Do discurso mais que irônico (ou, de um realismo cáustico) de Amalfitano, personagem de 2666, de Roberto Bolaño.
A relação com o poder dos intelectuais mexicanos vem de longe. Não digo que todos sejam assim. Há exceções notáveis. Também não digo que os que se entregam o façam de má-fé. E tampouco que essa entrega seja uma entrega em regra. Digamos que é só um emprego. Mas um emprego no Estado. Na Europa os intelectuais trabalham em editoras ou na imprensa ou são sustentados pela mulher ou seus pais têm uma boa condição e lhes dão uma mesada ou são operários e delinquentes e vivem honestamente de seus trabalhos. No México, e pode ser que o exemplo seja extensível a toda a América Latina, menos à Argentina, os intelectuais trabalham para o Estado. Era assim com o PRI e continua sendo assim com o PAN. O intelectual, por sua vez, pode ser um fervoroso defensor do Estado ou um crítico do Estado. Isso, para o Estado, pouco importa. O Estado o alimenta e observa em silêncio. Com sua enorme coorte de escritores que poderíamos dizer inúteis, o Estado faz alguma coisa. O quê? Exorciza demônios, muda ou pelo menos tenta influir no tempo mexicano. Acrescenta camadas de cal numa cova que ninguém sabe se existe ou não. Claro, isso nem sempre é assim. Um intelectual pode trabalhar na universidade ou, melhor que isso, pode ir trabalhar numa universidade americana, cujos departamentos de literatura são tão ruins quanto os das universidades mexicanas, mais isso não os põe a salvo de receber um telefonema altas horas da noite em que alguém, falando em nome do Estado, lhe ofereça um trabalho melhor, um emprego mais bem remunerado, algo que o intelectual crê merecer, e os intelectuais sempre creem merecer algo mais. Essa mecânica, de alguma maneira, corta as orelhas dos escritores mexicanos. Enlouquece-os. Alguns, por exemplo, se metem a traduzir poesia japonesa sem saber japonês, e outros se entregam direto à bebida. Para não ir mais longe, Almendro creio que faz ambas as coisas. A literatura no México é como um jardim de infância, uma creche, um kindergarten, uma escolinha, não sei se me entendem. O clima é bom, faz sol, você pode sair de casa, sentar num parque, abrir um livro de Valéry, talvez o escritor mais lido pelos escritores mexicanos, depois ir à casa dos amigos conversar. Mas a sua sombra não segue mais você. Em algum momento, ela o abandonou silenciosamente. Você faz como se não se desse conta, mas se deu conta sim, a fodida da sua sombra não vai mais com você, mas, bom, isso pode ser explicado de muitas formas, a posição do sol, o grau de inconsciência que o sol provoca nas cabeças sem chapéu, a quantidade de álcool ingerida, o movimento como que de tanques subterrâneos de dor, o medo de coisas mais contingentes, uma doença que se insinua, a vaidade ferida, o desejo de ser pontual pelo menos uma vez na vida. O caso é que a sua sombra se perde e você, momentaneamente, a esquece. E você chega assim, sem sombra, a uma espécie de cenário e se põe a traduzir ou reinterpretar ou cantar a realidade. O cenário propriamente dito é um proscênio e no fundo do proscênio há um tubo enorme, algo como uma mina ou a entrada de uma mina de proporções gigantescas. Digamos que é uma caverna. Mas também podemos dizer que é uma mina. Da boca da mina saem ruídos ininteligíveis. Onomatopeias, fonemas furibundos ou sedutores ou sedutoramente furibundos ou pode ser que só murmúrios e sussurros e gemidos. O caso é que ninguém vê, ver mas ver mesmo, a entrada da mina. Uma máquina, um jogo de luzes e de sombras, uma manipulação no tempo furta o verdadeiro contorno da boca ao olhar dos espectadores. Na realidade, só os espectadores que estão mais próximos do proscênio, junto do fosso da orquestra, podem ver, detrás da cerrada rede de camuflagem, o contorno de algo, não o verdadeiro contorno, mas sim, pelo menos, o contorno de algo. Os outros espectadores não veem nada mais além do proscêncio e se poderia dizer que tampouco lhes interessa ver nada. Por sua vez, os intelectuais sem sombra estão sempre de costas e, portanto, a não ser que tivessem olhos na nuca, é impossível verem o que quer que seja. Eles só escutam os ruídos que saem do fundo da mina. E os traduzem ou reinterpretam ou recriam. Seu trabalho, nem é preciso dizer, é paupérrimo. Empregam a retórica ali onde se intui um furacão, tentam ser eloquentes ali onde intuem um silêncio ensurdecedor e inútil. Dizem piu-piu, au-au, miau-miau, porque são incapazes de imaginar um animal de proporções colossais ou a ausência de um animal. O cenário em que trabalham, aliás, é muito bonito, muito bem pensado, muito atraente, mas suas dimensões, com o passar do tempo, são cada vez menores. Esse apequenamento do cenário não o desvirtua de maneira nenhuma. Simplesmente cada vez é menor, também as plateias são menores, e os espectadores, naturalmente, são cada vez mais escassos. Junto a esse cenário, claro, há outros cenários. Cenários novos que cresceram com o passar do tempo. Tem-se o cenário da pintura, que é enorme e cujos espectadores são poucos, mas todos, para dizer de algum modo, são elegantes. Tem-se o cenário do cinema e da televisão. Aqui a lotação é enorme, está sempre cheio e o proscênio cresce a bom ritmo ano após ano. Vez por outra, os intérpretes do cenário dos intelectuais passam, como atores convidados, para o cenário da televisão. Nesse cenário a boca da mina é a mesma, com uma ligeiríssima mudança de perspectiva, embora talvez a camuflagem seja mais densa e, paradoxalmente, esteja prenhe de um humor misterioso e que, no entanto, fede. Essa camuflagem humorística, naturalmente, se presta a muitas interpretações, que finalmente sempre se reduzem, para maior facilidade do público ou do olho coletivo do público, a duas. Vez por outra, os intelectuais se instalam para sempre no proscênio televisivo. Da boca da mina continuam saindo rugidos, e os intelectuais continuam a interpretá-los mal. Na realidade, eles, que em teoria são os amos da linguagem, nem sequer são capazes de enriquecê-la. Suas melhores palavras são palavras emprestadas, que ouvem os espectadores da primeira fila dizer. A esses espectadores costuma-se chamar de flagelantes. Estão doentes e a cada certo tempo inventam palavras atrozes e seu índice de mortalidade é elevado. Quando acaba a jornada de trabalho fecham-se os teatros e tapam-se as bocas das minas com grandes chapas de aço. Os intelectuais se retiram. A lua é gorda e o ar noturno é de uma pureza tal que parece alimentício. Em alguns bares se ouvem canções cujas notas chegam às ruas. Às vezes um intelectual desvia, penetra num desses bares e bebe mescal. Pensa então no que aconteceria se um dia ele. Mas não. Não pensa nada. Só bebe e canta. Às vezes alguém acredita ver um escritor alemão legendário. Na realidade só viu uma sombra, em certas ocasiões só viu a própria sombra, que volta para casa todas as noites para evitar que o intelectual estoure ou se enforque no portão. Mas ele jura que viu um escritor alemão e nessa convicção se resume sua felicidade, sua ordem, sua vertigem, seu senso da gandaia. Na manhã seguinte faz um dia bonito. O sol crepita, mas não queima. Você pode sair de casa razoavelmente tranquilo, arrastando a sua sombra, parar num parque e ler umas páginas de Valéry. E assim até o fim.
Roberto Bolaño. 2666. São Paulo: Cia das Letras, 2010. Tradução: Eduardo Brandão. pp. 126-128.