quinta-feira, 30 de junho de 2011

Os intelectuais sem sombra



Do discurso mais que irônico (ou, de um realismo cáustico) de Amalfitano, personagem de 2666, de Roberto Bolaño.


A relação com o poder dos intelectuais mexicanos vem de longe. Não digo que todos sejam assim. Há exceções notáveis. Também não digo que os que se entregam o façam de má-fé. E tampouco que essa entrega seja uma entrega em regra. Digamos que é só um emprego. Mas um emprego no Estado. Na Europa os intelectuais trabalham em editoras ou na imprensa ou são sustentados pela mulher ou seus pais têm uma boa condição e lhes dão uma mesada ou são operários e delinquentes e vivem honestamente de seus trabalhos. No México, e pode ser que o exemplo seja extensível a toda a América Latina, menos à Argentina, os intelectuais trabalham para o Estado. Era assim com o PRI e continua sendo assim com o PAN. O intelectual, por sua vez, pode ser um fervoroso defensor do Estado ou um crítico do Estado. Isso, para o Estado, pouco importa. O Estado o alimenta e observa em silêncio. Com sua enorme coorte de escritores que poderíamos dizer inúteis, o Estado faz alguma coisa. O quê? Exorciza demônios, muda ou pelo menos tenta influir no tempo mexicano. Acrescenta camadas de cal numa cova que ninguém sabe se existe ou não. Claro, isso nem sempre é assim. Um intelectual pode trabalhar na universidade ou, melhor que isso, pode ir trabalhar numa universidade americana, cujos departamentos de literatura são tão ruins quanto os das universidades mexicanas, mais isso não os põe a salvo de receber um telefonema altas horas da noite em que alguém, falando em nome do Estado, lhe ofereça um trabalho melhor, um emprego mais bem remunerado, algo que o intelectual crê merecer, e os intelectuais sempre creem merecer algo mais. Essa mecânica, de alguma maneira, corta as orelhas dos escritores mexicanos. Enlouquece-os. Alguns, por exemplo, se metem a traduzir poesia japonesa sem saber japonês, e outros se entregam direto à bebida. Para não ir mais longe, Almendro creio que faz ambas as coisas. A literatura no México é como um jardim de infância, uma creche, um kindergarten, uma escolinha, não sei se me entendem. O clima é bom, faz sol, você pode sair de casa, sentar num parque, abrir um livro de Valéry, talvez o escritor mais lido pelos escritores mexicanos, depois ir à casa dos amigos conversar. Mas a sua sombra não segue mais você. Em algum momento, ela o abandonou silenciosamente. Você faz como se não se desse conta, mas se deu conta sim, a fodida da sua sombra não vai mais com você, mas, bom, isso pode ser explicado de muitas formas, a posição do sol, o grau de inconsciência que o sol provoca nas cabeças sem chapéu, a quantidade de álcool ingerida, o movimento como que de tanques subterrâneos de dor, o medo de coisas mais contingentes, uma doença que se insinua, a vaidade ferida, o desejo de ser pontual pelo menos uma vez na vida. O caso é que a sua sombra se perde e você, momentaneamente, a esquece. E você chega assim, sem sombra, a uma espécie de cenário e se põe a traduzir ou reinterpretar ou cantar a realidade. O cenário propriamente dito é um proscênio e no fundo do proscênio há um tubo enorme, algo como uma mina ou a entrada de uma mina de proporções gigantescas. Digamos que é uma caverna. Mas também podemos dizer que é uma mina. Da boca da mina saem ruídos ininteligíveis. Onomatopeias, fonemas furibundos ou sedutores ou sedutoramente furibundos ou pode ser que só murmúrios e sussurros e gemidos. O caso é que ninguém vê, ver mas ver mesmo, a entrada da mina. Uma máquina, um jogo de luzes e de sombras, uma manipulação no tempo furta o verdadeiro contorno da boca ao olhar dos espectadores. Na realidade, só os espectadores que estão mais próximos do proscênio, junto do fosso da orquestra, podem ver, detrás da cerrada rede de camuflagem, o contorno de algo, não o verdadeiro contorno, mas sim, pelo menos, o contorno de algo. Os outros espectadores não veem nada mais além do proscêncio e se poderia dizer que tampouco lhes interessa ver nada. Por sua vez, os intelectuais sem sombra estão sempre de costas e, portanto, a não ser que tivessem olhos na nuca, é impossível verem o que quer que seja. Eles só escutam os ruídos que saem do fundo da mina. E os traduzem ou reinterpretam ou recriam. Seu trabalho, nem é preciso dizer, é paupérrimo. Empregam a retórica ali onde se intui um furacão, tentam ser eloquentes ali onde intuem um silêncio ensurdecedor e inútil. Dizem piu-piu, au-au, miau-miau, porque são incapazes de imaginar um animal de proporções colossais ou a ausência de um animal. O cenário em que trabalham, aliás, é muito bonito, muito bem pensado, muito atraente, mas suas dimensões, com o passar do tempo, são cada vez menores. Esse apequenamento do cenário não o desvirtua de maneira nenhuma. Simplesmente cada vez é menor, também as plateias são menores, e os espectadores, naturalmente, são cada vez mais escassos. Junto a esse cenário, claro, há outros cenários. Cenários novos que cresceram com o passar do tempo. Tem-se o cenário da pintura, que é enorme e cujos espectadores são poucos, mas todos, para dizer de algum modo, são elegantes. Tem-se o cenário do cinema e da televisão. Aqui a lotação é enorme, está sempre cheio e o proscênio cresce a bom ritmo ano após ano. Vez por outra, os intérpretes do cenário dos intelectuais passam, como atores convidados, para o cenário da televisão. Nesse cenário a boca da mina é a mesma, com uma ligeiríssima mudança de perspectiva, embora talvez a camuflagem seja mais densa e, paradoxalmente, esteja prenhe de um humor misterioso e que, no entanto, fede. Essa camuflagem humorística, naturalmente, se presta a muitas interpretações, que finalmente sempre se reduzem, para maior facilidade do público ou do olho coletivo do público, a duas. Vez por outra, os intelectuais se instalam para sempre no proscênio televisivo. Da boca da mina continuam saindo rugidos, e os intelectuais continuam a interpretá-los mal. Na realidade, eles, que em teoria são os amos da linguagem, nem sequer são capazes de enriquecê-la. Suas melhores palavras são palavras emprestadas, que ouvem os espectadores da primeira fila dizer. A esses espectadores costuma-se chamar de flagelantes. Estão doentes e a cada certo tempo inventam palavras atrozes e seu índice de mortalidade é elevado. Quando acaba a jornada de trabalho fecham-se os teatros e tapam-se as bocas das minas com grandes chapas de aço. Os intelectuais se retiram. A lua é gorda e o ar noturno é de uma pureza tal que parece alimentício. Em alguns bares se ouvem canções cujas notas chegam às ruas. Às vezes um intelectual desvia, penetra num desses bares e bebe mescal. Pensa então no que aconteceria se um dia ele. Mas não. Não pensa nada. Só bebe e canta. Às vezes alguém acredita ver um escritor alemão legendário. Na realidade só viu uma sombra, em certas ocasiões só viu a própria sombra, que volta para casa todas as noites para evitar que o intelectual estoure ou se enforque no portão. Mas ele jura que viu um escritor alemão e nessa convicção se resume sua felicidade, sua ordem, sua vertigem, seu senso da gandaia. Na manhã seguinte faz um dia bonito. O sol crepita, mas não queima. Você pode sair de casa razoavelmente tranquilo, arrastando a sua sombra, parar num parque e ler umas páginas de Valéry. E assim até o fim.

Roberto Bolaño. 2666. São Paulo: Cia das Letras, 2010. Tradução: Eduardo Brandão. pp. 126-128.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Texto de Montreal


Depois de se ter anunciado a morte de Deus, eis agora que se nos anuncia a morte do homem. Basta folhear o recente (e notável) livro de Michel Foucault, As palavras e as coisas, para dar-se conta de que por trás da morte do homem, que se nos profetiza, há, no fundo, a morte do Sistema. Pessoalmente jamais lutei pela sobrevivência de um sistema no qual tantas coisas desagradam a mim e - disso estou certo - também a todos vocês. Digo isso para sugerir que o poeta, ou melhor, a poesia atual está profundamente engajada numa luta terrível: "o combate espiritual é tão brutal quanto a batalha dos homens", disse Rimbaud. Ora, a batalha do poeta passa-se sempre no nível da linguagem. O drama atual consiste exatamente em ser a linguagem poética, o Verbo que criou o mundo, ameaçada de destruição. O homem, que deve repetir a operação grandiosa, a operação inicial que consiste em separar a luz das sombras, é, talvez, condenado a ver perecer essa própria luz.
De modo algum creio na potência do poeta hoje enquanto ordenador do sagrado, pois estamos instalados na dessacralização total, isto é, na desintegração dos signos de amor. Pelo fato de a linguagem ter sido deformada, o drama do poeta se confunde com aquele do homem. Não se sabe mais hoje o valor exato das palavras. Em diversos setores se nos propõe a destruição da linguagem aristotélica. Estou de acordo, ao menos em parte, pois uma tal linguagem corresponde a conceitos ultrapassados. E o que é formidável no nosso mundo atual é que tudo está aí para ser reconstruído. É absolutamente preciso reconstruir a linguagem. E isso jamais será obra de um só homem. Temos perto de nós o exemplo de Mallarmé quem, não obstante tudo o que trouxe de maravilhoso, teve consciência de sua derrota. Assim, na véspera de sua morte, escrevia para sua mulher e sua filha Geneviève: "E, no entanto, era tão belo!" aquilo que ele quisera fazer, o Livro Órfico da revelação cósmica, o livro da terra. Pois nós estamos engajados, nós estamos na terra. Nossa linguagem deve ser, portanto, uma linguagem concreta, baseada em valores racionais e de acordo com todas as possibilidades do mundo atual.
A distinção entre a poesia dita gratuita e a poesia "engajada" não tem muito mais de sentido já que o poeta, a partir o momento em que toma consciência de sua condição de poeta, está "ex-officio" engajado no drama humano e, de todo modo, evidentemente, no drama da linguagem, que é aquele do homem. Mas, como eu dizia, não creio absolutamente no poder do poeta, creio muito mais na sua impotência. Alegro-me em saber que na Rússia soviética, nos Estados Unidos, na França e talvez em outros países, há uma comunicação do poeta com a massa. Mas me pergunto se essa comunicação tem possibilidades de sobrevivência, se as poucas centenas ou milhares de pessoas que nas grandes assembleias, nos estádios, escutam a voz dos poetas se lembrarão disso em duas ou três semanas.
Acho que o poeta é um ser obscuro e aberto. Isto é, ele não se conhece muito bem, ele se torna um enigma para si mesmo e, mais do que os outros, tem consciência do grande enigma do mundo inicial e final. Lautréamont escreveu que a poesia deve ser feita para todos, mas não disse que ela deve ser escrita por todos. Eu creio, contudo, que todo homem carrega o gérmen da poesia e que cabe ao poeta manifestá-la mais claramente.
Quanto à tese do poeta como instaurador de novos mitos, é preciso dizer que nisso creio. Há uma enormidade de mitos atuais que, aliás, como todos vocês, eu rejeito: o mito das classes, o mito nacionalista ou racista que conduziram o mundo ao drama que nós sabemos. Mas o poeta, ele, pode dar uma outra dimensão aos grandes mitos da humanidade. Aqui, por exemplo, no âmbito dessa magnífica exposição, está todo o testemunho em favor do poder do homem que cria sem intervenção dos deuses, tal como o fez Prometeu, o arrebatador do fogo celeste. É verdade que, desde então, o abutre sempre lhe roeu o fígado e todo poeta terá esse abutre para lhe roer sem trégua. Isso quer dizer que mesmo que ele consiga abolir totalmente a transcendência, o homem estará sempre inquieto.
Falei da impotência do poeta de hoje pensando, sobretudo, na guerra que assombra a todos. A guerra não está mais ou menos longe. Ela não está no sudeste asiático. Ela está em nós, no nosso quarto e ela nos dá má consciência. Os chefes das grandes religiões, os poetas, os jovens protestantes e eu mesmo a fizemos e continuaremos a fazê-la. Mas o que há de terrível é que nosso esforço seja quase vão. Vemos cada dia mais os exércitos aumentar suas potências e com isso ficarem orgulhosos. E acho que isso é aterrorizante, desencorajador. Assim, para terminar estas palavras improvisadas, quero expressar um desejo talvez utópico mas essencial: que o mundo possa ver um dia a destruição de todas as tiranias, sejam de esquerda ou de direita, e a instauração da paz e da fraternidade universais.

Texto improvisado e proferido em francês por Murilo Mendes no "Encontro Internacional de Poesia", em Montréal, em setembro de 1967. O texto está incluído em Papiers, presente na organização feita por Luciana Stegagno Picchio: Murilo Mendes. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. pp. 1593 - 1595. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

Imagem: Pieter Paul Rubens. Prometeu acorrentado. 1610-11, Museum of Art, Philadelphia.

Nota sobre o espaço (II)

"Na época da alienação máxima dos homens entre si, das relações infinitamente mediatizadas - enfim, as únicas que eles têm -, inventou-se o filme e o gramofone. No filme o homem não reconhece o seu próprio andar, no gramofone não reconhece sua própria voz."
(Walter Benjamin. A Modernidade e os Modernos. p. 103)


A velocidade é um dos mitos mais drásticos do presente. Ou seja, a ficção do ultrapassamento técnico do espaço. Se ele ocorre, só se dá em planos de metafísica projetada, simulações concretas com efeitos ontológicos devastadores.

Exemplos: há a comunicação direta e barateada, na velocidade virtual dos sinais eletrônicos... Em contrapartida, a produção de sedentarizados (que não precisam se locomover bastante ou frequentar academias para deixar desta condição), do lixo informativo, da compulsão por pequenas máquinas cada vez mais desreais e da dependência de milhões a um pequeno número de corporações que controlam a nuvem informática - estas, em locais geograficamente situados e muito bem sitiados. Há a massificação automobilística, viagens aéreas facilitadas, rapidez inaudita nos deslocamentos terrestres, mas boa parte da terra está transformada num mero local desértico de passagem... Ou num grande estacionamento a céu aberto.

Ocupamos espaço, somos espaço. Mesmo um cadáver não pode ser eliminado sem grandes dificuldades. As próteses de velocidade, para serem efetivas, têm de gerar dispositivos que "descartam" a geografia - com toda a dimensão de historicidade espacial e antropológica que este termo comporta - para gerar estranhas replicações (como o estacionamento, a fumaça, a auto-estrada, a usina hidroelétrica ou nuclear, o condomínio fechado, o monumento turístico, etc., etc.)

Não há, porém, uma teleologia da técnica, algo como uma escatologia automática livre da contingência. É de uma mistificação teológica que se retira o argumento de que o "capitalismo" (ou outra denominação que possa ser dada à forma de vida que se disseminou globalmente nos últimos dois séculos) só será vencido por uma catástrofe ambiental sem precedentes, por mais que seja óbvio que uma mera defasagem energética simplesmente poderia colapsar toda a "sociedade da informação" hoje triunfante. Embutido neste raciocínio está a imagem de um processo inexorável como o destino, um argumento que lembra alguns silogismos da velha escolástica - se substituirmos o termo "capitalismo" por "divina providência" ou outro efeito de mística qualquer.

A questão não é apenas que o mundo está se tornando difícil de se habitar (e, vertigem!, a condição humana está inapelavelmente presa a este único mundo existente), simplesmente estamos perdendo a experiência da habitação, já não sabemos o que é habitar.

Aqui é preciso apelar para a barbárie. Se entendermos como bárbaro aquele que ainda está na chamada esfera do "pré-tecnológico", do "pré-moderno" (e todas estas denominações não deixam de estar inseridas numa visão fantasiosa, tele-teológica da própria história - além de ser impossível desvencilhar o processo de hominização da técnica enquanto tal) ou aquele que se "subjetiva" enquanto descarte inevitável do modo de vida imperante. O índio, o cigano, o camponês, o malaco da periferia, os nômades, os hucks finn's do vasto mundo das esquinas e quebradas. Como dizia Bolaño, não aqueles personagens melvilleanos que correm atrás de baleias épicas, ou os revolucionários de facebook, mas aquele que pesca bagres no Mississipi e sabe ler os rastros de um animal no meio da mata- sabe habitar e fazer experiência do rio, de uma estepe, do chão de barro de uma periferia. Não terá qualquer vestígio nos anais imprevisíveis da história, imerso no mito e na vida real feita de sangue, suor e lágrimas.

Sem as mitificações do bom selvagem ou do humanismo de esquerda mais romântico, sim, um sujeito que pode muito bem conviver com a selvageria - nunca estivemos separados da natureza imponderável e violenta, nem você, meu caro leitor de blog, nós, habitantes da vida administrada até as entranhas.

Talvez esta seja uma das últimas resistências ainda possíveis. A vida destes homens e mulheres está sendo posta em xeque com os "efeitos espaciais colaterais" das "próteses da velocidade".

Do ferro do séc. XIX, ao plástico do séc. XX, o séc. XXI é de plasma, a reestruturação da produção, a financeirização virtual do capital (emblemática na proliferação dos caixas eletrônicos e transações virtuais) põe estas formas de vida numa rota fatal de colisão.

Barbárie ou catástrofe, estes são os pólos de luta que restam no campo do presente.

domingo, 26 de junho de 2011

Ritmos de domingo


Na passagem do século XIX para o XX as cidades, principalmente as metrópoles dos países em que a industrialização já havia feito seus primeiros ciclos, começam a sentir uma mudança em seus ritmos internos: as distâncias começam a se alargar (e aí a necessidade de "meios de transporte" mais velozes); os ruídos aumentam (é o motor de combustão interna); a sujeira não é mais somente rejeito humano, mas também dejetos das máquinas; os estimulantes ganham espaço nos espaços públicos (não eram mais o charuto e o chá a servir de momento de relaxamento nas horas de descanso, mas o cigarro e o café usados em plena jornada de trabalho); o ritmo interno à cidade passou a ser ligado não mais à circulação sanguínea, mas àquela do petróleo refinado nas engrenagens das máquinas.
Uma mecanização também atinge o campo artístico (e muito já se escreveu sobre isso), como no caso da invenção da fotografia: os retratos que, quando pintados, tomavam horas de pose do retratado, passaram a ser capturados - instantaneamente (se bem que nos primórdios da fotografia não fosse assim tão rápido) - pela objetiva da máquina fotográfica; logo em seguida a invenção do cinema dá mostras do que seria a nova velocidade no acompanhamento de "histórias" (os romances entram em declínio e o entretenimento passa para a grande tela); a arquitetura passa a privilegiar os espaços internos dos ambientes, quase que em detrimento do aspecto exterior, além da preocupação com os novos mecanismos (luz elétrica, telefone etc.) que começariam a tomar um espaço e ser o centro das atenções dos arquitetos (de fato, era burguesia industrial a comitente dos projetos). Até mesmo as religiões sofrem com a intervenção das máquinas. Exemplo disso é a criação do espiritismo, centrado nas reuniões de caráter privado e em "assombrações" possibilitadas pela nova forma de manipular a energia (luzes, aparelhos magnéticos, enfim, uma série de forças que poderiam servir - subterraneamente - de meio de conversão e convencimento de crentes).
Hoje toda essa mudança súbita (mais ou menos cem anos) pode ser vista como marca do início de uma mutação antropológica. Todo esse contexto das metrópoles da Europa e América do Norte do século XX - explosão demográfica, guerras virulentas, energia atômica etc. - pode, no entanto, ser redimensionado numa simples caminhada dominical numa cidade interiorana de um país interiorano. É óbvio que o ritmo das máquinas chega aqui com um tempo de atraso - e toda essa história da passagem do século XIX para o XX no hemisfério norte pode ser repensada com relação ao Brasil.
Hoje enquanto andava me dei conta de que o que há 15 anos era um espaço arborizado, voltado à convivência de senhoras com seus netos, de senhores com seus jogos de dama e dominó, onde ainda se podia ouvir alguns pássaros a cantar, hoje é um estacionamento. Foi passando por ali hoje que senti que o ritmo das tardes de café - que ainda hoje insistimos em manter - é ameaçado a todo instante não diretamente por alguém (ou algumas pessoas que a isso se opõem sem o saber), mas por uma ideia, por um modo de acolher as ingerências do poder (seja na submissão a todo mecanismo de controle demográfico, seja na aceitação redentorista da tecnologia como "meio libertador" de não se sabe qual sensação vital); e é essa aceitação tácita e muda de um modo de vida pautado na velocidade das máquinas que paira como ameaça constante a um ritmo de vida.
Não tenho pretensões de análise da mutação, nem de levantamento de dados que confirmem essa minha estranha sensação de não conseguir sentir um ritmo humano nas coisas da cidade (e não falo de uma metrópole!). Também seria ingenuidade pensar em espaços resguardados da movimentação e aceleração mecânica (isso pra não falar da muito mais intensa e rápida evolução das novas tecnologias). Apenas escrevo uma sensação que tive, um enjoo quase literal enquanto passeava. Olhando para as ruas, para os carros, parece-me que hoje tudo o que se move o faz num ritmo que busca um movimento não oscilante - no qual é possível haver baixas e altas velocidades a depender do momento -, mas uma constante; a cidade, na ânsia por aceleração de seu ritmo, perde-o, pois não há ritmo onde há somente linearidade, onde há movimento constante e inalterado. O ritmo da máquina não é propriamente um ritmo, pois não há ritmo onde não há sensação, onde não há, por assim dizer, vida. E talvez seja essa minha vontade de sentir ritmos antigos que me ilude diante da arritmia do mundo contemporâneo.
Diz-se que vivemos um ritmo frenético (e eu mesmo já disse que o ritmo da vida muda com as revoluções tecnológicas - aliás, uso aqui o significante ritmo indistintamente), mas acho que é todo um novo cabedal onomástico que precisa ser elaborado para, talvez, dar conta disso que chamamos era da globalização. De fato, toda essa minha elucubração surgiu de uma sensação em meio a uma caminhada ritmada. Aliás, durante essa hora em que me coloquei a andar nas esquadrinhadas ruas desta cidade interiorana, tentei ouvir certos sons. Queria escutar os sons da cidade, seu "ritmo", que talvez pudesse estar no canto dos pássaros, no vento frio que agitava as folhas das árvores, no som dos meus passos que ora soavam secos, ora umedecidos pela neblina. Queria ver e ouvir a cidade como espaço no qual habitam homens, no qual há vida. Porém, entristeci-me um pouco naqueles momentos. Era como se a minha sensação estivesse viciada em querer encontrar sentidos nos sons (será, Derrida?!), era como se me fosse interdito o acesso às outras pessoas: como fazer com que minhas angustias, meus sentidos, entrassem em relação (rítmica) com as dos outros? Como se já não vejo com quem o fazer? A cidade está esvaziada... ou, talvez, seja o meu ritmo que colapsa por não encontrar sua melodia, por tentar decifrar no espaço o que só se dá no tempo. E, talvez, seja mesmo o ritmo o tempo organizado. Mas o que é a organização senão o edifício que se constrói sobre a desorganização?
Tudo um delírio dominical? Acho que sim, mas ritmado.

Imagem: Leonard Freed. West Germany, Sunday. 1965.

sábado, 25 de junho de 2011

Inocências


Nenhuma inocência pode ser perdoada, pois todo inocente já é culpado pela própria inocência. Há uma marca, há uma exibição de pureza já condenada. A vida acaba antes de seu começo e nada, além de sobrevivência, é o que nos resta. Todos somos culpados pela nossa inocência primeira: vir ao mundo. Antes de nossa existência há, em forma de ausência, a marca de culpa que colheremos em nossos rostos evanescentes: e a ausência é essa nossa inocência jamais perdoada. Ausentamo-nos do nosso julgamento primevo para evitar olhar nos olhos de nosso próprio ser condenado, mas isso de nada adiantará: o esquecimento dos rostos próximos, nossas mãos incapazes de tocar, a visão que insiste em desfocar, tudo isso aparece (o evento) numa sorte de culpabilidade inextricável, intocável, como o magma de um vulcão chamado inocência. O pedido de comida da criança inocente não vem desacompanhado das máculas de antes da existência, do nada que precede a vida. Ele, o nada - que nos chega na dança com a dama morte -, é o companheiro do ser, seu duplo, seu sonho. E nisso, que cremos ser nossa redenção porque é a forma da inocência (não sabemos, não há nossa consciência... como se existisse escusas...), há a revelação da culpa de toda inocência. Estamos todos num processo vital de condenação - e não há como nele entrar com esperanças de absolvição.
Ninguém bota os pés sobre a terra sem ser inocente e ninguém mergulha na terra perdoado por sua inocência: tudo está condenado, tudo é sinal do tempo, tudo é sinal da vida. E não há vida não condenada. Toda inocência já é condenada e, assim como toda existência é coroada com a morte, todo corpo padecerá pela inocência de desde antes da existência. Nenhum homem jamais se viu não culpado, senão após expiar a culpa de sua inocência com a morte... mas aí, já homem não há.
E um dos castigos ao inocente é deitar a palavra na folha branca, impávida, pura. O verbo, que se quis antes da existência, era em sua inocência a vítima de uma condenação. Foi-se a existência, foi-se para junto do nada que lhe é contíguo. Não há vítima imperfeita, não há delírio inocente. O rosto próximo está em mutação, a imagem é desfigurada e toda inocência é condenada. A vida acaba nas pequenas mortes diárias, nos pequenos lapsos em que nos esquecemos da condição de inocentes condenados e sonhamos com uma redenção na profundeza do ser. Nada, nada é o que nos resta. E isso é o que nos foi deixado como herança.

Imagem: Hieronymus Bosch, Ecce Homo. Philadelphia, Museum of Art. Por volta de 1490.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Agudezas


Às vezes era uma sensação angustiante, outras tantas era como um alívio. Porém, o arrepio no alto do abdomem sempre era produzido em horas precisas: na cama, nos primeiros minutos do sono, no momento em que consciência e inconsciência parecem entrar em sintonia ou, no mínimo, numa indistição. Aqueles momentos em que ora falta o chão, ora temos com que asas de Ícaro a derreter pelo sol dos sonhos, ora nos retorcemos como que a procurar o amor ausente. Mas a sensação era pontiaguda, uma flechada intoxicante, cujos odores de veneno eram mais fortes do que os perfumes de damas da noite oníricas.
De que se tratava? Quem além de mim sentia aquilo? O que sentia? Talvez, e hoje caminhando pensava em respostas para a sensação, essa sensação biológica pudesse ser tão somente o reflexo da agudeza de saber-se finito. O momento da dor, do incômodo, da angústia consciente-inconsciente é um átimo no qual a finitude transpassa a carne, em que sabemos (e talvez como diria João da Cruz: um entender não entendendo, toda ciência transcendendo) o ser mortal que nos habita ou o ser mortal que habitamos ou a morte que habita nossa vida. É quase tão inexplicável quanto o é a vida: espontânea, gratuita, fortuita. A sensação aguda de finitude é um algo desses momentos insólitos, é um algo que aparece e faz palpitar o coração no ritmo alucinado das vozes do mundo que estão do lado de fora da janela, que faz com que a fissura entre consciência e inconsciência seja apenas uma criação à toa para recobrir a crueza da mecânica dos movimentos cotidianos. Acho que é algo que surge quando a obscenidade da vida entra em cena: morte, a dama que zela pelo momento oportuno.
Talvez a voz tônica e suave de Nina Simone cantando I wish I could break all the chains holding me possa ser uma imagem do grito impossível de ser dado no momento em que a sensação crônica da finitude me assalta. Porém, esse sonho de liberdade infinita talvez seja a fantasia criadora do instante em que o coração se acelera e o despertar do umbral em que não sabemos mais o que é saber e não-saber nada mais seria do que o gesto gratuito do existir com o qual não deveríamos nos angustiar, mas nos deixar levar pelo seu suave embalo finito.

Imagem: Andrea Mantegna. San Sebastiano, 1506. Galleria Franchetti, Ca d´Oro, Venezia.

sábado, 18 de junho de 2011

Imagens de mulher



"Confesso que uma boa parte desta minha incipiente diligência cultural baseava-se no interesse pela mulher, que remontava a tempos recuados da minha infância. Não me contentando em ver mulheres no meu ambiente queria ainda ter ao menos imagens fotográficas de mulheres de outros países e outras épocas. Tratava-se não somente da fascinação pela mulher nua ou seminua, embora estas frequentassem minha imaginação: era a mulher na variedade dos seus tipos, sua forma, sua indumentária. Um relevo especial mereciam as fotografias de cantoras, artistas dramáticas, vestidas à grega, à romana, à oriental e à moda do Império. Lamentava também que a fotografia tivesse sido inventada tão tarde. Como seria por exemplo Ruth? Raquel? Semíramis? A rainha de Sabá? Cleópatra?"
Às imagens femininas de Murilo talvez pudesse contrapor as minhas. A Rainha de Sabá de Piero della Francesca na Basílica de São Francisco em Arezzo, as três graças de Rafael, as mulheres da primavera de Botticelli, até mesmo elucubrações sobre a Femme 100 têtes de Ernst... mas também Marilyn (como esquecer-se dela), as passantes dos cruzamentos, as desconhecidas de fotografias desconhecidas, as imaginadas donne de festas secretas, as iluminadas mulheres de salões de baile, a mais próxima vizinha, a queridinha da turma de quarta série, a evangélica travestida de diabinha na festa à fantasia. Todas as intermináveis formas e contra-formas, todas suas curvas em meio às turbas, todo o vento a agitar suas cabeleiras. Uma sublime forma que também pode ser abjeta (de mãos dadas: sublime-abjeto), uma imagem que pode ser um espectro, uma dama que pode ser da noite, uma beleza que pode ser mordaz.
Deus, o primeiro surrealista, cria a mulher no sonho de Adão, sopra-lhe vida durante o sonho e, quando ela desperta, sugere-lhe movimentos que causam inveja à serpente. Aliás, sempre pensei que a história da maçã era uma vingança da serpente em relação à mulher. A serpente ganhou o verbo "serpentear" que nomeia o movimento, mas o movimento primeiro tinha sido executado pela mulher. Penso que a brisa que os mínimos gestos femininos deixavam como rastro em seus "serpenteares" gerou a primeira separação da humanidade dos outros animais justamente na ira da serpente. Este ser sem charme, e que tentava em vão com seus movimentos colher a beleza da mulher, por inveja ilude Eva com um fruto. No entanto, e eis a honestidade - nunca comentada - da serpente, realmente tal fruto deu ao homem e à mulher o conhecimento do bem e do mal. A expulsão do paraíso, portanto, surge como o primeiro brinde entre homem e mulher. Sim, comemos do fruto da sabedoria, descobrimos o pecado e passamos a cobrir o que chamamos de partes pudicas. Mas, com isso, o que o deus judaico-cristão queria indiretamente punir acabou muito mais belo: a sensualidade feminina.
Desde antes dos tempos, desde antes da história, havia, portanto, um "serpentear" insolente e delicioso, um "algo" capaz de dar o poder de tomar consciência de si sem susto, isso que na cabeça de Walter Benjamin significava ser feliz. Talvez o "serpentear" seja a matriz de um prisma que decompõe a luz no seu espectro de cores, que dê a ver, portanto, o mundo invisível, que ilustre os pensamentos com as ideias divinas e femininas, com a fugacidade e frugalidade dos deliciosos perfumes que do corpo feminino exalam. Acho que a Musa (o logarítimo das mulheres de todos os tempos) é, de certo modo, a mulher desses gestos, dessas brisas que me chegam desses tempos imemoriais, dessas imagens do despertar da dúvida infindável, do conhecimento do corpo e do pecado, do deslumbre e desvelamento dos céus e dos infernos. Não há como não esboçar um sorriso matreiro diante disso; não há como não concordar com Murilo: "Se o homem está dividido dentro de si mesmo, como não o estará ante uma mulher?" Enfim, diante de um serpentear não há como permanecer inerte: no princípio era o movimento, e o movimento era o feminino.

Imagem: Botticelli. Primavera. 1478. Galleria degli Uffizi, Firenze.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

O campo do possível


"Oh, cara alma, não aspire a vida imortal,/ mas saiba explorar o campo do possível!" Logo na primeira frase lida naquele dia, arrebentava na minha face, como as ondas de uma ressaca numa costa pedregosa, algo como um escarro: saiba explorar o campo do possível. O que, caro Píndaro, poderia eu fazer senão ficar aflito diante do seu conselho!? Porém, detive-me naquilo que me parecia um descuido do poeta: como saber explorar!? Não se sabe explorar, simplesmente explora-se. Aliás, ao definirmos o campo do possível já estaríamos delimitando seus limites e o possível passaria a ser restrito às possibilidades, estas que, por sua vez, seriam regidas por uma lógica exclusivo-disjuntiva (A ou B), de modo que o possível seria apenas matéria de escolha, de uma decisão mediante o melhor juízo (e isso é muito kantiano para mim).
Explorar um campo tinha que ter a ver com o mergulho num desconhecido, era nisso que eu pensava. Lembro mais uma vez das cartas marítimas com a máxima latina non plus ultra (que também estava em Píndaro): não ultrapasse, pois a partir daí está o desconhecido ou o fim. Claro que ultrapassaram e aqui estamos! Como fazer do desconhecido um campo do possível? Tal era a minha questão. Confesso (com pesar) que me senti tautológico, que isso tudo me parecia uma grande bobagem, um imiscuir-se em filigranas sobre como agir na vida, uma pura especulação, já que a questão era agir. No entanto, era tarde para cair nesse conto. Seria como tentar fazer com que o cadáver entrasse em cena para pedir ao messias para que dele se lembre no reino dos céus - como quando o personagem do diretor (protagonizado por um grande diretor: Orson Welles, e aqui a paródia é sensacional), no filme La Ricotta de Pasolini, olhando para o bom ladrão na cruz ordena "ação!", "ação! vamos, Stracci, quando estiver no Reino dos céus..." e nada acontece, pois o ator tinha morrido pouco antes, já dependurado.
"Há esperança? Não para nós...". E agora era essa lembrança da conversa de Kafka com Janouch que me parecia a maneira mais apropriada para não recair (decair? Seria esta palavra carregada da teologia cristã mais apropriada?) no conto da não tautologia (essa constante na vida pragmática e lógica do mundo da produção em série - produção essa de artefatos e gente). Não conseguia não pensar a respeito de como agir e justamente essa era a medida máxima do meu agir. Não havia, portanto, esperança... Estava apenas tentando analisar - caminho sem volta - as ferrugens da máquina do mundo, tentando ver, além das possibilidades, o possível. As possibilidades são como o campo no qual não me resta mais que necessariamente fazer algo, isto é, a escolha, a partir de um cálculo de juízo, por uma maneira de agir; o possível o campo no qual posso simplesmente, ou seja, onde posso também não fazer.
Hoje, parece que não nos resta o desconhecido como campo do possível. Tudo no mundo das visibilidades e do espetáculo integrado é já dado; e diante desse tudo é-nos facultada uma escolha (caso vivamos em um regime dito democrático) ou é-nos selecionada a melhor opção pelos mais dignos de escolha (caso estejamos num dito regime ditatorial). Parece-me que quando o campo do possível vira campo das possibilidades - e nada mais corrente hoje do que a ideia de que o homem contemporâneo pode tudo, e nesse sentido as imagens publicitárias são como os ícones dessa nova religião - tolhe-se a noção de que existe um desconhecido em meio ao qual estamos imersos (essa dimensão do que não podemos e a respeito da qual nos é interdito o saber) e que é somente por uma relação direta com ele, isto é, explorando-o, que poderemos ter acesso a uma vida que também pode não fazer, que pode não escolher, que pode explorar o campo sem saber de antemão quais os caminhos da exploração.
Quanto à vida imortal... bem, minha cara alma, não a aspiro, mesmo sabendo que também hei de penar não na vida ou morte eternas, mas na vida que explora, sem previamente o saber, um campo do possível.

Imagem: Jacopo Pontormo, Deposizione, 1528. Chiesa di Santa Felicita, Firenze. (Escolho essa imagem em homenagem a Pier Paolo Pasolini)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Um riso


Acordou no meio da noite com dores no estômago. Pôs-se a pensar o que poderia ter sido o causador: o peixe, as algas, os frutos do mar, o arroz, a salada de pepinos... Levantou-se ainda bêbado de sono pronto para tomar um remédio. A noite estava fria e ele intrigado com a dor que não lhe deixava em paz. No caminho do quarto até a cozinha, onde estava sua caixa de medicamentos, observou que no apartamento vizinho havia uma luz acesa, o que era pouco comum para aquela hora. Imaginou o que por lá se passava; tentou aproveitar-se do silêncio noturno para tentar escutar algo; tudo em vão. Sentou-se no sofá com o copo de água numa das mãos e a pílula para gastrite na outra. O que lhe causara tamanha dor?
Ligou a TV, o que fazia muito raramente, e começou o zapping para ver se encontrava alguma coisa que poderia lhe entreter. Alguns dos canais já estavam exibindo apenas a névoa televisiva, outros já com as listras coloridas e o relógio digital no canto inferior direito, até que, por acaso, encontrou um filme (numa dessas sessões "corujão") que há muito tinha visto. Não se lembrava do nome, não se lembrava do roteiro, mas sabia que o tinha visto. O esquecimento do filme não lhe causara grandes sensações - já estava um pouco acostumado a esquecer das coisas -, até o momento em que uma das protagonistas dá uma risada que lhe atinge em cheio o estômago dolorido. Agora sabia: não tinha sido a comida do jantar que lhe havia feito mal, mas aquela risada de despedida da sua companheira de refeição. Ele, que imaginava conhecê-la muito bem, naquela noite, surpreendeu-se com aquela risada estapafúrdia, arredia e despropositada. Era como uma chacota com luvas de pelica, como uma agressão no tom mais eufêmico, porém, mais doloroso (uma daquelas ironias mordazes comuns aos algozes em qualquer "rito confessional"). Entretanto, por que no momento da despedida não sentiu nenhum tipo de dor, nenhum tipo de agressão naquela risada? Por que só agora, depois de horas, é que, ao ver uma imagem de uma mulher qualquer de um filme qualquer, tinha certeza de que a dor de estômago provinha daquela risada que imaginava conhecer tão bem?
Espantado com a descoberta, folheou algumas das cartas que com aquela companheira havia trocado tentando encontrar nelas um outro riso daquela mulher, um riso-antídoto para aquele de há pouco. Tudo em vão. A dor aumentava e nada do que lia parecia remediar a situação. Ao contrário, agora para ele todos os risos que se podiam entrever naquelas linhas lhe pareciam sarcásticos demais. Fulminado pela dor - tanto a que lhe atingia o estômago, como a que provinha da recém descoberta da sua ingenuidade diante do sarcasmo - abriu então os álbuns de fotografias nos quais ambos estavam juntos. E para sua surpresa também ali não conseguiu enxergar nela nenhum sorriso livre do tom daquele de depois do jantar. Fechou os álbuns, desligou a TV, guardou as cartas e tentou, sem mais nada à mão, fechar os olhos e imaginá-la: absorto pelas formas das imagens do pensamento, sentiu que a dor de estômago se aplacava, que o sono estava voltando e que o sorriso dela tinha tomado os tons singelos e atraentes de tempos outros: não havia mais sarcasmo, não havia mais agressão. No entanto, acabou por se dar conta de que todos aqueles sorrisos, os sarcásticos quanto os ternos, não eram senão trapaças: trapaças do jogo das sensações e das reminiscências, daquilo que foi vivido e do que se imaginou que viveu, do que é a todo instante lembrado e do que é para todo o sempre esquecido - ainda que um tal esquecimento possa sempre estar presente na boca do estômago.

Imagem: Eve Arnold. Foto da atriz Joan Crawford em 1959, Los Angeles, EUA.

domingo, 12 de junho de 2011

Nota sobre um pôr do sol



O pôr do sol estava realmente lindo: o tom empalidecido pela proximidade do inverno, as montanhas atrás das quais ele iria se esconder, o mar calmo, as insinuações de nuvens. Eu andava à procura de um texto que havia perdido ali à beira-mar. Porém, acho que não o encontrei. Pensando bem, talvez tenha encontrado alguns pedaços dele, mas já me é impossível transcrevê-los, e penso que o perdi definitivamente. A luz do sol era-me um guia na busca, mas mesmo assim de nada me adiantou. Deixei a busca e comecei a prestar atenção na movimentação à minha volta: todos pareciam querer apreender aquele pôr do sol magnífico; pessoas que retiravam câmeras fotográficas na esperança de guardar aquele momento, como que querendo emoldurar aquele disco luminoso (e, talvez, muitos nem mesmo verão aquelas fotos, as quais poderão ficar perdidas nas memórias de aparelhos celulares para um dia serem apagadas indistintamente para para liberação de espaço na memória no aparelho).
Comecei a pensar em como o sol atrai o homem desde sempre; em como mitos e religiões foram formados diante da imagem solar; em como civilizações se formaram e se extinguiram sob essa luz. Ainda ali, à beira-mar, lembrei-me de uma história solar que sempre me impressionava: aquela pequena medalha de bronze incrustrada num canto do piso da catedral de Chartres. Todo solstício de verão a luz do sol passa por um ponto específico do vitral de Saint Apollinaire e ilumina a medalha no chão. Todo o jogo entre o sol, a catedral, a religião, a construção milimetricamente calculada para a convergência da luz naquele pequeno ponto e o vitral de Apolinário - nome que, de certo modo, é uma variação de Apollo, o deus romano do sol - causava-me certo embaraço, certa sensação de pequenez. E, naquele momento, as câmeras que insistentemente tentavam capturar aquela imagem me pareciam também uma espécie de dedicação religiosa, de exercício de reencontro com uma espécie de força sagrada que emanaria de todo o existente.
Discussões e condenações, mortes e cismas, muito se fez e se desfez sob a luz do sol. O nome Apolinário, que agora me tomava, fez-me lembrar também de um dia frio e sem sol. Era o dia em que entrei na basílica de Sant'Apollinare Nuovo. O espaço frio daquela igreja dava, porém, mostras da beleza daqueles mosaicos em ouro, a única coisa de brilho luminoso naquelas horas. A igreja, que teve ordem de construção dada por Teodorico, foi primeiramente um lugar de culto ariano e só depois, sob ordens do imperador Giustiniano é que passou a ser de culto católico. Imaginei como os debates sobre a natureza divina ou não do Cristo foram também em grande medida influenciadas pelas ideias pagãs (e, com isso, pelo deus solar); pensei em como o imperador havia tomado aquela igreja em Ravenna e em como, tentando recompor o Império, procurou um modo de organizá-lo (e o Corpus Iuris Civilis surge assim dessa empreitada do Oriente no Ocidente para neste fixar suas raízes); pensei nas guerras, nas disputas teológicas, nos embates por território, nas capacidades infindáveis de violência do homem, mas era a prótese de som das máquinas fotográficas (aquela tentativa de imitação do som do mecanismo das antigas Polaróides que os dispositivos eletrônicos tentam imitar) que me tomava a atenção. E me perguntava: como não ser melancólico diante da decrepitude histórica travestida de progresso? Como encarar a tarefa de viver num mundo no qual pouco importam as histórias ou as maneiras de se relacionar entre as pessoas, mas tão somente o como possuir coisas (mercadorias) impossíveis de se possuir? Era, de fato, um momento em que pensava alhures, em que transpunha o mar sem saber bem onde estava, apenas me dando minimamente conta de que todos estamos imersos nesse jogo do possuir contemporâneo.
Enfim, talvez fosse hora de tentar transcrever aquele pedaço de texto encontrado; talvez devesse voltar a olhar para o chão para procurar os restos faltantes do texto; ou talvez fosse hora de deixar a caminhada e parar por um instante para contemplar a imagem do disco de fogo; talvez fosse hora de, como uma vez fez Murilo Mendes, sentar-se à beira-mar e ver, mais do que aquela pálida e bela luz do pôr do sol outonal, as luzes ambíguas que dançam e, nesse movimento, consultar os mitos e pedir às ondas que tragam as notícias de mim mesmo.

Imagem: vitral de Santo Apolinário em Chartres.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Som e fúria


Era o relógio de meu avô, e quando o ganhei de meu pai ele disse Estou lhe dando o mausoléu de toda esperança e todo desejo; é extremamente provável que você o use para lograr o reducto absurdum de toda experiência humana, que será tão pouco adaptado às suas necessidades individuais quanto foi às dele e às do pai dele. Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo o seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque jamais se ganha batalha alguma, ele disse. Nenhuma batalha sequer é lutada. O campo revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e néscios.


Willian Faulkner. O som e a fúria. (Trad. Paulo Henriques Brito). São Paulo: Cosac Naify, 2004.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Dos toques


Do caderno vermelho...

Tinha à minha frente um casal. Eram jovens, com toda pinta de estudantes de filosofia. Ele, com boina quadriculada, camisa xadrez com a gola sobre a blusa de lã, sapatos lustrosos, bolsa tiracolo, que poderia ter sido comprada em qualquer parte da América Latina, e a barba por fazer; ela, com um sobretudo vermelho, cabelos bagunçados e enrolados (com um aspecto inequívoco de quem vem das ilhas do Mediterrâneo), echarpe, tênis cano longo All Star. Um casal que se ambientava muito bem àquele meio (era um colóquio filosófico). O que me chamou a atenção nesse casal, no entanto, não foi tanto seu modo de se vestir, mas suas mãos. Sentados como estavam, ele à direita dela, deixavam suas mãos, como bons amantes, a se acariciar. Seus dedos se cruzavam, a palma da mão dele roçava a dela com os dedos estirados num movimento de vai e vem, num toque quase intocável, numa sensibilidade quase eufemista (aquela dos toques que quase não conseguimos sentir).
Na ocasião isso era algo que me fazia falta. E, de fato, o toque dos amantes é algo que sustenta uma espécie de amor dentro do amor (algo como uma noção de distanciamento - somos estranhos ao outro - dentro da proximidade - somos íntimos do outro - dos compartilhamentos quotidianos). Não se trata aqui do toque sexual, nem do toque dos lábios, circunscritos à esfera do que forma apenas dois, mas desse toque eufêmico das mãos, esse toque quase involuntário e que insufla, imperceptivelmente, uma proximidade quase visceral, ainda que as mãos sejam uma das coisas mais públicas - e, portanto, expostas - do corpo. E a sensação que provei ao perceber esse movimento em estranhos é prova disso. Senti-me íntimo daquele casal de jovens mesmo nunca os tendo visto e, provavelmente, mesmo que nunca mais os veja. E aquele toque estava aberto a um átimo de visão, a um golpe de vista em sentido literal, no qual a intimidade do amor se abriu ao público (e, talvez, somente eu era esse público no momento).
Às vezes sentimos falta dessa exposição (dessa publicização) de nossa intimidade amorosa; às vezes sentimos falta dos toques reveladores. Porém, não são todos os toques como esse que revelam essa estrutura comum-amorosa. Não têm necessariamente a ver com a relação amorosa em sentido romântico-sexual; isto é, toques que se dariam somente entre pares dispostos a uma intimidade biunívoca (de trocas recíprocas e exclusivas apenas entre dois). Tem a ver, isso sim, com uma disposição ao convívio, ao amor, à uma vida comum (em comum) que não quer dizer apenas proximidade física, mas uma proximidade genial (e, lembremos, genius era o deus latino ao qual todo homem era confiado no momento de seu nascimento) na qual colocamos em cena o nosso obsceno, o nosso guardião secreto; enfim, quando por meio do contato com o estranho damos a ver nossa disposição mais íntima.
Aquele casal que estava sentado à minha frente, portanto, com seus trejeitos e movimentos, mostrava-me, com o toque de suas mãos, essa genialidade que nunca está atrelada ao toque em si, mas à condição pública do amor, à imaterialidade das relações que se formam quase como naquele toque eufêmico de mãos, com seus arrepios e cócegas, com seus calores de proximidade mas também com a sensação de que é justamente nesse quase imperceptível contato que está o máximo de nosso com-viver.

Imagem: Leonard Freed. Martin Luther King sendo cumprimentado na sua volta aos EUA após receber o Prêmio Nobel. Baltimore. 1964.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Nosso guia no desfiladeiro




Roberto Bolaño



(...) Os escritores escrevem com as mão e com os olhos. Twain, velho e doente, descrente de tudo, inclusive de sua própria literatura, escreve com os pulsos e com os olhos, como se neles se concentrasse sua força de viajante permanente.

Mas esses não são os pulsos de Huckleberry Finn, são os de Tom Sawyer. E essa é a primeira desgraça de Mark Twain e também é nosso deleite, hipócritas leitores, porque parece certo que, se Twain se tivesse convertido em Huck em algum momento de sua vida desgraçada, certamente teria escrito nada ou quase nada, pois os meninos e os homens como Huck não escrevem, ocupados, saciados pela vida real, uma vida onde não se pescam baleias, e sim bagres no rio que divide os Estados Unidos em duas metades: para leste o crepúsculo, a civilização, o que procura desesperadamente ser história e ser historiado; para oeste, a claridade da cegueira e do mito, o que está além dos livros e da história, aquilo que interiormente mais tememos. De um lado a terra de Tom, que se aquietará, que inclusive pode ser que triunfe e que seguramente terá descendentes; do outro a terra de Huck, o selvagem, o preguiçoso, o filho de um alcoólatra e abusador, em suma, um órfão integral, que nunca triunfará e que desaparecerá sem deixar rastro, salvo na memória dos amigos, seus camaradas de desgraça, e na memória ardente de Twain.

Não, Mark Twain não sentia muito apreço pelos homens. Há uma página em As Aventuras de Huckleberry Finn que merece ser escrita com letras de ouro nas paredes de todos os botecos (e escolas) do mundo. Essa página prefigura metade da obra completa de Faulkner e metade da obra completa de Hemingway, e sobretudo prefigura o que ambos, Faulkner e Hemingway, quiseram ser. A página é simples. Narra um duelo e suas posteriores conseqüências. Começa com um bêbado cuja mania é insultar e ameaçar as pessoas. Uma manhã o bêbado vai insultar o comerciante do vilarejo.

"Boggs parou o cavalo na frente da maior loja da cidade, se abaixou para poder olhar por baixo da cortina do toldo, e depois gritou:"Pode ir saindo daí, Sherbun! Sai daí e vem pra rua enfrentar o homem que você roubou. É você que eu vim pegar, seu cachorro, e dessa vez você não me escapa". E continuou falando, xingando Sherbun de tudo que se lembrava, e foi juntando gente na rua para assistir, rindo e achando muita graça naquilo tudo. Depois de algum tempo, um sujeito todo empertigado de uns cinqüenta e cinco anos - e era de longe o homem mais bem vestido que eu vi naquela cidade - saiu da loja, a multidão abrindo alas para ele passar. E ele respondeu ao Boggs, falando devagar e com muita calma: "Já estou ficando cansado desta história, Boggs; mas vou deixar você falar o que quiser até dar uma hora. Mas só até dar uma hora, entendeu? - nem mais um minuto. Se você abrir a boca para dizer alguma coisa contra mim depois disso, pode ir se enfiar onde quiser pois eu vou acabar com você".

Depois Sherbun, que apenas algumas linhas atrás soubemos que é coronel, o velho coronel Sherbun, volta à loja, e Boggs segue circulando a cavalo pelo povoado e insultando-o a plenos pulmões. As pessoas já não dão risada. Quando volta à loja (onde não precisa mais abaixar a cabeça para saber que Sherbun está lá), Boggs segue com as ofensas. Alguns tentam acalmá-lo. Lembram que falta 15 para a uma. Mas Boggs não dá a mínima. Antes viu Huck Finn e lhe perguntou: "De onde você saiu, garoto? Está preparado para morrer?" Huck não responde. E agora algumas pessoas tentam convencer o bêbado a voltar para casa, mas Boggs "jogou o chapéu na lama, fez o cavalo passar por cima e depois saiu de novo pela rua, com o cabelo grisalho solto no vento", uma descrição que sem deixar de ser sórdida, como a situação merece, consegue ao mesmo tempo uma estatura épica, porque Twain sabe que toda a épica é sórdida, e que a única coisa que pode atenuar um pouco a imensa tristeza de toda épica é o humor. E assim Boggs segue para cima e para baixo xingando Sherbun, sem que ninguém consiga fazê-lo descer do cavalo, nem calar-se, até que alguém calha de pensar em sua filha, a única capaz de convencê-lo, e partem em busca da moça, e então Boggs desaparece por alguns minutos e, quando Huck volta a vê-lo, ele já está desmontado, segue a pé, não caminha com muita segurança, e dois amigos o carregam cada um por um braço: "Vinha calado, com ar de preocupação; e não estava resistindo aos amigos - até ajudava os dois a andar mais depressa". Então ouve-se uma voz que grita o nome de Boggs, todos se viram e lá está o coronel Sherbun, e Twain o descreve no meio da rua, quieto, com uma pistola erguida na mão direita, uma pistola que não aponta para ninguém, mas para o céu, como um duelista clássico, e então do outro lado da rua parece a filha de Boggs, mas Boggs e seus camaradas não a veem, estão virado para o outro lado, e a única coisa que veem é Sherbun com a pistola levantada, uma pistola com "os dois canos engatilhados", ou seja, uma pistola de duelista, uma pistola de duas balas, e os companheiros de Boggs se afastam, e só então a pistola de Sherbun abaixa e aponta para o pobre beberrão, e este chega a levantar as duas mãos em um gesto mais de súplica que de rendição e diz: "Oh, meu deus, não atire!", e imediatamente, sem transição nenhuma, se escuta o tiro e Boggs cambaleia para trás, "tentando se agarrar no vento", e Sherbun dispara outra vez, "e aí ele desaba de costas no chão". A partir deste momento, a cena é caótica: a filha de Boggs chora, a multidão se reúne em volta do agonizante, Sherbun jogou a pistola no chão "com ar displicente" e foi embora, as pessoas carregam Boggs até uma farmácia, o deitam no chão, colocam uma bíblia debaixo de sua cabeça e outra aberta, sobre seu peito, e então Boggs morre. E enquanto Boggs morre, as pessoas começam a falar, a comentar o assassinato, a dar suas versões, e depois de um tempo alguém, uma voz anônima em meio à multidão, diz que Sherbun devia ser linchado, e quase imediatamente todos concordam, todo o povo concorda, e todos se dirigem para a casa de Sherbun "furiosos, gritando, arrancando todas as cordas do varal que encontraram no caminho para usar no enforcamento."

E assim acaba o capítulo XXI, onde o leitor tem a sensação de estar assistindo a algo completamente real, não literário, ou seja, profundamente literário, um dos melhores capítulos de as Aventuras de Huckleberry Finn, e partir daí começa o capítulo XXII, em cujas primeiras páginas Twai fala com lucidez sobre o valor e sobre a massa, como se na véspera tivesse lido Massa e Poder de Canetti, e onde também fala sobre a solidão e sobre a dignidade mais desesperada do mundo, e onde Twain se traveste de capitão Ahab.

A cena é, no meio do caos de um linchamento, simples. A turba chega à casa de Sherbun. Há um pequeno jardim. A turba se instala, gritando ("eu nem conseguia ouvir meus próprios pensamentos") atrás da cerca. Alguém grita que derrubem a cerca. "E aí começou um verdadeiro pandemônio, todo mundo quebrando, arrancando e partindo as tábuas". Acabaram derrubando a cerca, e a linha de frente da multidão começou a entrar no jardim como se fosse uma onda."Só então aparece Sherbu. Ele está sobre o telhado do pórtico, segura uma espingarda de dois canos e está imóvel, "perfeitamente calmo e decidido", observando os que destroem sua cerca, que ao vê-lo lá no alto se mantêm, por sua vez, calados. Durante um momento, nada acontece. A imobilidade é perfeita. A turba embaixo e o coronel Sherbun em cima, olhando. Então Sherbun solta uma gargalhada e diz:

"Imagine só, vocês linchando alguém! Eu acho até engraçado. Vocês, achando que iam conseguir linchar um homem! Só porque têm coragem de cobrir de piche e pena as pobres mulheres perdidas que passam por aqui, sem ninguém para defender, acharam que iam ter tutano para botar as mãos num homem? Mesmo nas mãos de dez mil pessoas como vocês, um homem não corre perigo - se for dia claro e vocês não atacarem pelas costas.
"Se eu conheço vocês? Conheço bem até demais, de cabo a rabo. Nasci e fui criado no sul, mas já vivi no norte; e então eu conheço a média. O homem médio é sempre covarde. No norte, deixa qualquer um pisar nele. Depois volta para casa e vai rezar, pedindo a Deus que lhe dê humildade de espírito para suportar tudo aquilo. No sul, já vi um sujeito sozinho parar uma diligência cheia de homens, à luz do dia, e roubar um por um. Os jornais daqui vivem dizendo que vocês são um punhado de bravos, e falam tanto que vocês acabaram acreditando, que eram mesmo mais corajosos que qualquer um - mas na verdade são iguais a todo mundo, não são mais corajosos que ninguém. Por que os júris daqui não mandam enforcar os assassinos? Porque todo mundo fica com medo de tomar um tiro pelas costas, dado de noite por algum amigo do criminoso - exatamente o tipo de coisa que eles fazem.
"E sempre acabam absolvendo o acusado; então vem um homem e sai no meio multidão, com cem covardes mascarados atrás, e acabam linchando o bandido. O erro de vocês foi que não trouxeram homem nenhum; esse foi o primeiro erro, e o segundo foi não ter vindo de noite, e sem trazer as máscaras. Vocês só trouxeram parte de um homem - Buck Harkness, que está ali - e se não fosse por ele para começar alguma coisa, não ia acontecer nada.
"Na verdade, vocês nem queriam vir. O homem médio não gosta de se meter em problemas, e nem de correr perigo. Vocês não gostam de problemas e nem do perigo. Mas basta meio homem - como Buck Harkness, que está ali - gritar "Lincha! Lincha!" para vocês ficarem com medo de recuar - medo de alguém descobrir como é que vocês são na verdade - um bando de covardes - e aí começam a berrar, se penduram no rabo do paletó do meio-homem e vêm até aqui, no maior tumulto, dizendo que vão fazer muita coisa. A coisa mais triste que pode existir é a multidão, e o exército é isso – uma multidão; ninguém está lutando porque tem coragem própria, mas com uma coragem que vem de serem muitos e dos oficiais. Mas a multidão que não é comandada por um homem é coisa tão triste que nem merece pena. Agora, vocês tem é que enfiar o rabo entre as pernas, voltar para casa e ir arranjar um buraco para se esconder. Se algum linchamento for mesmo acontecer aqui, vai ser no meio da noite, à moda do sul; e quando vierem vão estar de máscara, e vão arranjar um homem para trazer. Agora fora daqui – e podem levar este meio-homem com vocês!” - E ao mesmo tempo apoiou o cano da espingarda no braço esquerdo e engatilhou, os dois cano da arma. A multidão recuou na mesma hora, depois se desmanchou e cada um saiu correndo para um lado.

Não há dúvida de que Mark Twain não tinha em grande estima o valor das pessoas. Conhecia e podia distinguir os covardes onde os visse. Não tinha opinião melhor de seus colegas escritores, em quem sentia o aroma da impostura. O coronel Sherbun, que é um homem paciente, também é um assassino que não treme na hora de matar um bêbado fanfarrão que levanta as mãos no instante da morte ("Oh, meu deus, não me mate"), como se tudo tivesse sido brincadeira, uma representação teatral que foi longe demais. Sherbun padece de uma certa inflexibilidade que hoje consideraríamos politicamente incorreta. Mas é um homem e se comporta como tal, enquanto os demais se comportam como massa, os que pretendem linchá-lo, ou como atores, o desafortunado Boggs, disposto a recitar seu papel, mas não a cumprir sua palavra, o mesmo Boggs que, sem descer do cavalo, perguntou a Huck: "De onde é que você saiu garoto? Está preparado para morrer?".

Twain sempre esteve pronto para morrer. Só assim entendemos seu humor.




Trecho do ensaio escrito como prefácio à tradução de “As aventuras de Huckleberry Finn”, publicado pela Biblioteca Universal del Círculo de Leitores. In: Serrote, n. 6. São Paulo: IMS, novembro de 2010. pp. 75-79. Trad. Chico Mattoso.

domingo, 5 de junho de 2011

Sobre reflexos e sombras



De vez em quando certos cheiros que não sinto desde criança retornam, não ao nariz, como um cheiro propriamente dito, mas ao cérebro do nariz; cheiros vagos e precisos ao mesmo tempo: cheiro de outono; de certas lojas; cheiro de começo de inverno, de início do frio: o primeiro fogo em casa, as luzes a partir das cinco da tarde. A estufa de metal, acesa pela primeira vez, tinha um cheiro peculiar, também porque a superfície fora untada para evitar a ferrugem. E sempre o cheiro do lampião a querosene.
Gosto muito de sentir de novo esse cheiro, mas não é possível evocá-lo por um esforço de vontade. Mesmo assim, de vez em quando acontece que, de repente, por alguma razão misteriosa, a memória desse cheiro retorna.
Nada do que é depositado na memória se perde, ela é um computador que continua acumulando dados a vida inteira, dados que nem sempre se utilizam, porque o homem muitas vezes parece um transatlântico que navega com apenas uma cabine ocupada. Deveríamos conseguir usar continuamente esse imenso acúmulo de dados, mantê-los em exercício, combiná-los entre si, multiplicá-los, reintroduzi-los no curso de nossos pensamentos. Como no caso do retorno desses cheiros, depositados há tantos anos na memória e agora ressuscitados. Talvez eu tenha a sorte de encontrar mais coisas que agora me parecem esquecidas. Gostaria de poder voltar atrás e ver tudo que em algum momento armazenei, mas não percebi, andar atrás de mim mesmo quando tinha dez anos e avaliar, com a cabeça de agora, as condições em que vivia: descobrindo o que então, sem que eu soubesse, ia se depositando no computador.
Tenho muito interesse pelo período logo antes do meu nascimento e fico triste por não tê-lo visto. Tenho a impressão de que, com algum esforço da vontade, poderia revê-lo. É uma época tão próxima de mim que tenho a sensação de conhecê-la bem e me enterneço quando penso nisso. Talvez porque meus pais fossem jovens, não se conhecessem.

Saul Steinberg. Reflexos e Sombras. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011. Trad. Samuel Titan Jr. pp. 14-16.

Imagem: Saul Steinberg. Girl in Bathtub, 1949.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Nota sobre um estranhamento familiar



O lugar era-me completamente desconhecido; jamais passara por ali. Li, no frontispício de uma guarita (dessas por aqui tão comuns, cheias de seguranças engravatados que possivelmente pegam seus trens de final de expediente para dormir nas bordas insólitas desta cidade), o nome Highlands. A sensação de estranhamento se agravou quando, no instante mesmo em que lia, o perfume de uma dama da noite tomou meu pensamento. Corri os olhos por aquelas imagens estranhas para tentar encontrar com minha visão o que meu olfato já havia encontrado - e o descompasso entre os sentidos era mais um alento para meu sentimento de estranhamento: é o corpo nos dando mostras do descontínuo enquanto o pensamento, este tolo, inventa a continuidade.
As histórias são entrecortadas e o Highlands que acabava de ler já não era o mesmo das placas de sinalização naquele ônibus frio e abarrotado que, entretanto, era o portador de desconhecidos para rumos desconhecidos e desejados, para histórias em meio a uma terra ignota mas já vista e revista no imaginário. Agora eu também estava em um certo tipo de terras altas, mas estas eram de um outro tipo, de uma outra espécie: não palpável, não visível, não olfativa e silenciosa. Era um desarranjo, uma peripécia desta faculdade intelectiva-sensorial para a qual damos o nome de memória. A dama da noite, porém, continuava escondida. Deixei de procurá-la e continuei no meu trajeto por aquela rua de nome estranho no bairro montanhoso desta cidade estranha. A impressão do cheiro da dama da noite nada tinha a ver com a viagem para as proximidades das Highlands; tampouco a cidade estranha se assemelhava à cidade da viagem passada. Entretanto, as conexões estavam possíveis nos cruzamentos sensoriais e imaginativos.
A noite continuava a descer seu véu sobre os espaços por mim jamais percorridos, porém as imagens que via, os sons que ouvia e os cheiros que sentia encontravam suas histórias em mim: eram elas, as sensações, que me encontravam (que brotavam no meu corpo de maneira espontânea, sem que eu pudesse me dar minimamente conta do que eram e de como se arranjavam nesta conexão de corpo e palavra que é o sujeito), não eu (este espaço vazio da enunciação discursiva) que as encontrava em mim... e agora toda esta história me fez lembrar do espanto que Freud teve ao se dar conta de que o senhor de chapéu que, naquele vagão de trem, parecia fitar-lhe era seu próprio reflexo num espelho (e lembrei que foi a partir disso que o psicanalista desenvolve seu conceito de Unheimlich, isso é, o estranhamente familiar). E acho que o esquecimento de si - por mais ínfimo que seja seu tempo de duração - e os esquecimentos das situações pelas quais esse "si" passou (ou não, pois acho que esquecemos até mesmo o que não vivemos) são os pressupostos fundamentais desses desencontros de sensações e memórias.
Talvez a pequena caminhada de fim de tarde nesta cidade estranha seja um estranhamento familiar dos meus sentidos em relação ao meu corpo; talvez toda a desconexão entre os sentidos, o pensado e o enunciado seja uma estranha consequência de impressões outras, de lembranças de coisas que nunca aconteceram - e lembro inevitavelmente do tom sombrio da canção de Mark Sandman e também de outra canção sua em que pensa numa cura para toda dor. Delírio? Pode ser, mas, enfim, também estas palavras vãs podem não passar de delírios.
Talvez encontros e desencontros de pessoas e gestos, de sensações e sentimentos, de lembranças e esquecimentos, sejam apenas o movimento mais banal de qualquer caminhada de fim de tarde para o qual não damos atenção, mas que uma dama da noite qualquer pode, de repente, dar um toque perfumado.

Imagem: René Magritte. L'Empire des Lumières. 1954. Peggy Guggenheim Collection, Venezia.