Depois de se ter anunciado a morte de Deus, eis agora que se nos anuncia a morte do homem. Basta folhear o recente (e notável) livro de Michel Foucault, As palavras e as coisas, para dar-se conta de que por trás da morte do homem, que se nos profetiza, há, no fundo, a morte do Sistema. Pessoalmente jamais lutei pela sobrevivência de um sistema no qual tantas coisas desagradam a mim e - disso estou certo - também a todos vocês. Digo isso para sugerir que o poeta, ou melhor, a poesia atual está profundamente engajada numa luta terrível: "o combate espiritual é tão brutal quanto a batalha dos homens", disse Rimbaud. Ora, a batalha do poeta passa-se sempre no nível da linguagem. O drama atual consiste exatamente em ser a linguagem poética, o Verbo que criou o mundo, ameaçada de destruição. O homem, que deve repetir a operação grandiosa, a operação inicial que consiste em separar a luz das sombras, é, talvez, condenado a ver perecer essa própria luz.
De modo algum creio na potência do poeta hoje enquanto ordenador do sagrado, pois estamos instalados na dessacralização total, isto é, na desintegração dos signos de amor. Pelo fato de a linguagem ter sido deformada, o drama do poeta se confunde com aquele do homem. Não se sabe mais hoje o valor exato das palavras. Em diversos setores se nos propõe a destruição da linguagem aristotélica. Estou de acordo, ao menos em parte, pois uma tal linguagem corresponde a conceitos ultrapassados. E o que é formidável no nosso mundo atual é que tudo está aí para ser reconstruído. É absolutamente preciso reconstruir a linguagem. E isso jamais será obra de um só homem. Temos perto de nós o exemplo de Mallarmé quem, não obstante tudo o que trouxe de maravilhoso, teve consciência de sua derrota. Assim, na véspera de sua morte, escrevia para sua mulher e sua filha Geneviève: "E, no entanto, era tão belo!" aquilo que ele quisera fazer, o Livro Órfico da revelação cósmica, o livro da terra. Pois nós estamos engajados, nós estamos na terra. Nossa linguagem deve ser, portanto, uma linguagem concreta, baseada em valores racionais e de acordo com todas as possibilidades do mundo atual.
A distinção entre a poesia dita gratuita e a poesia "engajada" não tem muito mais de sentido já que o poeta, a partir o momento em que toma consciência de sua condição de poeta, está "ex-officio" engajado no drama humano e, de todo modo, evidentemente, no drama da linguagem, que é aquele do homem. Mas, como eu dizia, não creio absolutamente no poder do poeta, creio muito mais na sua impotência. Alegro-me em saber que na Rússia soviética, nos Estados Unidos, na França e talvez em outros países, há uma comunicação do poeta com a massa. Mas me pergunto se essa comunicação tem possibilidades de sobrevivência, se as poucas centenas ou milhares de pessoas que nas grandes assembleias, nos estádios, escutam a voz dos poetas se lembrarão disso em duas ou três semanas.
Acho que o poeta é um ser obscuro e aberto. Isto é, ele não se conhece muito bem, ele se torna um enigma para si mesmo e, mais do que os outros, tem consciência do grande enigma do mundo inicial e final. Lautréamont escreveu que a poesia deve ser feita para todos, mas não disse que ela deve ser escrita por todos. Eu creio, contudo, que todo homem carrega o gérmen da poesia e que cabe ao poeta manifestá-la mais claramente.
Quanto à tese do poeta como instaurador de novos mitos, é preciso dizer que nisso creio. Há uma enormidade de mitos atuais que, aliás, como todos vocês, eu rejeito: o mito das classes, o mito nacionalista ou racista que conduziram o mundo ao drama que nós sabemos. Mas o poeta, ele, pode dar uma outra dimensão aos grandes mitos da humanidade. Aqui, por exemplo, no âmbito dessa magnífica exposição, está todo o testemunho em favor do poder do homem que cria sem intervenção dos deuses, tal como o fez Prometeu, o arrebatador do fogo celeste. É verdade que, desde então, o abutre sempre lhe roeu o fígado e todo poeta terá esse abutre para lhe roer sem trégua. Isso quer dizer que mesmo que ele consiga abolir totalmente a transcendência, o homem estará sempre inquieto.
Falei da impotência do poeta de hoje pensando, sobretudo, na guerra que assombra a todos. A guerra não está mais ou menos longe. Ela não está no sudeste asiático. Ela está em nós, no nosso quarto e ela nos dá má consciência. Os chefes das grandes religiões, os poetas, os jovens protestantes e eu mesmo a fizemos e continuaremos a fazê-la. Mas o que há de terrível é que nosso esforço seja quase vão. Vemos cada dia mais os exércitos aumentar suas potências e com isso ficarem orgulhosos. E acho que isso é aterrorizante, desencorajador. Assim, para terminar estas palavras improvisadas, quero expressar um desejo talvez utópico mas essencial: que o mundo possa ver um dia a destruição de todas as tiranias, sejam de esquerda ou de direita, e a instauração da paz e da fraternidade universais.
Texto improvisado e proferido em francês por Murilo Mendes no "Encontro Internacional de Poesia", em Montréal, em setembro de 1967. O texto está incluído em Papiers, presente na organização feita por Luciana Stegagno Picchio: Murilo Mendes. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. pp. 1593 - 1595. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.
Imagem: Pieter Paul Rubens. Prometeu acorrentado. 1610-11, Museum of Art, Philadelphia.
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