiso decir la "muerte de dios", en todos los sentidos posibles). Se convierte en lo que es: el más terrorífico y perturbador técnico, como lo designó Sóflocles hace veinticinco siglos, el que desnaturaliza y rehace la naturaleza, el que recrea la creación, el que la saca de la nada y el que, quizá, vuelva a llevarla a la nada. El que es capaz del origen y del fin.

El intruso no es otro que yo mismo y el hombre mismo. No otro que el mismo que no termina de alterarse, a la vez aguzado y agotado, desnudado y sobreequipado, intruso en el mundo tanto como en sí mismo, inquietante oleada de lo ajeno, conatus de una infinidadd excreciente.


(NANCY, Jean-Luc. El Intruso. Buenos Aires: Amorrortu, 2006. pp. 44-45)

terça-feira, 24 de julho de 2007

CANNIBALE



MANIFESTE CANNIBALE DADA


Vous êtes tous accusés; levez-vous. L'orateur ne peut vous parler que si vous êtes debout.
Debout comme pour la Marseillaise,
debout comme pour l'hymne russe,
debout comme pour le God save the king,
debout comme devant le drapeau.
Enfin debout devant DADA qui représente la vie et qui vous accuse de tout aimer par snobisme. du moment que cela coûte cher.
Vous vous êtes tous rassis ? Tant mieux, comme cela vous allez m'écouter avec plus d'attention.
Que faites vous ici, parqués comme des hiutres sérieuses — car vous êtes sérieux n'est-ce pas ?
Sérieux, sérieux, sérieux jusqu'à la mort.
La mort est une chose sérieuse, hein ?
On meurt en héros, ou en idiot ce qui est même chose. Le seul mot qui ne soit pas éphémère c'est le mot mort. Vous aimez la mort pour les autres.
A mort, à mort, à mort.
Il n'y a que l'argent qui ne meurt pas, il part seulement en voyage.
C'est le Dieu, celui que l'on respecte, le personnage sérieux — argent respect des familles. Honneur, honneur à l'argent : l'homme qui a de l'argent est un homme honorable.
L'honneur s'achête et se vend comme le cul. Le cul, le cul représente la vie comme les pommes frites, et vous tous qui êtes sérieux, vous sentirez plus mauvais que la merde de vache.
DADA lui ne sent rien, il n'est rien, rien, rien.
Il est comme vos espoires : rien.
comme vos paradis : rien
comme vos idoles : rien
comme vos hommes politiques : rien
comme vos héros : rien
comme vos artistes : rien
comme vos religions : rien
Sifflez, criez, cassez-moi la gueule et puis, et puis ? Je vous dirai encore que vous ê tous des poires. Dans trois mois nous vous vendrons, mes amis et moi, nos tableaux pour quelques francs.
Francis PICABIA.
("DADA" nº 7, "DADAphone", Paris, 1920). Extraído de Dadá 1916-1966. Documentos do movimento Dadá Internacional. Montagem: Hermann Vogel. Tradução: Betty Kunz.

Sois todos acusados: Levantai-vos! Só se pode falar-vos quando estais de pé. Ficai de pé como se estivésseis ouvindo a Marselhesa, o hino nacional russo ou God save the King.

De pé, como se a bandeira estivesse à vossa frente. Ou como se estivesseis diante de Dadá, que significa vida e que vos acusa de amardes tudo por esnobismo, contanto que seja muito caro.

Então vós vos sentastes todos novamente? Tanto melhor, pois me escutareis com mais atenção.

Que estais fazendo aqui, apinhados como crustáceos sérios porque vós sois sérios, não é? Sérios, sérios, sérios até a morte. A morte é um assunto sério, não é mesmo?

Morre-se como herói ou como idiota, o que vem a dar na mesma. A única palavra que tem mais do que valor efêmero é a palavra morte. Vós amais a morte que os outros morrem.

Morte! Matai-os, deixai-os morrer! Só o dinheiro não morre, ele apenas sai um pouco a viajar.

Ele é o Deus que se respeita, uma personalidade séria - Dinheiro põe de joelhos famílias inteiras.
Viva o dinheiro! Viva! O homem que tem dinheiro é um homem honrado.

A honra é comprada e vendida como - o Cu. O Cu representa a vida como as batatas fritas e todos vós, com vossa seriedade, cheirais pior que bosta de vaca.

Dadá não cheira a nada, nada, nada.
É como vossas esperanças: nada.
Como o vosso paraíso: nada.
Como os vossos ídolos: nada.
Como os vossos políticos: nada.
Como os vossos heróis: nada.
Como os vossos artistas: nada.
Como as vossas religiões: nada.

Assobiai, gritai, quebrai-me a cara - e então? Sempre vos direi que sois uns imbecis e vos venderei os meus quadros por alguns francos.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Ética




A ética se revela somente onde o bem não pode ser outra coisa senão a apreensão do mal. Isto é, o bem não é uma coisa, nem algo que se coloca sobre ou ao lado de qualquer outra coisa má. Ética é aquilo que se revela quando se vê que os conteúdos do autêntico e do próprio são somente o inautêntico e o impróprio. Enquanto dentre os homens inautênticos o bem tiver um lugar separado, a apropriação do impróprio é simplesmente impossível. Insistindo-se nesta separação, a conquista do bem sempre implica um crescimento do mal rejeitado.

A ética não consiste em distinguir o mal do bem para poder distanciá-los, como o faz a moral. Uma ética que consegue atravessar o inferno criado pelos homens - uma ética pós-Auschwitz - não pode se fundar sobre fatos morais, mas sim sobre a práxis humana, isto é, uma práxis sem um fim - a potência do homem.

O homem tem necessidade do possível para viver, caso contrário não seria possível nenhuma ética, nenhuma política, nenhuma atividade livre.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Quinze teses sobre a arte contemporânea



1. A arte não é o descenso sublime do infinito na abjeção finita do corpo e da sexualidade. É a produção de uma série subjetiva infinita com os meios finitos de uma subtração material.


2. A arte não pode ser meramente a expressão de uma particularidade, seja étnica ou pessoal. A arte é a produção impessoal de uma verdade que se dirige a todos e a cada um.


3. A arte é o processo de uma verdade, e esta verdade é sempre a verdade do sensível; do sensível enquanto sensível. Isto significa: a transformação do sensível em um acontecimento da Idéia.


4. Há necessariamente uma pluralidade de artes e, seja quais forem suas intersecções imagináveis, não há maneira de imaginar a totalização de tal pluralidade.


5. Toda arte se desenvolve a partir de uma forma impura, e a progressiva purificação desta impureza compõe a história, seja da verdade artística, seja de sua extenuação.


6. Os sujeitos de uma verdade artística são as obras que a compõem.


7. Esta composição caracteriza-se numa configuração infinita que, no contexto artístico contemporâneo, constitui uma totalidade genérica.


8. O real da arte é a impureza ideal como processo imanente de sua purificação. Dito de outro modo: a matéria prima de uma arte é a contingência do evento de uma forma. A arte é a secundária formalização do acontecimento de uma forma como informe.


9. A única máxima da arte contemporânea é não ser imperial. Isso também significa que não tem de ser democrática, se por democrática se entenda: conforme à idéia imperial de liberdade política.


10. A arte não imperial é necessariamente arte abstrata, neste sentido: abstrai-se de toda particularidade e formaliza o gesto da abstração.


11. A abstração da arte não imperial não se refere a algum público em particular. A arte não imperial liga-se a uma espécie de aristocratismo proletário: faz aquilo que diz, sem distinguir entre pessoas.


12. A arte não imperial deve ser tão rigorosa quanto uma demonstração, tão surpreendente como uma emboscada na noite, tão elevada como uma estrela.


13. A arte só pode realizar-se hoje a partir daquilo que - para o Império - não existe. A arte constrói abstratamente a visibilidade desta inexistência. Isto é o que norteia o princípio formal de cada arte: a capacidade de tornar visível para todos aquilo que para o Império (e portanto, para todos, porém de um outro ponto de vista) não existe.


14. Convencido de controlar o inteiro domínio do visível e do audível através das leis comerciais da circulação e da comunicação democrática, o Império já não censura nada. Simplesmente abandonar-se a esta autorização de gozar pode ser a ruína de toda arte, como de todo pensamento. Devemos nos tornar impiedosos censores de nós mesmos.


15. É melhor não fazer nada que contribuir formalmente para a visibilidade daquilo que, para o Império, já existe.

Alain Badiou


(trad. Jnf).

quinta-feira, 19 de julho de 2007

SILÊNCIO!



sonambúlicos olhos

eclipse de luzes festivamente fúnebres

metais e o cheiro de morte

platéias, platéias, platéias.


continuar a mover a máquina, tu deves!

mesmo sobrevoando os escombros

cadáveres, cadáveres, cadáveres

de algumas horas atrás.


duzentas pessoas carbonizadas e medalhas

na tela que não televisionou a guerra

Corpos e medalhas...

"Dans le monde réellement renversé, le vrai est un moment du faux."

Os anúncios de Guy Debord se colam com tremenda facilidade ao mundo contemporâneo. Sua leitura de mundo é extremamente pertinente e perspicaz. Nada, simplesmente nada, escapa às garras do espetáculo. Ele é o poder que nos quer visíveis, custe o que custar.
Esta semana entramos numa época de "alegrias para o povo brasileiro". Trata-se de mais um acontecimento esportivo: os jogos Pan-americanos.
Como em qualquer competição esportiva internacional, o digladiar entre os atletas parece representar a luta pela demarcação de fronteiras num conflito bélico: "Vence a equipe brasileira!!!"; "Para nossa alegria os argentinos foram derrotados!!!" Um patético sentimento de pertença a uma "nação", a um país, que gera uma repulsa aos demais. Somos brasileiros! Somos uma comunidade, uma nação, fundada no nosso próprio, no nosso sentimento de ser brasileiro.
Em pleno século XXI somos muito fundamentalmente marcados por um sentimento romântico, oitocentista. Aliás, é exatamente em momentos como estes - de jogos olímpicos, copa do mundo, enfim, competições desportivas de todo gênero - que o nervo estrutural de nossas frágeis e débeis concepções aparece: patéticos! somos patéticos! Cobertura 24 horas de todas as competições, quantos canais forem necessários para exibição de todos os jogos, enfim... o que se faz necessário para que possamos acompanhar nossos atletas, que suam suas camisas para defender o Brasil...
Na verdade vejo uma coisa extremamente significante nisso tudo. Uma mistura hi-tech fundamentalmente combustiva: a ideologia do Estado-nação oitocentista com a dissiminação das imagens típicas da sociedade do espetáculo. Em tempos de discursos sobre os "cidadãos do mundo", sobre a "aldeia global", assistimos (gozando) batalhas tribais televisionadas, nas quais os defensores de cada tribo - com suas vestimentas típicas - lutam pelo prestígio dos seus.Numa armação descomunal o espetáculo captura a ideologia romântica do Estado-nação e a transforma em mais uma encenação. Teatro que tem sempre o mesmo fim glorioso: a "ode" hino nacional, o içamento da bandeira e a distribuição de medalhas.
Aparentemente problemático ao espetáculo se torna qualquer elemento novo que venha a tumultuar a encenação. No caso dos jogos que acontecem no Rio de Janeiro o trágico evento que aconteceu no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Não quero discutir nenhuma das supostas causas, dos problemas do caos da aviação civil brasileira, do "apagão aéreo" etc... Não, nada disso... Também não quero me colocar como o cretino que se julga superior a todos e a tudo, capaz de se julgar dono de uma sabedoria nietzscheana. Não, nada disso. Não sou um insensível idiota que despreza a dor do luto daqueles amigos e familiares das vítimas do acidente. Não. Também não quero me colocar na posição de um engajado intelectual militante de esquerda que, logo depois do acidente, já levanta a questão: "Neste acidente morreram tantas pessoas, mas este número não representa nem tantos porcento do número daqueles que morrem de fome em tal país africano." Não. Também não quero ser aquela metralhadora ambulante, que gira disparando contra todos, dizendo que no governo tem uma cambada de filhos da puta etc etc etc... Não. Não vou fazer um discurso posicionado contra as mídias, dizendo que estas exploram as imagens de dor e sofrimento dos parentes e amigos da vítimas. Não. Quero apenas tentar ver o que se passa.
À encenação que estava acontecendo no Rio um novo elemento se juntou, justamente o acidente com o avião da TAM. A transmissão ao vivo da tragédia interrompe a exibição dos jogos Pan-americanos. Porém, a indistinção do tratamento das imagens ("imagens, ora, são só imagens...") trouxe-me uma sensação desconfortável, incômoda, vertiginosa. Por vezes, o choro de atletas que acabaram de receber uma medalha; outras vezes o choro desesperado dos parentes das vítimas; por vezes, o brilho da medalha de ouro; outras vezes o brilho dourado das chamas do acidente; por vezes, o brilho prata de uma nova medalha; outras vezes, o prateado do saco em que os corpos daqueles que morreram no acidente eram colocados... Do grito organizado das torcidas, aos gritos angustiados dos que sofrem a dor de uma perda. Tudo isso como pura exposição, como puro espetáculo (aos desavisados lembro: não faço aqui nenhum tipo de chacota, nenhum tipo de piada de mau gosto com o sofrimento alheio).
Eis a sociedade espetacular, na qual a verdade é apenas um momento do falso. Vertiginosa é a sensação de se vagar neste lugar pleno de espectros. Somos espectros; fantasmas para quem a certeza simbólica se desfez completamente na pluralidade dos sentidos alegóricos. Aqui existem todos os sentidos possíveis e, exatamente por isso, não há mais sentido algum. Saída? Não há uma porta de saída, senão tentar apreender o próprio não-sentido. Não há mais a certeza de uma construção, mas apenas a apavorante visão de suas ruínas. Entretanto, é nelas que vivemos; elas são nós mesmos...
"Le spectacle se présente à la fois comme la société même, comme une partie de la société, et comme instrument d´unification. En tant que partie de la société, il est expressément le secteur qui concentre tout regard e toute conscience. Du fait même que ce secteur est séparé, il est le lieu du regard abusé et de la fausse conscience; et l´unification qu´il accomplit n´est rien d´autre qu´un langage officiel de la séparation généralisée."
"À mesure que la nécessité se trouve socialement rêvée, le rêve devient nécessaire. Le spectacle est le mauvais rêve de la société moderne enchaînée, qui n´exprime finalement que son désir de dormir. Le spectacle est le gardien de ce sommeil."

terça-feira, 17 de julho de 2007

Idéia da luz

Acendo a luz num quarto escuro: certo, o quarto iluminado não é mais o quarto escuro, eu o perdi para sempre. No entanto, não se trata exatamente do mesmo quarto? Não é, portanto, o quarto escuro o único conteúdo do quarto iluminado? Aquilo que não posso mais ter, aquilo que infinitamente escapa para trás e, ao mesmo tempo, lança-me para frente é apenas uma representação da linguagem, o escuro pressuposto à luz; mas se abandono a tentativa de apreender este pressuposto, se volto a minha atenção para a luz mesma, se a recebo - aquilo que a luz me dá é, então, o próprio quarto, o escuro não hipotético. O único conteúdo da revelação é o em si fechado, o velado - a luz é apenas o acontecer do escuro a si mesmo.
(AGAMBEN, Giorgio. Idea della Prosa. Macerata: Quodlibet, 2002. p. 109. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Manifesto Antropófago


Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi, or not tupi that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.

O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.

Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.

Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Où Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos.

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.

Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe : ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.

Só podemos atender ao mundo orecular.

Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.

Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.

Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

O instinto Caraíba.

Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.

Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.

Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipeju*

A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.

Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o.

Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?

Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.

A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.

Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.

Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.

Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.

Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.

Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.

As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.

De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.

O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas+ fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.

É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.

O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.

A alegria é a prova dos nove.

No matriarcado de Pindorama.

Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.

Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.
Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.
A alegria é a prova dos nove.

A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.

Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.

A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.

Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

OSWALD DE ANDRADE Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha."
(Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)

* "Lua Nova, o Lua Nova, assopra em Fulano lembranças de mim", in O Selvagem, de Couto Magalhães.

(OSWALD DE ANDRADE. A Utopia Antropofágica. São Paulo: Globo, 2001. pp. 47-52.)

terça-feira, 10 de julho de 2007

Irreparável


Um ser que não é nunca ele mesmo, mas é só o existente. Não é nunca existente, mas é o existente, integralmente e sem refúgio. Ele não funda, nem destina nem torna nulo o existente: é apenas o seu ser exposto, a sua auréola, o seu limite. O existente já não reenvia para o ser: ele é no meio do ser e o ser é inteiramente abandonado no existente. O existente já não reenvia para o próprio ser: ele é no meio do ser e o ser é inteiramente abandonado no existente. Sem refúgio e, todavia, salvo – salvo no seu ser irreparável. O ser, que é o existente, é para sempre salvo do risco de existir como coisa ou de ser nada. O existente, abandonado no meio do ser, é perfeitamente exposto. (...)


Apenas podemos ter esperança naquilo que é sem remédio. Que as coisas estejam assim ou de outra maneira – isto é ainda no mundo. Mas que isso seja irreparável, que o assim seja sem remédio, que nós possamos contempla-lo como tal – isto é a única passagem para fora do mundo. (O caráter mais íntimo da salvação: que sejamos salvos só no instante em que já não queremos sê-lo. Por isso, nesse instante, existe salvação – mas não para nós).



AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. pp. 81-83.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Ao fundo do abismo


Ao fundo do abismo! Não para buscar um novo fundo, não para procurar um in-fundado fundamento, mas para abraçar o nada num enlace negativo: eis a dýnamis do humano - anéantir le néant!


Não se trata de um niilismo que quer o nada, mas de um niilismo levado ao extremo na negação deste nada - anéantir le néant!


Num ultraje às formas pré-feitas, per-feitas, des-feitas do presente falsificado em nada - anéantir le néant!


Um tempo outro, uma história em coleção, na ruptura da seqüência historiográfica - anéantir le néant!


Somente se apreendermos a tão prometida (e sonhada) eternidade vindoura no átimo do instante presente (no kairós instaurado pelo messias - que já está sempre aqui; que desde sempre já veio) é que nos livramos do fundamento e o verdadeiro humano - o ser potencial - pisa o solo de sua terra, de sua pátria: um solo e uma pátria sempre faltantes - anéantir le néant!


O dia do juízo!!! Eis a nossa condição histórica normal, para além da qual não há um a-tempo eterno, um paraíso glorioso - anéantir le néant!


Ir ao fundo do abismo sem tocar seu suposto (pretenso, mítico) fim fundamental - anéantir le néant!


Experimentemos nossa impotência, porque é nela que somos pura potência, nela somos criadores - anéantir le néant!


Provemos da nossa condição para do seu amargo gosto criarmos os mais doces frutos - anéantir le néant!


Neguemos sim, mas não no remorso da lembrança daquilo que nunca foi - anéantir le néant!


Não há o passado com o qual sonhamos (e no qual está eternizado um futuro, no pretenso retorno daquilo que não foi), este sempre nos falta, é sempre ausência - anéantir le néant!


Resta-nos apenas uma coisa: encarar nossa condição de seres faltantes.


Eis aí o nosso sentido...

sábado, 7 de julho de 2007

Poemafásico


Em busca do espaço perdido
Tateamos nas rochas dessa prisão
O tempo,
Esse enigma,
Já o esquecemos em algum beco escuro
da caminhada que ainda prossegue

Rendemos libações a totens erigidos
Ao deus Absurdo
Que nos guia

Mas a fé não está entre nós.

sexta-feira, 6 de julho de 2007

O Castelo


- Permita-me, senhor prefeito, que eu o interompa com uma pergunta - disse K. - O senhor não fez menção, antes, a uma autoridade de controle? A administração, da maneira como o senhor descreve, é de uma natureza tal, que a pessoa se sente mal só de pensar que esse controle possa estar ausente.
- O senhor é muito severo - disse o prefeito. - Mas pode multiplicar por mil sua severidade que ela não será nada em comparação com a severidade que a administração emprega em relação a si mesma. Só uma pessoa completamente estranha pode fazer uma pergunta como a sua. Se existem autoridades de controle? Existem apenas autoridades de controle. Evidentemente elas não se destinam a descobrir erros no sentido grosseiro da palavra, pois não ocorrem erros, e mesmo que aconteça um, como no seu caso, quem tem o direito de dizer de forma definitiva que é um erro?
- Isso seria uma novidade completa! - exclamou K.
- Para mim é uma coisa muito antiga - disse o prefeito. - Eu mesmo estou convencido, de um modo não muito diferente do seu, de que houve um erro e de que, por causa do desespero com isso, Sordini adoeceu gravemente; as primeiras instâncias de controle, às quais devemos a descoberta da origem do erro, aqui também o reconhecem. Mas quem pode afirmar que a segunda instância julga da mesma maneira e a terceira também e assim por diante todas as demais?
- Pode ser - disse K. - Prefiro não me intrometer nessas considerações, além disso é a primeira vez que ouço falar dessas instâncias de controle e naturalmente ainda não sou capaz de entendê-las. Acredito apenas que aqui se devem distinguir duas coisas: primeiro, aquilo que acontece dentro da administração das instâncias e o que, por sua vez, pode ser concebido administrativamente, de uma maneira ou de outra; e segundo, minha pessoa real, eu, que estou fora da administração e a quem ameaça um prejuízo tão insensato por parte delas, que ainda não consigo acreditar na seriedade do perigo. Para o primeiro ponto provavelmente vale o que o senhor, prefeito, narra com um conhecimento de causa espantoso, extraordinário, mas agora eu gostaria de ouvir também uma palavra a meu respeito.
- Chego também a isso - disse o prefeito. - Mas o senhor não poderia entender se eu não antecipasse ainda alguma coisa. Já o fato de eu mencionar neste momento as instâncias de controle foi prematuro. Volto portanto às divergências com Sordini. Como dizia, a mínima vantagem sobre alguém, ele já venceu, pois aí se intensificam sua atenção, sua energia, sua presença de espírito, e para a pessoa atacada é uma visão terrível e para os inimigos dela uma visão estupenda. Só posso falar dele assim como estou fazendo porque em outros casos também experimentei isso. Aliás, até agora nunca conseguî vê-lo com meus próprios olhos, ele não pode vir aqui para baixo, está muito sobrecarregado de trabalho, sua sala, conforme me descreveram, tem todas as paredes cobertas por colunas de processos volumosos empilhados uns sobre os outros, são apenas aqueles nos quais Sordini está trabalhando no momento, e uma vez que das pilhas são constantemente retirados processos e juntados novos documentos, tudo na maior pressa, as pilhas desmoronam e é justamente esse estrondo que se repete sem cessar que se tornou característico do escritório de Sordini. Sim, Sordini é um grande trabalhador e dedica o mesmo cuidado tanto ao menor como ao maior dos casos.

(Franz Kafka. O Castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Tradução: Modesto Carone. pp. 102-104.)


domingo, 1 de julho de 2007

Glória

"Em toda obra de arte autêntica existe um lugar onde aquele que a penetra sente uma aragem como a brisa fresca de um amanhecer. Daí resulta que a arte, muitas vezes considerada refratária a qualquer relação com o progresso, pode servir a sua verdadeira definição. O progresso não se situa na continuidade do curso do tempo e sim em suas interferências, onde algo verdadeiramente novo se faz sentir pela primeira vez, com a sobriedade do amanhecer."
(BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. p. 516)
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Gloria in excelsis Deo;
Et in terra pax
hominibus bonae voluntatis.
Laudamus te.
Benedicimus te.
Adoramus te.
Glorificamus te.
Gratiam agimus tibi
propter magnam gloriam tuam.
Domine Deus, Rex coelestis,
Deus Pater omnipotens.
Domine Fili unigenite, Jesu Christe.
Domine Deus,
Agnus Dei,
Filius Patris.
Qui tollis peccata mundi,
miserere nobis..
Qui tollis peccata mundi,
suscipe deprecationem nostram.
Qui sedes ad dexteram Patris,
miserere nobis.
Quoniam tu solus Sanctus.
Tu solus Dominus.
Tu solus Altissimus, Jesu Christe.
Cum Sancto Spiritu in gloria Dei Patris.
Amen.


Abertos os céus para o resplandecer da glória! O vazio que tanta atração exerce é preenchido com uma luz ofuscante. Não nos deixa vê-lo, quem dirá apreendê-lo. Na distância que dele nos separa, vapores lúdicos embaçam nossas vistas: entretêm-nos.
Na beleza da representação de nossa incapacidade está, inadvertidamente, nosso estatuto mais original. Nas pinceladas de Tiziano ou nas de El Greco, o vazio resplandecendete da glória encontra sua visível expressão, sem no entanto deixar de altear-se para o além. Nesta fusão do pintar com o pintado fulgura, ainda que numa dimensão inapreensível, a escondida inoperosidade constitutiva dos que restam para cá das nuvens...