Franco "Bifo" Berardi
Ucrânia, agonia do Ocidente & cia:
o que acontece é uma geopolítica da psicose.
Aniquilar
Anéantir,
o último livro de
Houellebecq, é um volume de setencentas páginas, mas a metade seria o
suficiente. Não é o melhor de seus livros, mas a mais desesperada representação,
ao mesmo tempo resignada e raivosa, do declínio da raça dominante.
França profunda: uma família se reúne ao
redor do velho pai de 80 anos que sofreu um derrame. Como interminável do velho
patriarca que trabalhava para o serviço secreto. O filho Paul, que também
trabalha para o serviço secreto, mas também para o Ministério da Economia,
descobre ter um câncer terminal durante o coma interminável do pai. O outro
filho, Aurélien, irmão de Paul, se suicida, incapaz de enfrentar uma vida na
qual sempre se sentiu derrotado. Resta a filha, Cécile, católica integralista,
mulher de um cartorário fascistóide que perdeu o trabalho mas que encontrou
outro nos ambientes da direita lepenista.
A doença terminal é o tema desse romance
medíocre: a agonia da civilização ocidental.
Não é um belo espetáculo, porque a
mente branca não se resigna ao inelutável. A reação dos velhos brancos agonizantes
é trágica.
O cenário em que essa agonia se desenrola
é a França de hoje, culturalmente devastada por quarenta anos de agressividade
liberal, um país espectral no qual a luta política se desenvolve no quadro mefístico
de nacionalismo agressivo, racismo branco, rancor islâmico e integralismo
economicista.
Mas o cenário também é o mundo pós-global,
ameaçado pelo delírio senil da cultura dominadora mas em declínio: branca,
cristã, imperialista.
Guerra
/ Agonia / Suicídio
Na fronteira oriental da Europa dois
velhos brancos jogam uma partida na qual nenhum dos dois pode retroceder.
O velho branco americano voltou de sua
derrota mais humilhante e trágica. Pior do que Saigon, Kabul permanece no
imaginário global como a marca do caos mental da raça dominadora.
O velho branco russo sabe que seu
poder se funda numa promessa nacionalista: trata-se de vingar a honra violada
da Santa Mãe Rússia.
Quem dá um passo atrás, perde tudo.
Que Putin seja um nazista é algo óbvio
desde quando terminou a guerra na Chechênia com o extermínio. Mas era um
nazista muito bem quisto pelo presidente americano que, olhando-o nos olhos,
disse ter entendido que era sincero. Muito bem quisto também pelos bancos
ingleses, que estão cheios dos rublos rapinados pelos amigos de Putin depois do
desmantelamento das estruturas públicas herdadas da União Soviética. Os hierarcas
russos e os anglo-americanos eram amigos caríssimos quando se tratava de
destruir a civilização social, a herança do movimento operário e comunista.
Mas a amizade entre assassinos não
dura. De fato, para que serviria a OTAN se de fato a paz tivesse sido
instaurada? E como acabariam os imensos lucros das empresas que produzem armas
de destruição em massa?
A expansão da OTAN servia para renovar
uma hostilidade à qual o capitalismo não podia renunciar.
Não existe uma explicação racional
para a guerra ucraniana, porque ela é o momento culminante de uma crise psicótica
do cérebro branco. Que racionalidade tem a expansão da OTAN que fornece armas
aos nazistas poloneses, bálticos e ucranianos contra o nazismo russo? Por outro
lado, Biden obtém o resultado mais temido pelos estrategistas americanos: levou
Rússia e China a um abraço que há cinquenta anos Nixon havia conseguido romper.
Portanto, para nos orientarmos na
guerra iminente não necessitamos de geopolítica, mas de psicopatologia: talvez
necessitemos de uma geopolítica da psicose.
De fato, está em jogo o declínio político,
econômico, demográfico e, por fim, psíquico da civilização branca, que não pode
aceitar a perspectiva do exaurimento e prefere a destruição total, o suicídio,
em vez da lenta extinção do domínio branco.
Ocidente
/ Futuro / Declínio
A guerra ucraniana inaugura uma histérica
corrida aos armamentos, uma consolidação das fronteiras, um estado de violência
crescente: demonstrações de força que, na realidade, são a marca do caos senil
em que caiu o Ocidente.
Em 23 de fevereiro de 2022, quando as
tropas russas já tinham entrado em Donbass, Trump, ex-presidente e candidato à
próxima presidência, julga ser Putin um gênio do peacekeeping. Sugere que os Estados Unidos deveriam mandar um exército
similar à fronteira com o México.
Tentemos compreender o que quer dizer
o obsceno Trump. Qual o núcleo de verdade de seu delírio? O que está em questão
é o próprio conceito de Ocidente.
Mas quem é o Ocidente?
Se para a palavra “Ocidente” damos uma
definição geográfica, então a Rússia dele não faz parte. Mas se pensamos o núcleo
antropológico e histórico dessa palavra, então a Rússia é mais Ocidente do que qualquer
outro ocidente.
O Ocidente é a terra do declínio. Mas é
também a terra da obsessão pelo futuro. E as duas coisas são uma só, uma vez
que para os organismos sujeitos à segunda lei da termodinâmica, como são os corpos
individuais e sociais, futuro quer dizer declínio.
Assim, estamos unidos no futurismo e
no declínio, isto é, no delírio de onipotência e na desesperada impotência, nós,
ocidentais do Oeste, e os ocidentais da desmesurada pátria russa.
Trump tem o mérito de dizer isso sem tantos
rodeios: nossos inimigos não são os russos, mas os povos do sul do mundo, que
exploramos por séculos e agora pretendem dividir as riquezas do planeta conosco,
e querem imigrar para nossas terras. Nosso inimigo é a China, que humilhamos, a
África, que depredamos. Não a branquíssima Rússia que faz parte do Grande
Ocidente.
A lógica trompista se funda na supremacia
da raça branca da qual a Rússia é o posto mais avançado e extremo.
A lógica de Biden, pelo contrário, é a
defesa do mundo livre, que, claro, seria o seu, nascido de um genocídio, da
deportação de milhões de escravos e fundado no ineliminável racismo sistêmico.
Biden rompe o Grande Ocidente em prol de um Pequeno Ocidente sem Rússia, destinado
a se despedaçar e a envolver em seu suicídio todo o planeta.
Tentemos definir o Ocidente como
esfera de uma raça dominadora obcecada pelo futuro. O tempo tende a um impulso
expansivo: o crescimento econômico, a acumulação, o capitalismo. Justamente
essa obsessão pelo futuro alimenta a máquina do domínio: investimento de
presente concreto (de prazer, de relaxamento muscular) em abstrato valor
futuro.
Talvez poderíamos dizer, reformulando
um pouco os fundamentos da análise marxiana do valor, que o valor de troca é
justamente essa acumulação do presente (o concreto) em formas abstratas (como o
dinheiro) que podem ser trocadas amanhã.
Essa fixação pelo futuro por nada é
uma modalidade cognitiva natural do humano: grande parte das culturas humanas são
fundadas numa percepção cíclica do tempo ou na dilatação insuperável do presente.
O Futurismo é a passagem para a plena
autoconsciência, também estética, das culturas da expansão. Mas os futurismos são
diversos e em alguma medida divergentes.
A obsessão pelo futuro tem implicações
diversas na esfera teológico-utópica, própria da cultura russa, e na esfera técnico-econômica,
própria da cultura euroamericana.
O Cosmismo de Fedorov e o Futurismo de
Maiakovski têm um sopro escatológico que falta tanto no fanatismo tecnocrático
marinettiano quanto em seus epígonos americanos como Elon Musk. Talvez seja por
isso que cabe à Rússia terminar a história do Ocidente, e aqui estamos nós.
O
nazismo está por toda parte
Depois do limiar pandêmico, o novo
panorama é a guerra que opõe o nazismo ao nazismo. Gunther Anders havia pressentido,
em seus escritos dos anos 1960, que a carga niilista do nazismo de fato não
havia sido exaurida com a derrota de Hitler, e que voltaria à cena do mundo em
razão do agigantamento da potência técnica que provoca um sentimento de humilhação
da vontade humana, reduzida à impotência.
Agora vemos que o nazismo reemerge
como forma psicopolítica do corpo demente da raça branca, que reage
raivosamente a seu irrefreável declínio. O caos viral criou as condições de
formação de uma infraestrutura biopolítica global, mas também acentuou, até o pânico,
a percepção de ingovernabilidade da proliferação caótica da matéria que perde a
ordem, que se desintegra e morre.
O Ocidente obliterou a morte porque não
é compatível com a obsessão pelo futuro. Obliterou a senescência porque não é
compatível com a expansão. Mas agora o envelhecimento (demográfico, cultural e
também econômico) das culturas dominadoras do norte do mundo se apresenta como
um espectro que a cultura branca não pode nem mesmo pensar, imagina então se
poderia aceitar.
Eis, portanto, o cérebro branco (tanto
o de Biden e quanto o de Putin) entrando numa crise furiosa de demência senil.
O mais desenfreado de todos, Donald Trump, diz uma verdade que ninguém quer
escutar: Putin é nosso melhor amigo. Certamente é um assassino racista, mas nós
não somos menos.
Biden representa a raiva impotente que
têm os velhos quando se dão conta do declínio das forças físicas, da energia psíquica
e da eficácia mental. Agora, o exaurimento está em fase avançada, a extinção é
a única perspectiva tranquilizadora.
Poderá a humanidade salvar-se da violência
exterminadora do cérebro demente da civilização ocidental – russa, europeia e
americana – em agonia?
De qualquer forma que evolua a invasão
da Ucrânia – que se torne uma ocupação estável do território (improvável) ou que
se conclua com uma retirada das tropas russas depois de ter destruído o aparato
militar que os euroamericanos forneceram a Kiev (provável) –, o conflito não
pode ser resolvido com a derrota de um ou de outro dos dois velhos patriarcas.
Nenhum deles pode concordar em desistir antes de ter vencido. Por isso, essa
invasão parece abrir uma fase de guerra tendencialmente mundial (e
tendencialmente nuclear).
A questão que por ora se mostra sem
resposta é relativa ao mundo não ocidental, que por alguns séculos sofreu a
arrogância, a violência e a exploração de europeus, russos e, por fim,
americanos.
Na guerra suicida que o Ocidente desatou
contra o Outro Ocidente as primeiras vítimas são aqueles que sofreram as
consequências do delírio dos dois ocidentes, aqueles que não queriam nenhuma
guerra, mas devem sofrer seus efeitos.
A guerra final contra a humanidade
começou.
A única coisa que podemos fazer é
desertar, transformar coletivamente o medo em pensamento, e nos resignar com o
inevitável, porque só assim, nos contratempos, pode acontecer o imprevisível: a
paz, o prazer, a vida.
Franco "Bifo" Berardi, Guerra & demenza (senile), trad.: Vinícius N. Honesko. Originalmente publicado em: https://not.neroeditions.com/guerra-demenza-senile/