quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Há muita vanguarda para pouca retaguarda


Pequena terapia para lidar com o transtorno de atenção (diagnosticado ou não): ruminar o já visto, tentar encontrar o que a dispersão obscureceu ou aquilo que, envolvido nos mais diversos recalques, simplesmente não poderia ser encontrado naquele momento. A lição antonioniana de "Blow Up". Revisar, revisar, revisar. Livros e livros de borrões. Não temer a redundância, a tarefa de casa, o cozinhamento de pedras, o garimpo e sua alquimia possível.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Máxima de (auto)ajuda

Sim, a exortação de Cândido, o ingênuo de Voltaire: é preciso cuidar de nosso próprio jardim. Repitamo-la, com um sutil complemento exigido pela realitá effettuale delle cose de nosso tempo: para nele cavar trincheiras e rotas de escape.

domingo, 8 de novembro de 2009

A vida não é argumento

Armamos para nós um mundo, em que podemos viver - ao admitirmos corpos, linhas, superfícies, causas e efeitos, movimento e repouso, forma e conteúdo: sem estes artigos de fé ninguém toleraria agora viver! Mas com isso ainda não são nada de demonstrado. A vida não é argumento; entre as condições da vida poderia estar o erro.
F. Nietzsche. Gaia Ciência. parag. 121.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Visões da carne infinita...

Marta Hoepffner. Nudo, movimento, solarizzazione, 1940.
Fico assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação humana. Não sei se terei uma outra para substituir a perdida. Sei que precisarei tomar cuidado para não usar sub-repticiamente uma nova terceira perna que em mim renasce fácil como capim, e a essa perna protetora chamar de "uma verdade".
Mas é que também não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar uma forma, nada me existe. E - e se a realidade é mesmo que nada existiu?! quem sabe nada me aconteceu? Só posso compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo - que sei do resto? o resto não existiu. Quem sabe nada existiu! Quem sabe me aconteceu apenas uma lenta e grande dissolução? E que minha luta contra essa desintegração está sendo esta: a de tentar agora dar-lhe uma forma? Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à substância amorfa - a visão de uma carne infinita é a visão dos loucos, mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas fomes - então ela não será mais a perdição e a loucura: será de novo a vida humanizada.
A vida humanizada. Eu havia humanizado demais a vida.
Mas como faço agora? Devo ficar com a visão toda, mesmo que isso signifique ter uma verdade incompreensível? ou dou uma forma ao nada, e este será o meu modo de integrar em mim a minha própria desintegração? Mas estou tão pouco preparada para entender. Antes, sempre que eu havia tentado, meus limites me davam uma sensação física de incômodo, em mim qualquer começo de pensamento esbarra logo com a testa. Cedo fui obrigada a reconhecer, sem lamentar, os esbarros de minha pouca inteligência, e eu desdizia caminho. Sabia que estava fadada a pensar pouco, raciocinar me restringia dentro de minha pele. Como pois inaugurar agora em mim o pensamento? e talvez só o pensamento me salvasse, tenho medo da paixão.
Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada, já que fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita e cortá-la em pedaços assimiláveis pelo tamanho de minha boca e pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar indelimitada - então que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma.
Clarice Lispector. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. pp. 14-15.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Sobre estar preso


Jogado num canto vazio de uma dessas salas da existência passo as horas. Sinto o frio do piso. Um frio invasivo, pegajoso, soturno como o rato apodrecido logo ali. Rato. Eu que o comi? Morreu e apodreceu sem que eu tivesse participado desse enredo? História suja, piso frio.

A hora do medo. Medo de que? Vida e morte... mais um dos pares dialéticos. A fedentida me enoja e horroriza. Quero distanciar-me dessa sala, quero a certeza de que o frio é irrisório e risível. De nada adianta. As pegadas que deixei na entrada da sala não podem ser apagadas. Cá estou, dentro. A luz branca está acesa; os candelabros são inúteis e, por isso, estão vazios; as velas que acalentam não podem ali estar.

O piso frio me invade. Sou o piso. Mania de sentir-se vivo, mania de passar as horas, mania de olhar para as paredes dessa sala e tentar ver, tentar sentir, tentar não ser o piso. Branco. Palavra branca como a parafina das velas que deveriam ter sido queimadas. Já não estão mais lá. Vazios estão os candelabros. Clamores pelo arredio são sons inuteis que bajulam e fazem rir. Rir pela dor da prisão... Fogo da vida, fogo da morte... consomem, consomem-se. Dialética da prisão. E ali está o rato...

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

De aparência em aparência...

D.E.: Terminar uma série de livros como as Mitológicas com essa constatação desiludida de que, dos empreendimentos do homem, "nada" resta, é quase proclamar um credo filosófico. Já pretenderam enxergar nesse "nada" a expressão de sua filosofia profunda.

L.S.: Nunca disse isso. Disse que o homem devia viver, trabalhar, pensar, manter a coragem, embora sabendo que não estará sempre presente na Terra, que esta Terra um dia deixará de existir, e que, nada restará de todas as obras do homem. Não é exatamente a mesma coisa.
Minha "filosofia profunda", como você diz, tropeça nessa contradição e curva-se diante dela. Tudo o que os físicos e os biólogos ensinam me apaixona; nada estimula mais minha reflexão. Ao mesmo tempo, parece-me que cada problema resolvido, ou que acreditamos resolvido, faz surgir novos problemas, e assim por diante, indefinidamente; de modo que nos compenetramos cada vez mais da certeza de que nossa capacidade de pensar é e permanecerá sempre indequada ao real, de que a natureza profunda do real escapa a qualqer esforço de representação. Foi Kant quem primeiro nos ensinou isso. Mas Kant, que se moldava a um poder de conhecer irremediavelmente enfermo, devido a algumas antinomias, esperava encontrar na vida moral um fundamento absoluto. Hiperkantiano, se me permite dizer, eu englobo a vida moral na problemática da razão pura: ela também tem suas antinomias, impossíves de superar. E mais ainda; porque se o conhecimento científico abre-nos para o imensamente grande e o imensamente pequeno de perspectivas bem mais vertiginosas do que Pascal imaginava, ele nos demonstra nossa insignificância. Quer desapareça a humanidade, quer desapareça a Terra, nada mudará na marcha do cosmos. Donde um último paradoxo: não temos a mínima certeza de que esse conhecimento que nos revela nossa insignificância tenha alguma validade. Sabemos que não somos nada ou que não somos grande coisa e, sabendo-o, nem sequer sabemos se este saber é um saber. Pensar o universo como imensurável pelo pensamento, obriga-nos a pôr em dúvida o próprio pensamento. Não saímos disso.
Então, como fica o ceticismo radical que você parecia imputar-me? Não existe. Porque mesmo que nos dediquemos a andar de aparência em aparência, não é indiferente saber que é sensato parar em algum lugar, e onde parar. Entre as aparências superficiais e a busca estafante de um sentido por trás do sentido que nunca é o certo, uma experiência plurimilenar parece mostrar que existe um nível intermediário em que os homens sentem prazer em situar-se, porque lá encontram mais conforto moral e intelectual, lá sentem-se melhor ou menos mal que em outra parte, sem recorrer a outras considerações se não as hedonistas: esse é o nível do conhecimento científico, da atividade intelectual e da criação artística. Pois bem, então nos apeguemos a isso e, resolutamente, "nos comportemos como se", a fim de acreditar nisso para todos os fins práticos, não sem, de tempos em tempos, acenarmos com um signo de inteligência para um memento mori que engloba nosso universo e, com ele, nós próprios.
Claude Lévi-Strauss & Didier Eribon. De Perto e de Longe. São Paulo: Cosac Naify, 2005. pp. 228-230.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Bloom


Cuando lo veo caminando por la calle, siempre me parece que está gozando de un descanso, de un descanso total. Nadie lo espera, y él no desea llegar a ningún sitio ni encontrarse con nadie. No. Pasea para estar consigo mismo. Tampoco lo hace por razones de salud. Camina. Camina porque nada lo detiene. Me imagino que si en su camino encontrase un muro alto y extendido no se alteraría en lo más mínimo. Tomaría otra dirección, y si esta tampoco fuese practicable, la volvería a cambiar y seguiría caminando, las manos apenas sacudidas por el movimiento natural de todo su cuerpo y las piernas trabajando sin esfuerzo alguno para alargar o apresurar el paso. No. Su paso es verdaderamente suyo y de nadie más, y no puede ser ni alargado ni acelerado. En reposo, todo su cuerpo es el de un deportista: cuando se mueve, el de un niño disminuido por el gran amor de sus padres. Yo sé que la vida no ha sido una madre cariñosa con él. De haber sido peor, igualmente el señor James Joyce hubiera conservado el aspecto de una persona que considera a las cosas como puntos que rompen la luz para divertirlo. Lleva gafas, y por cierto que las usa desde la mañana temprano cuando se levanta, hasta bien entrada la noche. Tal vez vea menos de lo que se pueda suponer por su aspecto, pero da la sensación de una persona que se mueve para ver. Seguramente no es capaz de combatir y tampoco lo desea. Va por la vida esperando no toparse con mala gente. De todo corazón le deseo que esto nunca le suceda.



Italo Svevo. James Joyce. Barcelona: Argonautas, 1990. p. 62
Imagem: Paris 1929. James Stephens, James Joyce, tenor John Sullivan

quarta-feira, 29 de julho de 2009


o embarque, no cais, e desde então
o mar é uma extensa e incessante
saudade salgada



Imagem: Mark Power. FRANCE. Port-en-Bessin-Huppain, 1995. Magnun Photos.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Dois pensamentos de Monsieur Teste

Deve-se entrar em si mesmo armado até os dentes.
Liberdade - Generalidade. Tudo o que faço ou penso não é mais do que Espécime de meu possível. O homem é mais geral que sua vida e seus atos. Ele é como que previsto para mais eventualidades do que pode conhecer. Monsieur Teste diz: Meu impossível nunca me abandona.

Paul Valéry. Monsieur Teste. Trad. Cristina Muraschco. São Paulo: Ática, 1997. pp. 117 e 126.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Assistentes

A desrealidade e ausência de mundo (que sempre diz respeito à existência de um mundo comum entre as pessoas e não apenas no sentido real, de res, ou coisal do termo) na quase totalidade dos espaços urbanos das grandes metrópoles mundiais têm seu paroxismo nos dispositivos de entretenimento e de gestão do “tempo vago” nulificado (shopping centers, salas de espetáculo, estádios de futebol e eventos massivos correlatos). Em meio à deriva automática de inúmeros zumbis absorvidos pelo consumo fácil e pelo gozo parcial sempre protraído do fetiche, os únicos indivíduos ainda em vigília são aqueles que, nestes mesmos espaços, atuam não como consumidores mas trabalhadores triplo K (termo de umas das cidade mais fantasmagóricas do mundo, Tóquio, para designar o labor kitsui, kitanai, kike, penoso, sujo e perigoso ), tendo que, não raro, manejar resíduos orgânicos como fezes, urina e vômitos, restos de comida, descarregar e carregar os mais variados objetos e ainda atender com presteza as expectativas de quem quer “se divertir”. O labor por si, vale lembrar Hannah Arendt, dá-se no isolamento e é despido de mundo. Tal condição de alienação mundana se agravaria, em tese, nestes casos. O intrigante se evidencia no fato de que tais pessoas, em sua obscuridade, são coagidas a manter uma distância abissal mas fisicamente próxima do próprio dispositivo. São alienados de mundo (como todos somos nos dias que correm) mas não compartilham da prótese específica (como no shopping), podendo analisá-la em toda sua crueza e esterilidade. Diferentemente do excluído que contempla o circo externamente e pode até pretender ser incluído (mesmo que tenha de enfrentar mecanismos de segurança e separação), tais ajudantes têm, em potência, a chave para expor a grande ficção que comanda a maquinaria e demonstrar a impossibilidade de qualquer tipo de paraíso no inferno catastroficamente asséptico do capital.
foto-performance Liu Bolin

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Gestos e infância

“Nunca podemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade.”[1] Assim começa Walter Benjamin o texto O jogo das letras, que aparece no seu Infância em Berlim por volta de 1900. O momento do qual Benjamin sente saudades – e diz, é o que lhe causa mais saudades – é aquele de sua alfabetização, de quando brincava com os então muito comuns jogos de letras. Aprender a compor palavras, operação factual dos jogos de letras, é para a criança um momento imaginativo por excelência. Isto é, o jogo das letras se dá como uma espécie de tábua de montagem: uma série de plaquetinhas, na qual vem individualmente gravadas cada uma das letras do alfabeto, é disposta de modo que a criança possa, montando-as em sequências, aprender a ler. O gesto infantil diante das letras (todo o alfabeto que compõe o jogo de letras e que em si, tal qual apresentado à criança, não tem sentido) é o de organizá-las dando-lhes um sentido, isto é, formando palavras. É justamente disso que Benjamin tem saudade: o gesto de apreender a ler. Na saudade despertada pelo jogo das letras Benjamin pretende reencontrar sua infância na integralidade. Porém, isso nunca se dará: “... posso sonhar como no passado aprendi a andar. Mas isso de nada adianta. Hoje sei andar; porém, nunca mais poderei tornar a aprendê-lo.”[2]
A repetição, o retorno daquela imagem da criança aprendiz – o seu retorno em sonho – não é alcançável na sua total integridade por Benjamin. A experiência do aprendizado, ainda que irrepetível na sua configuração imagético-memorial (como artefato – imago – imobilizado por uma intencionalidade rememorativa) deixa um rastro que, efetivamente, não compete à memória voluntária, mas permanece como um gesto. O aprendizado, a iniciação da criança no mundo da escritura – com jogos de letras, cartas etc. – não é, nesse sentido, propriamente uma operação intelectual, mas um gesto.
Numa outra passagem, em Imagens do Pensamento, Benjamin conta um sonho. Encontrava-se ele diante de Notre-Dame. Porém, não havia nada de Notre-Dame ali à sua frente, senão uma grande construção de tijolos. “Mas eu permanecia lá, subjugado, justamente defronte de Notre-Dame. E o que me subjugava era a saudade. Saudade justamente de Paris na qual eu me encontrava aqui no sonho.”[3] Benjamin fala aqui de uma saudade que não impele à distância, à rememoração da imagem que faz falta. “Era a saudade ditosa que já atravessou o limiar da imagem e da posse e só conhece ainda a força do nome, do qual a coisa amada vive, se transforma, envelhece, rejuvenesce e, sem imagem, é o refúgio de todas as imagens.”[4] A saudade de algo que irremediavelmente não volta como tal é o ponto de passagem da imobilização (que não passa de um sonho) à mobilidade da imagem; é a transposição da imagem à pátria do gesto.[5]
Assim, podemos reler o gesto, tal qual sugere Agamben (que, a partir de Varrão, procura dar uma compreensão do gesto como um terceiro gênero de ação, ao lado do fazer e do agir (práxis)), como pura medialidade cuja destinação é a abertura de uma morada habitual (um éthos) para o homem:

O que caracteriza o gesto é que, nele, não se produz, nem se age, mas se assume e suporta. Isto é, o gesto abre a esfera do ethos como esfera mais própria do homem. (...) se o fazer é um meio em vista de um fim e a práxis é um fim sem meios, o gesto rompe a falsa alternativa entre fins e meios que paralisa a moral e apresenta meios que, como tais, se subtraem ao âmbito da medialidade, sem por isso tornarem-se fins. (...)O gesto é a exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio como tal. Este faz aparecer o ser-num-meio do homem e, deste modo, abre para ele a dimensão ética.[6]

A ingenuidade infantil diante do jogo de letras, que à criança se apresenta como um arquivo legado em herança, seu gesto de montar palavras, traz em si um efeito crítico e político: expõe, sem palavras, a palavra humana. Não se trata da compreensão causal do aprendizado infantil (o jogo de letras como meio para a alfabetização – um fazer –, ou ainda como atividade lúdica – uma práxis), mas de tentar ver na montagem das palavras a abertura de uma sempre nova possibilidade.
Essa correspondência encontrada pela criança entre as letras na formação das palavras, a ligação entre as letras (que, é preciso lembrar, é sempre nebulosa para o infante), esconde, mais do que uma simples atividade de pensamento, uma atividade imaginativa. Ao discorrer sobre quatro fotografias feitas clandestinamente por internos de Auschwitz em agosto de 1944, em Images Malgré Tout, Georges Didi-Huberman, para rebater críticas a ele feitas por Gérard Wajcman, lança mão de uma compreensão da imaginação (cuja origem remonta a Baudelaire e que, poderíamos complementar, é fruto do averroísmo) para justamente defender a possibilidade de leitura daquelas fotos (possibilidade atacada por Wajcman).

O valor do conhecimento não teria sido intrínseco a uma só imagem, não mais que a imaginação não consiste em regredir passivamente numa única imagem. Trata-se, ao contrário, de colocar os múltipos em movimento, de nada isolar, de fazer surgir os hiatos e as analogias, as indeterminações e as sobredeterminações na obra.[7]

A montagem das imagens, para a qual Didi-Huberman aqui chama a atenção, é, portanto, um gesto que libera as imagens de sua prisão nos arquivos mnemônicos e lhes dá um sentido histórico. É por meio de uma operação crítica (é tarefa do crítico) que uma construção de sentidos da e para uma leitura da história pode, desse modo, aparecer. Assim, imaginar, tanto para a criança quanto para o crítico, pode ser a porta de acesso ao gesto e à liberação da imagem de sua imobilidade memorial. [8]

A imaginação não é o abandono às miragens de um único reflexo, como frequentemente se crê, mas a construção e montagem de formas plurais colocadas em correspondências: eis porque, longe de ser um privilégio do artista, ou uma pura legitimação subjetivista, ela faz parte integrante do conhecimento no seu movimento mais fecundo, ainda que – já que – mais arriscado.[9]

A arriscada operação perpetrada pela imaginação leva ao extremo o desencanto das imagens. Não é possível falar em retrato imóvel, cujas características, uma vez definidas, seriam a causa do presente a partir do qual tais imagens são observadas (ou rememoradas). As imagens, tocadas pelo gesto crítico (ou infantil), não se cristalizam numa imago (isto é, um interdito passado intocável), mas enchem-se de movimento: são acessíveis apenas no presente. Um jogo de tempos entra em questão, jogo este que articula pendularmente a imagem e sua leitura. Como alerta Didi-Huberman ao analisar os procedimentos de montagem a partir de imagens de arquivos e de “imagens ficcionais” de Godard e de Lanzmann, respectivamente nos filmes Histoire(s) du cinéma e Shoah:

É suficiente não ser ingênuo nem com os arquivos, nem com a montagem que a partir deles se produz: os primeiros de forma alguma dão a verdade “totalmente crua” do passado e somente existem para se construção sobre o conjunto de questões pensadas que nós devemos lhes colocar; a segunda dá precisamente forma a esse conjunto de questões, daí sua importância – estética e epistemológica – crucial.[10]
A idéia de Didi-Huberman é justamente a de que, a partir do gesto crítico (colocar questões sobre as imagens passadas, os arquivos), é possível constatar a montagem da história, sua não totalidade, seu vazio constitutivo; ou seja, não há verdade absoluta na imagem do arquivo (essa é apenas imago, máscara mortuária), tampouco se encontrará verdade alguma pela montagem (que dá uma forma possível ao conjunto de arquivos). Essa dupla operação elíptica, a não-verdade absoluta da imagem e a não-verdade interveniente do crítico, potencializa aquele resquício (que Warburg denominaria Nachleben – sobrevivência) de energia que subjaz como o gesto a ser liberado em toda imagem. Esse desembaraçar da imagem em gesto suspende, portanto, a formação de uma imagem decidida e passa a expor o processo por meio do qual a própria imagem se forma. O gesto expõe a imagem como um processo de processo, isto é, como parte do fluxo do devir histórico; ou ainda, as imagens carregam-se de tempo.

[1] BENJAMIN, Walter. Infância em Berlim por volta de 1900, In: Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1995. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. pp. 104-105.
[2] Idem.
[3] BENJAMIN, Walter. Imagens do Pensamento. In.: Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1995. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. p. 209.
[4] Idem.
[5] AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o Gesto. In: Artefilosofia. nº4, jan. 2008. Ouro Preto: Tessitura, 2008. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. p.12. ”De fato, toda imagem é animada por uma polaridade antinômica: de um lado, ela é a reificação e a anulação de um gesto (é a imago como máscara de cera do morto ou como símbolo), do outro, ela conserva-lhe intacta a dynamis (como nos instantes de Muybridge ou em qualquer fotografia esportiva). A primeira corresponde à lembrança de que se apodera a memória voluntária, a segunda à imagem que lampeja na epifania da memória involuntária. E, enquanto a primeira vive num mágico isolamento, a segunda envia sempre para além de si mesma, para um todo do qual faz parte. Mesmo a Monalisa, mesmo Las Meninas podem ser vistas não como formas imóveis e eternas, mas como fragmentos de um gesto ou de fotogramas de um filme perdido, somente no qual readquiririam o seu verdadeiro sentido. Pois em toda imagem está sempre em ação uma espécie de ligatio, um poder paralisante que é preciso desencantar, e é como se de toda história da arte se elevasse um mudo chamado para a liberação da imagem no gesto.”
[6] Idem. pp. 12-13.
[7] DIDI-HUBERMAN, Georges. Images Malgré Tout. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. p. 151. “La valeur de connaissance ne saurait être intrinsèque à une seule image, pas plus que l´imagination ne consiste à s´involuer passivement dans une seule image. Il s´agit, au contraire, de mettre le multiple en mouvement, de ne rien isoler, de faire surgir les hiatus et les analogies, les indéterminations et les surdéterminations à l´oeuvre.”
[8] Cf. AGAMBEN, Giorgio. Ninfe. Torino: Bollati Boringhieri, 2007. p. 56. “La storia dell´umanità è sempre storia di fantasmi e di immagini, perché è nell´immaginazione che ha luogo la frattura fra l´individuale e l´impersonale, il molteplice e l´unico, il sensibile e l´intellegibile e, insieme, il compito della sua dialettica ricomposizione.”
[9] DIDI-HUBERMAN, Georges. Images Malgré Tout... p. 151. “L´imagination n´est pas abandon aux mirages d´un seul reflet, comme on le croit trop souvent, mais construction et montage de formes plurielles mises en correspondances: voilà pourquoi, loin d´être un privilège d´artiste ou une pure légitimation subjectiviste, elle fait partie integrante de la connaissance en son mouvement le plus fécond, quoique – parce que – le plus risqué.”
[10] Idem. p. 166. “Il suffit de n´être naïf ni avec les archives ni avec le montage qu´on en produit: les premières ne donnent en rien la vérité ‘tute crue’ du passe et n´existent qu´à se construire sur l´ensemble des questions réfléchies que nous devons leur poser; le second donne précisément forme à cet ensemble de questions, d´où son importance – esthétique et épistémologique – cruciale.”

segunda-feira, 13 de julho de 2009

O caráter destrutivo

Goya, 1810.


Em 2007 começamos a flanar; assim, cada qual em seu périplo, territorialmente distantes, desterrados na estraneidade de histórias ex-cêntricas e simultaneamente comuns. Pela primeira vez, ao menos na trajetória desta pequena janela virtual, uma postagem conjunta. Um fragmento de des-esperança:

"Ao fazer uma retrospectiva de sua vida, alguém poderia vir a reconhecer que quase todos os vínculos mais profundos que nela padeceu partiram de pessoas sobre cujo caráter destrutivo havia unanimidade de opnião. Um dia, talvez casualmente, ele viria de encontro a esse fato, e quanto mais violento for o choque que assim lhe for desferido, tanto maiores serão suas chances de ter a representação do caráter destrutivo.
O caráter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; só uma atividade: despejar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte que todo ódio.
O caráter destrutivo é jovial e alegre. Pois destruir remoça, já que remove os vertígios de nossa própria idade; traz alegria, já que, para o destruidor, toda remoção significa uma perfeita subtração ou mesmo uma radiciação de seu próprio estado. O que, com maior razão, nos conduz a essa imagem apolínea do destruidor é o reconhecimento de como o mundo se simplifica enormemente quando posto à prova segundo mereça ser destruído ou não. Este é um grande vínculo que enlaça harmonicamente tudo o que existe. Esta é uma visão que proporciona ao caráter destrutivo um espetáculo da mais profunda harmonia.
O caráter destrutivo está sempre trabalhando de ânimo novo. É a natureza que lhe prescreve o rítmo, ao menos indiretamente; pois ele deve se antecipar a ela, senão é ela mesma que vai se encarregar da destruição.
O caráter destrutivo não idealiza imagens. Tem pouca necessidade delas, e esta seria a mais insignificante: saber o que vai substituir a coisa destruída. Para começar, no mínimo por um instante: o espaço vazio, o lugar onde se achava o objeto, onde vivia a vítima. Com certeza haverá alguém que precise dele sem ocupá-lo.
O caráter destrutivo faz seu trabalho, evitando apenas o criativo. Assim como o criador busca para si a solidão, o destruidor deve estar permanentemente rodeado de pessoas, de testemunhas de sua eficiência.
O caráter destrutivo é um sinal. Como um símbolo trigonométrico está exposto ao vento, por todos os lados, ele está exposto ao palavrório, por todos os lados. Protegê-lo contra isso não faz sentido.
O caráter destrutivo não está nem um pouco interessado em ser compreendido. Considera esforços nesse sentido superficiais. Ser mal compreendido não o afeta. Ao contrário, desafia a má compreensão tal como os oráculos, essas destrutivas instituições estatais, a desafiavam. O fenômeno mais típico da pequena burguesia, a bisbilhotice, se realiza apenas porque as pessoas não querem ser mal compreendidas. O caráter destrutivo deixa que o interpretem mal. Ele não fomenta o mexerico.
O caráter destrutivo é o adversário do homem-estojo. O homem-estojo busca sua comodidade, e sua caixa é a síntese desta. O interior da caixa é o rasto revestido de veludo que ele imprimiu no mundo. O caráter destrutivo elimina até mesmo os vestígios da destruição.
O caráter destrutivo está no front dos tradicionalistas. Alguns transmitem as coisas, tornando-as intocáveis e conservando-as; outros transmitem as situações, tornando-as manejáveis e liquidando-as. Estes são os chamados destrutivos.
O caráter destrutivo tem a consciência do homem histórico, cujo sentimento básico é uma desconfiança insuperável na marcha das coisas e a disposição com que, a todo momento, toma conhecimento de que tudo pode andar mal. Por isso, o caráter destrutivo é a confiança em pessoa.
O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas eis precisamente porque vê caminhos por toda parte. Onde outros esbarram em muros ou montanhas, também aí ele vê um caminho. Já que o vê por toda parte, tem de desobstrui-lo também por toda parte. Nem sempre com brutalidade, às vezes com refinamento. Já que vê caminhos por toda parte, está sempre na encruzilhada. Nenhum momento é capaz de saber o que o próximo traz. O que existe ele converte em ruínas, não por causa das ruínas, mas por causa do caminho que passa através delas.
O caráter destrutivo não vive do sentimento de que a vida vale ser vivida, mas de que o suicídio não vale a pena."

BENJAMIN, Walter. Imagens do Pensamento. In.: Obras escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1995. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa. pp. 235-237.

sábado, 11 de julho de 2009

O Caos

Goya, Loco furioso, 1824-28.


Pasolini no primeiro texto dedicado a O Caos, seção do semanário Tempo iniciada pelo autor em agosto de 1968:

"Otra cosa que querría decir en calidad de prólogo a esta serie de colaboraciones es lo que sigue: a menudo hablaré con violencia contra la burguesía: más aún, será éste el tema axial de mi palabra semanal. Y sé muy bien que el lector quedará "desconcertado" (¿se dice así?) ante esta virulencia; pues bien: todo quedará claro cuando especifique que por burguesía no entiendo tanto una clase social cuanto una verdadera y precisa enfermedad. Una enfermedad altamente contagiosa: tanto es así que ha contagiado a casi todos los que la combaten: desde los obreros del norte hasta los trabajadores que han emigrado del sur, los burgueses de la oposicíon y los "solitarios" (como es mi caso). El burgués - digámoslo en son de broma - es un vampiro que no descansa mientras no muerde el cuello de su víctima por el puro, natural y simple placer de ver cómo palidce, se pone triste, se deforma, pierde vitalidad, se retuerce, se corrompe, se asusta, se anega en sentimietos de culpa, se vuelve calculadora, agresiva, terrorista, igual que él.
¡Cuántos obreros, cuántos intelectuales, cuántos estudiantes han sido mordidos de noche por el vampiro y, sin darse cuenta, se están conviertiendo en vampiro a su vez!
Ha llegado pues el momento en que no basta con reconocer a la burguesía como clase social, sino como enfermedad: reconocerla ahora como clase social es además ideológica y políticamente falso (aunque se haga con los instrumentos del más puro e inteligente marxismo-leninismo). De hecho, la historia de la burguesía - en virtud de una civilizacíon tecnológica que ni Marx ni Lenin pudieron prever - está lista ya, si lo miramos bien, para coincidir con la universal histoira del mundo. Esto ¿es bueno o malo? Ni lo uno ni lo otro, creo yo; no quiero emitir oráculos. Es sencillamente un hecho. Pero pienso que es necesario tomar conciencia del mal burgués para intervenir con eficacia contra él y contribuir a que se un poco más positivo que negativo.
Desde mi soledad de ciudadano, pues, procuraré analizar a esta burguesía como enfermedad dondquiera que se encuentre: es decir, hoy más o menos en todas partes (una forma "astuta" de decir que el "sistema" burgués está en condiciones de asimilar todas las contradicciones, aunque es él mismo quien crea esas contradicciones, como dice Luckás, para sobrevivir superándose). Síntoma seguro de la presencia del mal burgués es precisamente el terrorismo, moral e ideológico: también en sus formas ingenuas (por ejemplo, entre los estudiantes).
Me embarco con esto, lo sé, en una empresa ingrata y desesperada; pero es natural, es irremediable, por lo demás, que, en una civilización en que cuenta más un gesto, una acusación, una toma de postura que un trabajo literario de años, un escritor opte por comportarse de este modo. Debe tratar de estar presente, por tanto, por lo menos pragmática y existencialmente, cuando en el frente teórico su presencia parece indemostrable.

Pasolini. El Caos. Contra el terror. Barcelona: Editorial Crítica, 1981. Traduccíon: Antonio-Prometeo Moya. pp.44-46.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

La nada


Claude Audran, Arabesque, 1704.


La nada, ¿puede ser expresada de manera significativa? La nada nunca puede ser un objeto, pero en tanto sujeto precede siempre y en todas partes a cualquier cosa. Cuando el lenguaje está reducido a los límites que fija la lógica de los objetos, la nada no puede ser expresada. El lenguaje debe estar libre de la sujeción a la lógica de los objetos. En la red de la lógica de los objetos no hay verdaderamente un sujeto y la distinción gramatical entre sujeto y objeto es confusa y engañosa. Porque ¿cómo se distingue el sujeto de una proposición ontológicamente del objeto lógico? Ambos son objetos. No sólo falla aquí el lenguaje; la lógica de los objetos no está en condiciones de expresar al sujeto ontológico. Si el lenguaje se viera liberado de esa lógica, quizá podría expresarse en él hasta el silencio.
Rodeado por la lógica de los objetos, Dios - si es que no se renuncia a él como nulo - queda sujeto a la soberanía de una idea; es evaluado como un valor entre valores. Todo aquel que valore a Dios como el valor más elevado o lo proclame como la idea suprema se hace culpable de la mayor blasfemia. Los superlativos que provienen de la esfera terrenal no adoran a Dios; lo profanan. Cuanto más alto se ubique a Dios en la escala de valores, más se lo profana. La teología, por lo tanto, nunca puede ser "natural"; pues en las relaciones terrenales ella no encuentra su punto de partida, sino su anti-tesis.
La nada como el sujeto ontológico es inmediatamente evidente por sí misma y no necesita de un fundamento. Sólo un "algo" puede ser objeto de una pregunta; la nada, en tanto sujeto, precede a todo. En cada "algo" hay una nada contenida como su fundamento; en cada "algo" que es sujeto ontológico la nada está implícita como sujeto. Toda investigación está dirigida a "algo" que debe dar prueba de sí respecto de la siguiente pregunta: ¿por qué hay algo y no más bien nada?

TAUBES, Jacob. Sobre una interpretación ontológica de la teología In.: Del Culto a la Cultura. Elementos para una crítica de la razón histórica. Madrid: Katz Editores, 2007. pp. 264-265.

domingo, 5 de julho de 2009

Elogio a Galy Gay


É o herói da comédia Um homem é um homem. Acabou de sair de casa para comprar um peixe a pedido da mulher, quando encontra casualmente soldados do exército anglo-indiano que, na pilhagem de um pagode, perderam um companheiro. Eles têm todo o interesse em arrumar rapidamente um substituto. Galy Gay é um homem que não sabe dizer não. Acompanha os três soldados sem saber o que pretendem com ele. Passo a passo adquire traços, pensamentos, atitudes, hábitos que se requerem de um homem na guerra; ele é inteiramente desmontado e remontado, renega sua mulher quando ela o encontra, e acaba tornando-se um temido guerreiro e conquistador da fortaleza Sir El Dchwr. O que lhe ocorre é explicado na seguinte passagem.

“O Sr. Bertolt Brecht afirma: um homem é um homem.
E isso qualquer um pode afirmar,
Mas o Sr. Bertolt Brecht também prova
Que qualquer coisa se pode fazer com um homem.
Esta noite, um homem é remontado como um automóvel.
Sem perder coisa alguma.
O homem é abordado com humanidade,
Solicitam-lhe com ênfase, mas sem desavença,
Adaptar-se ao curso do mundo
E deixar nadar seu peixe privado.
O Sr. Bertolt Brecht espera que os senhores vejam
Que o solo que pisam se derrete como neve
E que percebam com o empacotador Galy Gay
Que viver neste mundo é muito perigoso."



Walter Benjamin. "Bert Brecht" (trad. Margot Malnic). In: Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. p. 124.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Aforismo de outono


Onde um homem chega à convicção fundamental de que é preciso que mandem nele, ele se torna "crente"; inversamente seria pensável um prazer e uma força de autodeterminação, uma liberdade da vontade, em que um espírito se despede de toda a crença, de todo o desejo de certeza, exercitado, como ele está, em poder manter-se sobre leves cordas e possibilidades, e mesmo diante de abismos dançar ainda. Um tal espírito seria o espírito livre par excellence.

F. Nietzsche. Gaia Ciência. parag. 347. Imagem: Ferdinando Scianna. 1982.

sábado, 23 de maio de 2009

Rumores impertinentes

Entre um trago e outro, entre um ruído e outro, entre um barulho e outro vejo deus escapar pelas fissuras de tantos fonemas desperdiçados...

Suspiros



Numa bela tarde de sábado aquele tímido estudante não se cansa de suspirar. Parece querer apagar toda a mácula das vicissitudes diárias ao botá-las fora juntamente com o ar de seus pulmões. Suspira profundamente; suspira como se aquele ar carregasse consigo o peso etéreo de uma vida. Deveras o suspiro é a forma pronta e acabada da tentativa sempre frustrada de evadir-se do tempo, de socorrer-se em outro estrato atmosférico, senão quando ultra-mundano. Suspiramos por um algo outro que não a nossa intransponível existência. Falhamos. Restamos presos à nossa existência independentemente da vontade de dela esvair-se. O jogo de posições que tramamos na intimidade de uma suposta vida racional é ex-pirado nos momentos ansiosos de uma existência capenga. O escândalo de nossa presença a nós mesmos parece querer dar mostras de desgaste no mais simples e singelo movimento de suspiro. Suspiramos pela eloqüência de uma língua edênica; suspiramos pela remoção de nossa presença a nós mesmos; suspiramos pelos desejos que nos restam como fagulhas a tilintar nossos mais banais movimentos quotidianos. Cada suspiro parece soprar um segredo inefável daquele ser que vergonhosamente se sufoca; expõe em segredo toda a presença agonizante daquele que suspira. Porém, o gemido insuflado do suspiroso pode também não remeter a nada além daquele ser lançado no mundo. Assim, o movimento que prova a existência, o sopro de um suspiro, é o mesmo que tenta negar a presença no mundo ao intentar provar o gosto daquilo que nunca foi, senão no assombroso confisco da existência banal por uma suposta existência superior (um ser essencial). O meu suspirar é o meio de remeter-me à tristeza do que nunca foi no instante mesmo em que é o desejo irreparável de suturar a falha do não-sido; é o restar no meio termo entre uma positividade tacanha (que suspira na ansiedade de cumprir um trajeto, sem saber que o trajeto é infindável) e uma negatividade mesquinha (que pretende saber seus impossíveis, mas que deles faz o objetivo mais próprio – ou seja, a constante lamentação da vida); é prostrar-se diante do tempo de nossa existência, isto é, responder às exigências da massa amorfa daquilo que vivemos de modo banal mas que, justamente por isso, é de certo modo por nós carregado como possível, como re-atualizável, ainda que suspiros outros (os frequentemente exarados pela má consciência) possam tentar ilidir essa nossa (quiçá única) responsabilidade.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Entre as cebolas...

Cildo Meireles, Desvio para o vermelho


Amigo,
Iria responder com choro às cebolas descascadas.
O lance expatriado da vida lançada às chamas do tempo operativo.
O termo inquisitivo de nossos pensamentos; sim, pungentes, però non troppo...
Não nos bastam as angústias? Amargamos, com a boca cheia de fel, a provável alegria da vida.
É, talvez não nos reste muito; é bom que seja assim... 
o momento, um único e relapso instante de ternura, nas nossas fatídicas rotinas.
A vida desbanca, engana e se apaga; se apaga.
A esperança de sentido último elide nosso momento.
Vida, vida sentida, vida leve; talvez o choro irrefreável e inesperado dos compostos sulfurosos da cebola.
Vida, vida vazia, que com seu odor de enxofre, talvez seja só o que é; sem rancores ônticos-ontológicos; sem expectativas...
Aliás, pura expectativa: a espera pelo momento primordial, pelo momento em que o sentido vai aparecer... conversa fiada!
É, acho que é nessa espera, ou talvez numa conversa fiada, que nós, que talvez não mais aguardamos nada além do aguardar é que devemos nos lançar. 
A vida começa e termina numa espera, nada mais que isso. Isso, talvez isso, seja o modo de suportarmos nossa presença insolente aqui, onde os corpos não são gloriosos; suportamos essa melancolia sem sentido da vida justamente porque nos são dados os momentos de espera. Não a espera por algo, mas a espera pela espera... restos de tempo, restos da outra-vida, essa sim que vida não é... acho que é nesse meio-tempo, em algum desvio, entre uma cebola e outra...  
abril/2009

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Sobre cebolas e ontologia



Uma das causas da grande melancolia da condição humana é saber que o suicídio também é justificável. Basta, para tanto, lembrarmos da cínica metáfora da cebola e suas relações com a ontologia. A vida, tal como este bulbo vegetal, é oca - constitutivamente. Paradoxo que lança uma tarefa interminável e fatigante, equiparável a de Sísifo, ao filósofo, este sujeito do descascar. Lembremos o étimo-jargão do exemplar de filósofo que, de forma manifestamente moralizante, não detém nenhum saber ou sabedoria, tampouco se apresenta como um sophos, mas apenas se aproxima da verdade através de uma relação de philia, relação que se basta nesta aproximação amorosa e sempre incompleta (já na sua simples existência enquanto pathos). Ora, saber que as categorias são folhas que podem levar a outras folhas - ininterruptamente e incansavelmente - até o estupor (e choro, no caso das cebolas) daquele que se lança às chamadas “perguntas fundamentais” - e não até ao encontro de uma paragem segura de descanso ou termo absoluto do fluxo do pensar -, não deixa de expor uma via (crucis) trágica, neurotizante e pesada que Nietzsche tentou combater com sua celebérrima desconfiança em relação ao que chamará de vontade de verdade (ao mesmo tempo uma vontade de impotência, uma vontade de nada... Para alguns ainda preferível frente ao nada de vontade, este que pode ser comparado ao pós-gozo de um contato visceral de peles, e não apenas com o clichê zen-budista muito ao agrado da ajuda-ajuda disseminada na filosofia acadêmica de plantão). Saber que não há um solo categorial unívoco (seja um significante primevo e necessário, sejam condições transcendentais ou a priori de possibilidade, seja o monótono monossílabo “Deus” do monoteísmo, seja um falo ou fala matricial, tutti quanti...) para ancorar o “ser” evidencia-se perturbador para “indivíduos” “fadados” à mais radical e absoluta das finitudes. Em outros termos, se não há um ancoradouro seguro para isto, o ser (nem o conceito de existência em Sartre ou nos fenomenólogos revelou abertura para tanto), estamos condenados, de forma definitiva e irrecorrível, à liberdade mais completa e profana, baseada tão somente no estar-no-mundo (ter nascido) e poder agir, começar algo novo, brincar com a fala, o falo e assim sucessivamente ou sem regras explícitas. Porém, o que revela o sem fundo e teto da grande e estúpida (não num sentido feio e grave para este termo, que também poderíamos traduzir por prosaica ou, a la Drummond, besta) cebola de nostra vita é o fato de que o nada, o oco, na cebola é, em similitude, o próprio nada que nos envolve e nos constitui, cebolas prenhes de nada e a ele destinadas. Para falar com clichês mais fortes: a vida, em termos cosmológicos, é um átimo. Um suspiro belo, aleatório, comovedor e dependente de canções fúnebres.

Começamos a digressão, contudo, falando do suicídio. Não cometeremos a gafe de citar Camus. O fato de saber que a vida é um sem fundo (não fundado e não fundamentável), por si só não é razão suficiente para o suicídio, salvo para os sedentos por verdades eternas e outros maníacos (mitômanos, em sua maior parte). O problema se desloca quando, em meio a esta vertigem nauseada do próprio “existir”, estabelecem-se os domínios dos imperativos e dos controles que buscam dar sentido à(s) vida(s), projetá-la(s) ou mantê-la(s) nos estritos códigos da sobrevivência, ou dos mais variados fetiches. Em outros termos, acabar com a contingência e a espontaneidade inerentes à vida besta e inoperosa. Não é à toa que os campos de concentração representaram um laboratório macabro para produzir o inferno da necessidade e do fundamento inescapável no mundo e aí - sim - colocar-se-ia, no plano factual, a questão de que o suicídio também pode ser justificado e pode representar um ato em si mesmo louvável e de não-conformismo. (A propósito, possui alguma “aura heróica” a sobrevida após o campo? Mesmo aquele que o testemunha já sabe que carrega em si uma má-fé atroz, uma vergonha, como apontou Giorgio Agamben, pelo simples fato de se saber sobrevivente na condição mais próxima do inumano que se possa imaginar, enquanto outros simplesmente naufragaram. Talvez o suicídio fosse a via mais coerente para não se deixar capturar pela máquina de morte, dispositivo que não propicia tão-somente a morte física ou a produção de cadáveres. As testemunhas dos Lager nazistas são aquelas que encararam a face do nada absoluto encarnado na técnica sádica de mortificação e que, logo após, com sua sobrevivência, depararam-se com as “muitas folhas para descascar” na sobrevida fora do campo, tendo de retornar, não raro, para as antigas e usuais profissões, com a exceção daqueles que optaram, por exemplo, pela atividade da escrita/memorialismo, tendo de atender, dentre inúmeros objetivos declarados ou inconscientes, a um mercado editorial específico, como Primo Levi).

Mas podemos evitar um argumento tão limítrofe. O dia-a-dia dos oprimidos na periferia das grandes cidades está baseado, de certa forma, na lei da necessidade travestida em “economia de mercado”, salários, dívidas, horários, etc. Uma alternativa factível e cínica, no sentido pejorativo do termo, para estas coletividades talvez seria o suicídio (que é politicamente e simbolicamente inócuo), o crime (que só respaldaria a totalidade parcial existente) ou a política, no sentido mais genuíno (e grego) da palavra, conceito que está muito distante do que se entende por “política” nos espaços institucionais atrelados ao aparato econômico-estatal. A política seria o encontro com as potências insondáveis, imprevisíveis e impredizíveis que estão no homem que age. Encontro com o tempo e com a vulnerabilidade não domesticada de saber-se homem, ser genérico, e pronto para mudar o rumo dos ventos do mundo. Mas não é à toa que o campo de concentração volta a ser um modelo para a análise da questão contemporânea. Lá era impossível a política (o suicídio é não-político por excelência, por isso uma saída limítrofe para uma situação de esvaziamento limítrofe da capacidade política humana de agir e começar, tal qual o campo de concentração), assim como, de maneira isomórfica porém com intensidades distantes, parece ser extremamente difícil uma política genuína em meio aos escombros do presente, a prótese de mundo existente entre consumidores isolados e amedrontados. Para os que não estão de má-fé e insistem em não sucumbir ao terror, restam o nada, a obscuridade do espaço doméstico-laborativo e... Uma navalha sempre à mão.

Porém, felizmente, ainda, o mundo dos escombros não pode ser objeto de um total controle: domínio pleno é o sonho tanatológico dos técnicos contemporâneos e pesadelo concreto a prenunciar a catástrofe ou o terror absoluto que se aproxima velozmente.

Notas de desespero: 1. os freios de emergência estão cada vez mais obsoletos e adormecidos.
2. Talvez a catástrofe já tenha tomado conta de tudo, inclusive de cada um de nós. Apenas ainda não pudemos percebê-la de nossas salas de homúnculos autômatos e solipsistas.
[25.03.09]

terça-feira, 31 de março de 2009

La religione del mio tempo

E no entanto, também quem estimo e amo,
com quem tenho em comum a alma
por tanta parte, sabe, da língua, o externo
valor de história, como
se a história carregasse ao uno, a um supremo
ponto que nivela toda paixão,
como se o seu fim fosse a homologação

da alma! Não, a história
que será não é como aquela que foi.
não consente juízos, não consente ordens,
é realidade irrealizada.
E a língua, se é fruto dos séculos contraditórios,
contraditória – se é fruto dos primórdios
tenebrosos – se integra, ninguém disso discorda,
com aquilo que será, e que ainda não é,
E este seu livre mistério, riqueza
infinita, nela quebra,
agora, todo limite alcançado, toda forma lícita.
Queimar as instituições,
estupenda esperança para quem agora geme,
é uma esperança que as reais paixões
que nascerão não pode prever, nem os sons

novos das suas palavras.

Pier Paolo Pasolini. La Religione del mio tempo. Milano: Garzanti Editore, 2006. pp. 156-157 (Tradução: Vinícius N. Honesko)

sexta-feira, 27 de março de 2009

Sobre “não-conformismos” conformistas


A sociedade é integral, antes mesmo de ser governada de modo totalitário. Sua organização envolve mesmo aqueles que a combatem e impõe norma à sua consciência. Mesmo os intelectuais que têm à mão todos os argumentos políticos contra a ideologia burguesa sucumbem um processo de estandartização, que – não obstante um conteúdo crassamente oposicionista -, pela disposição a também se acomodarem de sua parte, de tal maneira os aproxima do espírito predominante, que seu próprio ponto de vista se torna objetivamente cada vez mais contingente, dependendo apenas de frágeis preferências ou de sua avaliação de suas próprias chances. O que, de um ponto de vista subjetivo, a eles parece radical, obedece objetivamente em tudo e por tudo à parte do esquema reservada para seus pares, de tal sorte que seu radicalismo se reduz a um prestígio abstrato, à legitimação daquele que sabe a favor de quê outra contra quê um intelectual tem de estar nos dias de hoje. Os bens pelos quais optam são há muito tão reconhecidos, tão limitados em número e fixados na hierarquia dos valores, quanto os das fraternidades estudantis. Ao mesmo tempo que investem contra o Kitsch oficial, suas convicções, como nas criança obedientes, estão orientadas para uma alimentação pré-selecionada, para os clichês da ojeriza ao clichê. (...) O fato de que todos os produtos culturais, mesmo os não-conformistas, estejam incorporados ao mecanismo de distribuição do grande capital, de que, no país mais desenvolvido, um produto que não obtiver o imprimatur da fabricação em massa praticamente não atingirá nenhum leitor, espectador ou ouvinte, recusa de antemão toda matéria ao anseio divergente. Até Kafka se torna uma peça de inventário do atelier sublocado. Os próprios intelectuais estão a tal ponto fixados no que é endossado na esfera isolada deles, que nada mais desejam além do que lhes é servido sob o rótulo de highbrow. Sua única ambição é “estar por dentro”, no que se refere ao sortimento cultural aceito, encontrar o slogan certo. A marginalidade dos iniciados é ilusão e mero período de espera. Vê-los como renegados é fazer-lhes honra demais; eles usam óculos com armação de tartaruga e lente que parecem vidraças em seus rostos medíocres unicamente para fazerem uma figura melhor a seus próprios olhos e melhor parecerem “brilhantes” na competição geral. Eles já são assim mesmo. A precondição subjetiva para a oposição, o juízo não enquadrado em normas, está em extinção, enquanto seus trejeitos continuam a ser efetuados como um ritual de grupo. (...)





Theodor Adorno. Reprodução Piper. Minima Moralia.
Imagem: Matthew Diffee. Che Guevara / Bart Simpson. 2oo2

domingo, 22 de março de 2009

Kynismós


(...) Essa estética da existência encontra-se distanciada daquela que era realizada pela ética estóica: lá tratava-se de estabelecer a correspondência regrada, harmoniosa, entre palavras e atos, a verdade a vida. Com os cínicos, tratava-se de fazer explodir a verdade na vida como escândalo. A relação entre a vida e a verdade é, ao mesmo tempo, a mais exigente e a mais polêmica. Não se trata de regular a própria vida segundo um discurso e de ter, por exemplo, um comportamento justo defendendo a própria idéia de justiça, mas de tornar diretamente legível no corpo a presença explosiva e selvagem de uma verdade nua, de fazer da própria existência o teatro provocador do escândalo da verdade.



GROS, Frédéric. A parrhesia em Foucault (1982-1984). In: GROS, Frédéric. (Org.) Foucault: a coragem da verdade. (Tradução Marcos Marcionilo). São Paulo: Parábola Editorial, 2004. p. 163.
Imagem: John William Waterhouse . Diogenes de Sínope. 1882.

terça-feira, 3 de março de 2009

Pequena nota sobre a negatividade


A negatividade como aproximação crítica ao mundo só pode partir do pressuposto inseguro e débil (mas tendo sua forma indissociavelmente ligada a estas duas características: insegurança e debilidade) da impossibilidade do fundamento. Atrelado a este, como selvagem rota de fuga a todo aditivo ou prótese de obturação, um princípio de indeterminação radical do ser. A negatividade é a pura vida em suas ambivalências não resolvíveis, não teorizáveis; a vida na mais completa finitude não cerimonial, impessoal, até mesmo banal. Nada mais que o ser-sem-Deus do mundo profano, e que nem por isso significará uma postura de niilismo militante, tampouco de ateísmo vulgar (lembrar aos incautos que ambos necessitam de fundamentos baseados em asserções plenas de positividade). A negatividade é o riso pirrônico e dionisíaco frente às solenes pretensões de verdade e civilização, sejam quais forem suas embalagens (à direita ou à esquerda, vanguardistas ou conservadoras, dependentes ou não da idéia de deuses). Um riso que facilmente caíra na gargalhada despudorada e trágica do bêbado que percebe que a vida, tal como o vinho, não durará a noite toda.
Imagem: Nikos Economopoulos (GREECE. Macedonia). Turkey farm. 1988

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O peso da morte

Andrea Mantegna, Lamentação sobre o corpo de Cristo (1490). Pinacoteca di Brera, Milão.
Nunca até hoje senti o peso da morte. Jamais ajudei a carregar um féretro. Tive a felicidade de, até hoje, nunca ter visto morrer um ente realmente próximo a mim. Já lamentei a morte de parentes (próximos, claro, mas não daqueles do rol mais interior), de colegas (não um daqueles amigos mais próximos) e conhecidos. Porém, nunca senti o peso da morte. Lembro sempre daqueles que já morreram e com quem mantinha contato: as saudações, os apertos de mãos, os abraços, os beijos... sempre me surge, juntamente com essas lembranças, uma sensação estranha de ter sentido a existência daqueles que já não mais existem. Lembro-me exatamente dos vários beijinhos de cumprimento em minha última tia falecida: "Oi Benisso, com´é que vai?" escuto-a novamente toda vez em que aquela sensação aparece. Engraçado, a leveza da voz de minha tia (que, lembro, não era pessoa fácil...) parece sempre querer me dizer algo. A morte quer me dizer algo?
Experimentar essas palavras, que não mais existem, que não mais são proferidas, palavras por assim dizer "mortas", que se foram com sua portadora, é uma tarefa que para mim urge ser cumprida. Não se trata, no entanto, de uma tarefa (um trabalho) em sentido operativo - como que a nos forçar um sentido próprio para aquelas palavras já totalmente impróprias -, mas de um descansar, um demorar na impropriedade que nos ronda nestas palavras mortas. Tampouco é um afligir-se diante da constatação da mortalidade da palavra (e, por óbvio que seja, da vida... aquela sensação pungente e aguda que por vezes nos bate na cara naqueles instantes únicos em que nos sentimos completamente mortais). Mas é o dar-se conta de que só perdendo a palavra própria, só na expropriação total da vida é que podemos sentir a intensidade da palavra presente, já não "nossa palavra", mas palavra pela qual "passamos" e "nos demoramos".
Lamentar a perda é, por vezes, esquecer-se da redenção que se dá pela perda. Redimir-se na perda de nossa propriedade é a abertura de um tempo possível, de uma palavra humana livre do peso da morte...
Nunca efetivamente senti o peso da morte...

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Imóvel

Daniel na cova dos leões, Peter Paul Rubens 1613-1615


Imóvel é não diferir no tempo, é rasgar as amarras das coordenadas, sem por isso deixar-se ficar... Fico, sempre só... à espreita do nada. Nada. Complexa palavra, sempre virgem e desavergonhada que, sem pudores, irrompe a crosta do conceito e permanece alí, como que a dizer algo. Não, não diz nada. Nada. Insistem até em dizer que de lá viemos e para lá voltaremos. Nada. Fico sempre terrificado diante (será que diante?) dele. Não sei, acho que não parei diante dele. Estava imóvel, porém, não parado. Imóvel não é apenas falta de movimento. Não é falta, é plenitude. Detesto a plenitude. Mas também acho que tenho receio (medo?) do nada. O que os difere, plenitude e nada? Nada.
A reserva de alguns diante de temas tidos como sérios às vezes me causa flatulência...

A anedota que faz rir nos diz tanto de verdade quanto o mais sério dos tratados teológicos...
Será que Daniel estava imóvel?

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Cerração

Moro em um lugar de cerros
onde a neblina é tão espessa
que nuvens são a ante-sala de minha casa

e chorar, sofrer, desesperar,
fazem parte da geografia local

está na minha genealogia
enfrentar os cerros com cachaça


quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Francia. Terrorismo o tragicommedia


All’alba del 11 novembre, 150 poliziotti, la maggior parte dei quali appartenenti alle brigate antiterroriste, hanno circondato un villaggio di 350 abitanti sulla piana di Millevaches prima di penetrare in una fattoria per arrestare 9 giovani [i quali avevano preso in gestione il magazzino del paese e cercato di rianimare la vita culturale del villaggio]. Quattro giorni più tardi, le 9 persone arrestate sono state deferite a un giudice dell’antiterrorismo e accusati di «associazione a delinquere a fini terroristici». I giornali riportano che il ministro dell’Interno e il capo di Stato «si sono congratulati con la polizia e la gendarmeria per la loro diligenza».

Tutto è in ordine in apparenza. Ma cerchiamo di esaminare da più vicino i fatti e di guardare le ragioni e i risultati di questa «diligenza». Le ragioni, innanzitutto: i giovani che sono stati arrestati «erano seguiti dalla polizia in ragione della loro appartenenza all’ultra-sinistra e al movimento anarco-autonomo». Come precisa l’entourage della ministra dell’Interno, «tengono dei discorsi molto radicali e hanno dei legami con dei gruppi stranieri». Ma c’è di più: alcuni tra gli arrestati «partecipano regolarmente a delle manifestazioni politiche», e, per esempio, «ai cortei contro la schedatura Edvige e contro il rinforzamento delle misure sull’immigrazione». Una appartenenza politica [è il solo senso possibile di una mostruosità linguistica come «movimento anarco-autonomo»], l’esercizio attivo delle libertà politiche, il tenere dei discorsi radicali sono sufficienti dunque per mettere in moto la Sotto direzione antiterrorista della Polizia [Sdat] e la Direzione centrale dei servizi segreti [Dcri].

Ora, chi possiede un minimo di coscienza politica non può che condividere l’inquietudine di questi giovani di fronte alle degradazioni della democrazia che la schedatura Edvige, i dispositivi biometrici e l’indurimento delle regole sull’immigrazione producono. Quanto ai risultati, ci si aspetterebbe che gli investigatori abbiano rinvenuto nella fattoria di Millevaches delle armi, degli esplosivi, delle Molotov. Invece nulla di tutto ciò, I poliziotti della Sdat sono caduti su dei «documenti che precisano gli orari di passaggio dei treni, comune per comune, con l’orario di partenza e di di arrivo nelle stazioni». In buon francese: un orario della Sncf. Ma hanno anche sequestrato del «materiale per scalare». In buon francese: una scala, come quelle che si trovano in qualunque casa di campagna.

È dunque tempo di venire alle persone arrestate e, soprattutto, al presunto capo di questa banda terrorista, «un leader di34 anni uscito da un ambiente agiato, che vive grazie ai sussidi dei genitori». Si tratta di Julien Coupat, un giovane filosofo che ha animato tempo fa, con qualche amico, Tiqqun, una rivista responsabile di analisi politiche senza dubbio discutibili, ma che ancora oggi credo siano tra le migliori di questo periodo. Ho conosciuto Julien Coupat in quell’epoca e ne ho, da un punto di vista intellettuale, una grande stima. Passiamo quindi all’esame del solo fatto concreto di tutta questa storia. L’attività degli arrestati sarebbe in relazione con gli atti di danneggiamento contro la Sncf che hanno causato l’8 novembre il ritardo di alcuni Tgv sulla linea Parigi-Lille. Questi dispositivi, se si crede alle dichiarazioni della polizia e degli agenti della Sncf stessi, non potevano in alcun caso provocare dei danni alle persone: potevano tutto al più, disturbare l’alimentazione dei pantografi dei treni, causando il ritardo di questi ultimi. In Italia i treni sono molto spesso in ritardo ma nessuno si è mai sognato di accusare di terrorismo la società nazionale delle ferrovie. Si tratta di delitti minori anche se nessuno intende avvallarli. Il 13 novembre, un comunicato della polizia affermava con prudenza che forse «tra gli arrestati vi era qualche autore dei danneggiamenti ma che era impossibile attribuirli a uno o all’altro». La sola conclusione possibile di questo affare tenebroso è che chi si impegna attivamente oggi contro la maniera [quanto meno discutibile] di gestire i problemi sociali ed economici è considerato ipso facto come un terrorista in potenza, anche se nessun atto giustifica questa accusa.

Bisogna avere il coraggio di dire con chiarezza che oggi, in molti paesi europei [in particolare in Francia e in Italia], si sono introdotte delle leggi e delle misure di polizia che in passato si sarebbero giudicate come barbare e antidemocratiche e che non hanno nulla dainvidiare a quelle che erano in vigore in Italia durante il fascismo. Una di queste misure è quella che autorizza la detenzione per una durata di 96 ore di un gruppo di giovani forse imprudenti ma ai quali «non è possibile imputare un’azione». Un’altra misura molto grave è l’adozione delle leggi che introducono dei delitti di associazione la cui formulazione è lasciata intenzionalmente nel vago e che permettono di classificare come «asfondo» o a «vocazione» terrorista degli atti politici che non erano mai stati considerati fino ad ora come destinati a produrre terrore.



Giorgio Agamben