"Confesso que uma boa parte desta minha incipiente diligência cultural baseava-se no interesse pela mulher, que remontava a tempos recuados da minha infância. Não me contentando em ver mulheres no meu ambiente queria ainda ter ao menos imagens fotográficas de mulheres de outros países e outras épocas. Tratava-se não somente da fascinação pela mulher nua ou seminua, embora estas frequentassem minha imaginação: era a mulher na variedade dos seus tipos, sua forma, sua indumentária. Um relevo especial mereciam as fotografias de cantoras, artistas dramáticas, vestidas à grega, à romana, à oriental e à moda do Império. Lamentava também que a fotografia tivesse sido inventada tão tarde. Como seria por exemplo Ruth? Raquel? Semíramis? A rainha de Sabá? Cleópatra?"
Às imagens femininas de Murilo talvez pudesse contrapor as minhas. A Rainha de Sabá de Piero della Francesca na Basílica de São Francisco em Arezzo, as três graças de Rafael, as mulheres da primavera de Botticelli, até mesmo elucubrações sobre a Femme 100 têtes de Ernst... mas também Marilyn (como esquecer-se dela), as passantes dos cruzamentos, as desconhecidas de fotografias desconhecidas, as imaginadas donne de festas secretas, as iluminadas mulheres de salões de baile, a mais próxima vizinha, a queridinha da turma de quarta série, a evangélica travestida de diabinha na festa à fantasia. Todas as intermináveis formas e contra-formas, todas suas curvas em meio às turbas, todo o vento a agitar suas cabeleiras. Uma sublime forma que também pode ser abjeta (de mãos dadas: sublime-abjeto), uma imagem que pode ser um espectro, uma dama que pode ser da noite, uma beleza que pode ser mordaz.
Deus, o primeiro surrealista, cria a mulher no sonho de Adão, sopra-lhe vida durante o sonho e, quando ela desperta, sugere-lhe movimentos que causam inveja à serpente. Aliás, sempre pensei que a história da maçã era uma vingança da serpente em relação à mulher. A serpente ganhou o verbo "serpentear" que nomeia o movimento, mas o movimento primeiro tinha sido executado pela mulher. Penso que a brisa que os mínimos gestos femininos deixavam como rastro em seus "serpenteares" gerou a primeira separação da humanidade dos outros animais justamente na ira da serpente. Este ser sem charme, e que tentava em vão com seus movimentos colher a beleza da mulher, por inveja ilude Eva com um fruto. No entanto, e eis a honestidade - nunca comentada - da serpente, realmente tal fruto deu ao homem e à mulher o conhecimento do bem e do mal. A expulsão do paraíso, portanto, surge como o primeiro brinde entre homem e mulher. Sim, comemos do fruto da sabedoria, descobrimos o pecado e passamos a cobrir o que chamamos de partes pudicas. Mas, com isso, o que o deus judaico-cristão queria indiretamente punir acabou muito mais belo: a sensualidade feminina.
Desde antes dos tempos, desde antes da história, havia, portanto, um "serpentear" insolente e delicioso, um "algo" capaz de dar o poder de tomar consciência de si sem susto, isso que na cabeça de Walter Benjamin significava ser feliz. Talvez o "serpentear" seja a matriz de um prisma que decompõe a luz no seu espectro de cores, que dê a ver, portanto, o mundo invisível, que ilustre os pensamentos com as ideias divinas e femininas, com a fugacidade e frugalidade dos deliciosos perfumes que do corpo feminino exalam. Acho que a Musa (o logarítimo das mulheres de todos os tempos) é, de certo modo, a mulher desses gestos, dessas brisas que me chegam desses tempos imemoriais, dessas imagens do despertar da dúvida infindável, do conhecimento do corpo e do pecado, do deslumbre e desvelamento dos céus e dos infernos. Não há como não esboçar um sorriso matreiro diante disso; não há como não concordar com Murilo: "Se o homem está dividido dentro de si mesmo, como não o estará ante uma mulher?" Enfim, diante de um serpentear não há como permanecer inerte: no princípio era o movimento, e o movimento era o feminino.
Imagem: Botticelli. Primavera. 1478. Galleria degli Uffizi, Firenze.
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