terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Verdade como errância - Giorgio Agamben

 


Giorgio Agamben

 

O último texto ao qual Michel Foucault teve tempo de dar a imprimatur se chama: La vie: l’expérience et la Science. Foi publicado na “Revue de Metaphysique et de Morale” de janeiro-março de 1985, mas havia sido enviado à revista em abril de 1984, poucos dias antes da morte do autor. Trata-se de um texto concebido por Foucault como uma homenagem máxima a seu mestre, Georges Canguilhem. A razão pela qual escolhi esse texto é que nele, curiosamente, Foucault – que havia começado se inspirando no novo vitalismo de Bichat, em sua definição da vida como “o conjunto de funções que resistem à morte” – acaba por ver na vida o âmbito próprio do erro. “A vida – escreve – produz com o homem um vivente que jamais se encontra completamente em seu lugar, que está votado a errar e a falhar”. É possível ver nesse diagnóstico sombrio um eco da crise que Foucault diz ter atravessado depois de La volonté de savoir. Acredito, todavia, que aí está em jogo algo completamente diferente de uma simples crise de pessimismo; algo como uma nova experiência que obriga Foucault a reformular de forma radical a relação do sujeito com a verdade, ou seja, um tema especificamente foucaultiano. Retirando o sujeito do terreno do cogito, esse texto o coloca no terreno da vida – mas de uma ‘vida’ compreendida como o lugar próprio do erro. “Não será talvez preciso reformular desde o início a teoria do sujeito – escreve Foucault –, uma dado que a consciência, em vez de se abrir à verdade do mundo, enraíza-se nos ‘erros’ da vida?”. O que pode ser uma consciência que não tem mais como correlato a verdade da abertura a um mundo, mas apenas a vida e sua errância? Como pensar um sujeito a partir não de uma relação com a verdade, mas de uma relação com o erro?

Ainda Badiou, um dos filósofos franceses mais interessantes da geração seguinte à de Foucault, pensa o sujeito a partir de um encontro contingente com a verdade e deixa de lado o vivente como “o animal da espécie humana”, o qual serve de suporte para esse encontro. Foucault, pelo contrário, parece, sinalizar para uma dimensão em que o decisivo não é mais a relação com a verdade, mas com o erro. Para Foucault, não se trata de um simples ajuste epistemológico, mas de um deslocamento da teoria da consciência para um terreno absolutamente inexplorado.

Gostaria de analisar outro texto – cronologicamente muito distante desse de Foucault – que provém da filosofia medieval e de um âmbito de problemas muito conhecido dos medievalistas, mas que me parece merecer uma atenção ulterior, uma vez que poderia nos dar, por assim dizer, um novo paradigma por meio do qual observar o problema da verdade. Trata-se das Questiones Disputatae de Esse Intellegibili, de Guglielmo di Alnwick, escrito mais ou menos no início do século XIV. Um tratado, como diz o título, sobre o Ser Inteligível, isto é, que se interroga sobre o estatuto ontológico do inteligível.

A primeira quaestio soa assim: “se o ser representado e conhecido de uma coisa for idêntico realiter à forma que o representa e ao ato de conhecimento” (Ultrum esse repraesentatum obiecti repraesentati sit idem realiter cum forma repraesentante et utrum esse cognitum obiecti cogniti sit idem realiter cum actu cognoscendi). Isto é: o ser inteligível, a intelegibilidade de uma coisa, ou melhor, a verdade ou a ilatência de uma coisa, é algo diverso ou não da coisa e do ato de conhecimento? Guglielmo começa se referindo à opinião dos modernos – como os chama – segundo os quais o ser representado de uma coisa é uma entitas distinta da forma representante, o ser conhecido de algo é uma entidade distinta do conhecimento. O ser inteligível se apresenta como uma entidade realmente distinta do conhecimento e da forma cognoscente. Então, Guglielmo prossegue articulando a diferença scotista, muito aguda, entre ser real (a coisa, enquanto existe por si) e ser intencional, ou inteligível, que compete à coisa enquanto representada, e é distinto do esse rationis, a coisa enquanto é conhecida com o intelecto. Segundo alguns, diz Guglielmo, a distinção intencional não é a mesma que uma distinção real. Isto é, uma coisa pode ser distinta intencionalmente, sem que isso implique uma distinção de realidade.

Na segunda questão, Guglielmo continua se perguntando se o ser inteligível, que convém ab aeterno à criatura, seja ou não idêntico realiter a Deus (Ultrum esse intellegibile conveniens creature ab aeterno sit idem realiter cum Deo). Ou seja, se a inteligibilidade de toda coisa, de toda criatura, seja idêntica ou não a Deus. Guglielmo responde positivamente: “Afirmo que o ser inteligível da criatura é ab aeterno idêntico realmente a Deus”.

Aqui, para mim, não importa tanto a posição particular de Guglielmo de Alnwick. Antes, me importa de fato apontar para aquilo que chamarei de a aporia do ser intencional ou da verdade. Uma aporia em sentido técnico – porque dá lugar a um indecidível. Uma aporia que Meister Eckhart exprime perfeitamente deste modo: “Se a forma ou a espécie por meio da qual uma coisa é vista ou conhecida fosse diferente da própria coisa, não poderíamos conhecê-la por meio dela. Mas se, pelo contrário, fosse totalmente indistinta da coisa, então seria inútil para o conhecimento”. Assim, se aquilo por meio de que conhecemos algo fosse idêntico à coisa ou totalmente distinto dela, em ambos os casos, diz Eckhart, não poderia nos servir para o conhecimento. Seria inútil ou impediria o conhecimento.    

A aporia está aqui: a verdade, a ilatência, ou a inteligibilidade de uma coisa, não pode ser nem outra coisa nem a coisa mesma. Isto é, o que está em questão é justamente o estatuto ontológico da verdade. A verdade da coisa não pode ser nem idêntica à coisa nem outra coisa.

Essa aporia atravessa toda a cultura medieval, entre os séculos XIII e XIV. Assim, por exemplo, nem mesmo a poesia de amor dos stilnovistas e de Dante pode ser compreendida sem acertar as contas com ela. Porque aqui o problema se coloca em relação ao estatuto da imagem, que, como “espécie sensível” e depois como “espécie inteligível”, constitui o verdadeiro objeto de amor. Também nesse caso a pergunta ressoa: a imago é uma coisa diferente do ser de que é imagem ou é idêntica a ele? Outro problema que fascina os medievais é o da “substância separada” – se é possível o conhecimento das substâncias separadas. As substâncias separadas são puras inteligências separadas da matéria – portanto, das puras inteligibilidades. Também aí, caso se responda que é possível conhecê-las, quer dizer que é possível conhecer uma pura verdade indiscernível da coisa.

Por que razão parei numa questão “aparentemente” técnica da filosofia medieval? Certamente não é apenas em razão da extraordinária perspicácia desses escolásticos tardios, de illi qui student in Scoto. Então, por quê? Pois me parece que o que aqui está em questão é, nada mais nada menos, a possibilidade de uma separação entre a verdade e a cognoscibilidade. No sentido de que a relação intencional não se dá entre um sujeito e um objeto, mas entre um ser e sua inteligibilidade, sua verdade. Aqui aparece a superioridade desses “intencionistas” medievais – como se costuma chamá-los – sobre os modernos. Nesse caso, a intencionalidade não é uma relação entre um sujeito cognoscente e um objeto conhecido, mas, por assim dizer, é uma tensão interna, uma intus tensio, do ser.

A verdade, isto é, a inteligibilidade, tem um estatuto ontológico e não cognitivo – como, por outro lado, nós, modernos, estamos habituados a pensar. Ou melhor: a relação cognitiva aí é quebrada por meio da própria inteligibilidade, da própria cognoscibilidade; uma vez que aquilo que não tem lugar na relação cognitiva entre sujeito e objeto é justamente essa cognoscibilidade, essa intencionalidade, o ser inteligível.

Acontece aí algo similar ao que Fiedler e Klee fazem quando jogam a visibilidade contra a visão. Klee diz que o objetivo do pintor é tornar visível – não ‘fazer ver’. A visibilidade é utilizada contra a ‘visão’, contra a representação tradicional da visão como relação entre um sujeito que vê e um objeto visto.

Também em outro campo, o das análises linguísticas mais recentes, tende-se cada vez mais a colocar em dúvida a noção tradicional segundo a qual uma palavra funcionaria como indicador de um sentido, de acordo com a relação significante/significado. O que, pelo contrário, se vê na palavra – retomando a noção estoica de lekton – é algo como uma pura dizibilidade. Também aqui se joga a dizibilidade contra o ‘dito’.

O que para mim era importante sublinhar – e que constitui uma das tarefas da filosofia – é que em todos esses casos a verdade é tolhida do âmbito cognitivo e restituída à ontologia. É natural que, enquanto formulo essa tarefa, acabo me dando conta de ter simplesmente repetido o que meus amigos franceses chamam de une banalité de base. De fato, não é essa a contribuição filosófica específica de Heidegger? Melhor dizendo, Heidegger não fez justamente isso – deslocar o conceito de verdade, concebida como Lichtung e Aletheia, da esfera cognitiva à do ser? Restituir a verdade à ontologia não era a intenção mais própria de Heidegger?

Entretanto, não foi observado que em Heidegger esse deslocamento tinha um codicilo – que se encontra expresso na conferência sobre “A essência da verdade”. O codicilo é que, se isso é verdade, então a verdade entra necessariamente numa errância, tem a ver, em sua constituição, com a esfera da não-verdade e do erro. Essa é justamente uma das teses fundamentais da conferência. Já no Crátilo um nexo entre verdade e errância pode ser encontrado. Platão aí inventa a etimologia alé-theia, errância divina, e vê nessa errância a possibilidade de um movimento, de um “transporte divino” do ser. Heidegger, por sua vez, a formula mais ou menos assim: a errância (Irre) não é algo em que o homem cai por acaso, ele desde sempre se move na errância, a qual, como Um-wahreit, não-verdade, pertence à própria essência da verdade e é inseparável da abertura do Dasein. Isso implica uma mudança decisiva da pergunta sobre a verdade, que vai da verdade como correição e adequação à verdade como cobertura e erro. Mas o que é uma verdade compreendida como errância? Somos capazes de pensar a verdade integralmente como uma “errância divina”? E ainda: o que é uma filosofia que não se orienta mais pela verdade como certeza e conhecimento, mas a partir de uma relação com o ser que agora é de errância?

Assim, reencontramos as perguntas de Foucault das quais partimos. Aquilo em que devemos pensar, a tarefa que essa conexão entre verdade e errância nos apresenta é, sobretudo, um estatuto não cognitivo da verdade. Trata-se de uma tarefa que, para nós, modernos, por certo não é simples. Como pensar, com efeito, um estatuto não cognitivo da verdade? Algo – para repetir a expressão de um filósofo por quem tenho muita estima – como uma ‘contemplação sem conhecimento’, um pensamento privado de características cognitivas. Estamos dispostos a nos arriscar num pensamento que tenha deposto as pretensões cognitivas que a ele com frequência atribuímos?

Mais do que responder a essas perguntas, limito-me a propor uma epígrafe para uma possível pesquisa futura. Uma epígrafe que gostaria de retirar de uma enigmática passagem da Sétima Carta, na qual Platão escreve: “É necessário aprender ao mesmo tempo o falso e o verdadeiro de todo o ser”. Cai to pseudos ama cai alethes tes holes ousias (344b, 1-2).    

 

 

A presente intervenção foi apresentada na Jornada dedicada à questão da verdade organizada por ocasião da inauguração da Seção de Veneza do Instituto Italiano para os Estudos Filosófico, em 1º de fevereiro de 1997.

 

Giorgio Agamben, Verità come erranza in.: Paradosso – rivista di Filosofia, n. 2-3, org. de Massimo Donà, Padova, Il Poligrafo 1998, pp. 13-17.

Tradução: Vinícius Nicastro Honesko

 

Imagem: Paul Klee, Morte e Fogo, 1940.