Do caderno vermelho...
Tinha à minha frente um casal. Eram jovens, com toda pinta de estudantes de filosofia. Ele, com boina quadriculada, camisa xadrez com a gola sobre a blusa de lã, sapatos lustrosos, bolsa tiracolo, que poderia ter sido comprada em qualquer parte da América Latina, e a barba por fazer; ela, com um sobretudo vermelho, cabelos bagunçados e enrolados (com um aspecto inequívoco de quem vem das ilhas do Mediterrâneo), echarpe, tênis cano longo All Star. Um casal que se ambientava muito bem àquele meio (era um colóquio filosófico). O que me chamou a atenção nesse casal, no entanto, não foi tanto seu modo de se vestir, mas suas mãos. Sentados como estavam, ele à direita dela, deixavam suas mãos, como bons amantes, a se acariciar. Seus dedos se cruzavam, a palma da mão dele roçava a dela com os dedos estirados num movimento de vai e vem, num toque quase intocável, numa sensibilidade quase eufemista (aquela dos toques que quase não conseguimos sentir).
Na ocasião isso era algo que me fazia falta. E, de fato, o toque dos amantes é algo que sustenta uma espécie de amor dentro do amor (algo como uma noção de distanciamento - somos estranhos ao outro - dentro da proximidade - somos íntimos do outro - dos compartilhamentos quotidianos). Não se trata aqui do toque sexual, nem do toque dos lábios, circunscritos à esfera do que forma apenas dois, mas desse toque eufêmico das mãos, esse toque quase involuntário e que insufla, imperceptivelmente, uma proximidade quase visceral, ainda que as mãos sejam uma das coisas mais públicas - e, portanto, expostas - do corpo. E a sensação que provei ao perceber esse movimento em estranhos é prova disso. Senti-me íntimo daquele casal de jovens mesmo nunca os tendo visto e, provavelmente, mesmo que nunca mais os veja. E aquele toque estava aberto a um átimo de visão, a um golpe de vista em sentido literal, no qual a intimidade do amor se abriu ao público (e, talvez, somente eu era esse público no momento).
Às vezes sentimos falta dessa exposição (dessa publicização) de nossa intimidade amorosa; às vezes sentimos falta dos toques reveladores. Porém, não são todos os toques como esse que revelam essa estrutura comum-amorosa. Não têm necessariamente a ver com a relação amorosa em sentido romântico-sexual; isto é, toques que se dariam somente entre pares dispostos a uma intimidade biunívoca (de trocas recíprocas e exclusivas apenas entre dois). Tem a ver, isso sim, com uma disposição ao convívio, ao amor, à uma vida comum (em comum) que não quer dizer apenas proximidade física, mas uma proximidade genial (e, lembremos, genius era o deus latino ao qual todo homem era confiado no momento de seu nascimento) na qual colocamos em cena o nosso obsceno, o nosso guardião secreto; enfim, quando por meio do contato com o estranho damos a ver nossa disposição mais íntima.
Aquele casal que estava sentado à minha frente, portanto, com seus trejeitos e movimentos, mostrava-me, com o toque de suas mãos, essa genialidade que nunca está atrelada ao toque em si, mas à condição pública do amor, à imaterialidade das relações que se formam quase como naquele toque eufêmico de mãos, com seus arrepios e cócegas, com seus calores de proximidade mas também com a sensação de que é justamente nesse quase imperceptível contato que está o máximo de nosso com-viver.
Imagem: Leonard Freed. Martin Luther King sendo cumprimentado na sua volta aos EUA após receber o Prêmio Nobel. Baltimore. 1964.
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