terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Terra brazilis 2019: a fábula da educação no livre-mercado




Vinícius Nicastro Honesko


Em 26 de abril deste ano, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, publica em sua conta no Twitter o seguinte:

O Ministro da Educação @abrahamWeinT estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas). Alunos já matriculados não serão afetados. O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina. A função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta.[1]


No dia anterior, o presidente havia feito uma transmissão ao vivo em sua conta na rede social com a participação do ministro da Educação Abraham Weintraub. Nessa ocasião, o ministro, antecipando o twitter de Bolsonaro no dia seguinte, diz que é preciso respeito pelo dinheiro do contribuinte, de modo que os investimentos públicos em educação seriam direcionados às faculdades que trouxessem retorno social. Citando como exemplo o Japão, o ministro diz o seguinte:

O Japão, que é um país muito mais rico que o Brasil, ele tá tirando dinheiro público do pagador de imposto de faculdades que são tidas como faculdades para uma pessoa que já é muito rica ou de elite, como Filosofia. Pode estudar filosofia? Pode, com dinheiro próprio. E o Japão reforça. O que? Esse dinheiro que vai para faculdades como de filosofia, sociologia, ele coloca em faculdades que geram retorno de fato: enfermagem, veterinária, engenharia, medicina...[2]


Quatro dias após essa transmissão, e depois de uma intensa controvérsia suscitada pela declaração (dada sua patente ilegalidade e, por isso, impossibilidade de ser implementa) o Ministério da Educação anunciou um contingenciamento de aproximadamente 30% no orçamento de três universidades que, segundo Weintraub, apresentaram, além de desempenho abaixo da média, uma série de problemas internos. Nas palavras do ministro: “as universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas. (...) A universidade deve estar com sobra de dinheiro para fazer bagunça e evento ridículo. (...) Sem-terra dentro do campus, gente pelada dentro do campus."[3] Sem especificar que eventos ridículos seriam esses e sem dar nenhum exemplo concreto da balbúrdia e da gente pelada, o ministro continua: "A lição de casa precisa ser feita: publicação científica, avaliações em dia, estar bem no ranking."[4] A princípio, o corte das verbas iriam acontecer em três universidades federais: Universidade de Brasília, Universidade Federal Fluminense e Universidade Federal da Bahia e, além disso, mais uma estava sob avaliação para um possível corte, a Universidade Federal de Juiz de Fora.

A polêmica declaração do ministro gerou, no mesmo dia, uma imensa repercussão: obviamente, pelas insinuações e disparates infundados, mas também pelo fato de que a medida sugerida – o corte por suposto baixo desempenho e por balbúrdia e gente pelada nos campi – obviamente não encontrava nenhum embasamento legal de ordem orçamentária: a mera afirmação do ministro de que as universidades eram lugares de “eventos ridículos", de "gente pelada" e de “balbúrdia" não provava nada e a alegação de baixo desempenho dentro dos parâmetros das avaliações e ranqueamentos era mentirosa, haja vista que de acordo com o Times Higher Education deste ano as três universidades nominalmente citadas pelo ministro haviam melhorado suas posições no ranking internacional.[5] Diante disso, doze horas após o anúncio de corte nessas três universidades, o Ministério da Educação declara que o contingenciamento de 30% seria para todas as universidades (e é preciso lembrar que, na verdade, o corte foi para toda a pasta[6]). Do anúncio do dia 25/04 em que alegava cortes estratégicos nas humanidades em prol de cursos que gerassem mais retorno para os pagadores de impostos, passando pelo ataque concentrado nas três universidades federais citadas, chegou-se a um corte geral no orçamento do Ministério da Educação.[7] Em um governo que tem como palavra de ordem a liquidação dos inimigos[8] e o discurso de armamento da população, é como se, diante da impossibilidade de colocar um sniper para atacar especificamente as humanidades, tivesse decidido, primeiro, lançar umas granadas em três trincheiras e, vendo que a estratégia continuava equivocada, optasse, por fim, por lançar uma bomba que liquidasse todos e cujos efeitos colaterais seriam geridos. No caso específico das propostas para as universidades públicas (e para o ensino público em geral), o modo de gestão desses efeitos colaterais seria anunciado dois meses depois com o seguinte nome: "Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras – FUTURE-SE”, um projeto de lei para mudar toda a estrutura de funcionamento das universidades públicas brasileiras. Logo na abertura da proposta, lemos em seus objetivos gerais:

O Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras (FUTURE-SE) tem por finalidade o fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e de gestão das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), por meio de parceria com organizações sociais e do fomento à captação de recursos próprios.[9]

A proposta destinada aos institutos de ensino superior públicos brasileiros foi submetida a uma consulta pública[10] e, até o momento, ainda está em trâmites legislativos e sendo submetida, no âmbito dos conselhos universitários, a análise, uma vez que cabe às universidades aderir ao programa (e dado o caráter genérico e pouco circunstanciado do projeto, o clima é de apreensão por parte da comunidade acadêmica). Sem me deter num exame mais longo da proposta, gostaria apenas de ressaltar o tom e alguns termos-chaves que constam no texto de modo que possamos refletir sobre o núcleo duro dessa proposta. Os termos são: empreendedoras, inovadoras, gestão, parcerias, organizações sociais, captação de recursos próprios. Só com a menção a tais palavras que aparecem logo no início do texto, um vocabulário emprestado dos mais banais manuais de economia (do chavão neoliberal), já é possível perceber que esse projeto, sob a alegação de maior autonomia e de gestão (que aqui chamo de gestão dos efeitos colaterais da destruição), se constituiria como uma nova estratégia de ataque tanto da própria concepção de ensino público em geral quanto das áreas que, em certo sentido, funcionam como os lugares em que justamente se questiona e se submete a análises críticas os problemas e compreensões da vida em comum (da vida em coletivo, da vida pública, por assim dizer): as humanidades. Isto é, ao usar como argumento e fundamento absoluto uma visão utilitarista, segundo a qual o conhecimento produzido na universidade deve ter uma aplicação prática direta, todos os saberes produzidos pelas assim chamadas humanidades, por não se enquadrarem nessa visão restrita do princípio utilitarista[11], são relegados, na visão do governo Bolsonaro, à condição de "gasto inapropriado”, “luxo a ser bancado pelo próprio agente beneficiado" e “como desrespeito ao pagador de impostos”.

Um projeto nos moldes do “Future-se” não é de todo novo no contexto do ensino superior. A partir dos dois termos da gramática neoliberal que estão no título do projeto, empreender e inovar, e das declarações tanto de Bolsonaro quanto de seu ministro da educação (repito: "A função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta"), é possível perceber de modo muito claro qual é a compreensão da vida em comum que está em jogo para o atual governo brasileiro: uma sobrevivência dos sujeitos que, sendo treinados para a execução de algum ofício, não questionem os pressupostos e fundamentos da vida em comum, mas apenas se esforcem para pagar suas contas mediante qualquer trabalho que seja[12]. Isto é, os cidadãos seriam reduzidos a indivíduos que na universidade – estas que funcionariam mediante parcerias com entes privados que visam ao lucro e que captariam seus recursos justamente nesses entes – buscariam apenas agregar valor a si ao aprender a inovar e a empreender. Assim, aqueles que tomam posse dessas habilidades oferecidas como saber na área de treinamento de nome universidade teriam mais chances de vencer no campo da concorrência geral, um eufemismo para a stasis (a guerra civil), que se tornou a vida em coletividade. Nesse campo de virtualidades entre vencedores e vencidos, poderíamos parodiar Hobbes em termos contemporâneos: o homem é o virtual motorista de uber do homem.

Que essa compreensão da vida em coletividade por parte dos membros do governo Bolsonaro encontre suas raízes em Friedrich Hayek é algo que vem ficando cada vez mais claro sobretudo pelas declarações do ministro da Economia, o autoproclamado Chicago Boy Paulo Guedes. Em recente declaração, Guedes afirma que toda a organização de seu ministério estaria baseada em dois livros: Prosperidade através da competição, de Ludwig Erhard, e Caminho da servidão, de Hayek. Lembrando de uma pergunta retórica constante nos discursos de Bolsonaro ("Como pode um país tão rico em recursos naturais assistir ao empobrecimento de seu povo?”), Guedes, apoiado na apresentação dos dois livros que faz para os jornalistas, diz:

Nós não despertamos, ainda, as forças de mercado. Jamais despertamos as forças de mercado. O Brasil é um gigante acorrentado. O Brasil é um país amarrado por todos os lados. (...) São 200 milhões de brasileiros atendidos por quatro empreiteiras, quatro bancos, uma produtora e distribuidora de gás, por acaso, pública, mas é uma. Não há surpresa em por que o povo brasileiro segue empobrecido. São poucos produtores, mercados cartelizados, preços caros, e, ainda por cima, uma chuva de impostos. Sobra o quê? Sobra pouco. Então, despertar as forças competitivas é o que nós estamos fazendo desde o início.[13]

Para Guedes, qualquer política econômica que preveja planejamento coletivo e não apenas a garantia para o bom funcionamento do livre-mercado é, como para seu mestre Hayek, uma amarra e um caminho da servidão. No livro citado pelo ministro da economia brasileiro (publicado em 1944), Hayek aponta suas críticas ao nazi-fascismo, ao comunismo, mas também à nova política das democracias do Ocidente, qual seja, a dinâmica do welfare state de matriz keynesiana. No prefácio escrito em 1975 para a edição americana, Hayek afirma que o socialismo radical – o termo é do autor – contra o qual o livro foi escrito já era coisa do passado, mas que suas concepções haviam a tal ponto penetrado nas estruturas sociais que qualquer complacência em relação a seus rastros deveria ser eliminada. Diz ele:

Se poucos, no Ocidente, querem reconstruir a sociedade a partir de seus alicerces com base em algum plano ideal, são entretanto numerosos os que ainda acreditam em medidas que, embora não visem a uma reforma completa da economia, podem no entanto produzir involuntariamente esse mesmo resultado, por efeito de conjunto. E, mais ainda do que quando escrevi este livro, a defesa de uma política que a longo termo seja inconciliável com a preservação da sociedade livre já não é assunto a ser decidido por um partido. Essa mistura de ideais contraditórios e com freqüência inconsistentes que, sob o rótulo de Estado previdenciário, em grande parte substituiu o socialismo como objetivo dos reformadores, precisa ser analisada com discernimento, se não quisermos que seus resultados sejam semelhantes aos do socialismo extremado.[14]

Os resultados semelhantes entre o welfare e o que chama de socialismo extremado, estavam, após os ciclos de revoltas e greve entre 1966 e 1969, naquele momento, 1975, começando a apontar para as sucessivas crises no âmbito do capitalismo.[15] Anos antes desse prefácio, em 1960, Hayek, então em um intenso momento de atividades às vésperas de sua primeira década na Universidade de Chicago[16], publica A constituição da liberdade. E é do capítulo intitulado Os poderes criativos de uma civilização livre (quaisquer ecos nas noções de inovação e empreendedorismo não é mera coincidência) que retiro um pequeno fragmento a partir do qual se torna possível perceber certa postulação de fundamento – isto é, uma espécie de sustentáculo – do pensamento de Hayek:

Nunca teremos os benefícios da liberdade e nunca obteremos os imprevisíveis novos desenvolvimentos para os quais ela dá oportunidade se ela também não for garantida na medida em que for utilizada de forma que não pareça desejável. Assim, já não se sustenta o argumento de que a liberdade individual seja frequentemente abusiva. Liberdade necessariamente significa que muitas coisas de que não gostamos serão feitas. Nossa fé na liberdade não se baseia nos resultados previsíveis em circunstâncias particulares, mas na crença de que ela acabará, em equilíbrio, liberando mais forças para o bem do que para o mal.[17]

O que seria essa crença numa liberdade imprevisível e que – como numa espécie de embate maniqueísta – liberaria forças para o bem? Trata-se de algo que, de fato, está ligado diretamente à compreensão que Hayek tem do que seria uma ação livre, esta que, em um ambiente de concorrência, realiza a liberdade de forma imprevisível e espontânea. Para tanto, é preciso que as condições da concorrência (que acontecerão no livre-mercado) devam ser estabelecidas como condição a priori para a equalização (que ele chamará de ordem espontânea) de um sistema social complexo. Assim, temos que uma ação livre é sempre fruto não de um cálculo racional, mas é o próprio fundamento do imprevisível frente a tais cálculos. Hayek indica que é na renúncia ao controle direto sobre os esforços individuais que uma sociedade livre poderá usufruir de um conhecimento que ultrapassa em muito as possibilidades de sua previsão (mesmo do mais sábio legislador, diz ele[18]). Aliás, ele chega a dizer que uma liberdade cujos efeitos sejam apenas benéficos não seria liberdade: “Se soubéssemos de que forma a liberdade seria usada, nosso argumento para justificá-la desapareceria."[19]

Diante disso, para Hayek, não haveria como prever uma ação livre, mas ela só poderia ser estimulada em um imperioso ambiente de concorrência. No fundo, isso se deve à antropologia hayekeana, que em certa medida apresenta-se em Direito Legislação Liberdade, de 1973. Aí ele afirma:

na mesma medida em que é um animal que persegue objetivos, o homem é um animal que segue normas. E alcança seus objetivos não por conhecer as razões pelas quais deve observar as normas que observa, nem por ser capaz de dar expressão verbal a todas elas, mas porque seu pensamento e ação são orientados por normas que, por um processo de seleção, evoluíram na sociedade em que ele vive e que, assim, são produto da experiência de gerações.[20]

A liberdade de perseguir seus objetivos individuais, portanto, funciona como uma base da compreensão antropológica de Hayek. Além disso, esse estímulo à liberdade é o propulsor do que ele chama de ordem espontânea. Inspirado em Michael Polanyi e Carl Menger, Hayek diz que a livre concorrência é que dá ensejo a ações que promovem mais liberdade, de tal modo que quanto mais liberdade uma ação promove, melhor se dá a organização da sociedade. Ou seja, numa sociedade onde a livre concorrência se organiza tendo como fundamento apenas normas gerais, e que tenha ciência da imprevisibilidade das ações que se darão nesse espaço concorrencial, espontaneamente haveria uma seleção das ações que implementariam mais liberdade.[21]

Nessa espécie de conto de fadas new age – que no Brasil é hoje a tônica –, o questionamento dos princípios espontâneos – e, portanto, místicos – da regulação econômica não pode ter espaço. Não é à toa que há algum tempo também a universidade tem introjetado critérios de concorrência como parâmetro de funcionamento e, sobretudo, de financiamentos. Ainda que essa compreensão esteja já há um tempo paulatinamente ingressando também no horizonte das universidades públicas brasileiras, agora a aposta do governo Bolsonaro está em radicalizar: também no âmbito da educação o estado tem que dar as condições de concorrência (aliás, só essa seria sua função), mesmo que, para isso, use do monopólio da violência (e lembremos aqui a famosa entrevista de Hayek para o El Mercúrio: "A veces es necesario que un país tenga, por un tiempo, una u otra forma de poder dictatorial. Como usted comprenderá, es posible que un dictador pueda gobernar de manera liberal. Y también es posible para una democracia el gobernar con una total falta de liberalismo. Mi preferencia personal se inclina a una dictadura liberal y no a un gobierno democrático donde todo liberalismo esté ausente."). Mas, tendo como referência o caso do Brasil que aqui trouxe, o que essa ingerência forçada de um governo para a implementação de uma doutrina da liberdade representa para a educação e para as humanidades em específico?

Num primeiro momento, podemos dizer que frente à métrica do mercado, que vê o governo apenas como um agente alternativo do capital, as perguntas fundamentais sobre as dimensões da vida em coletividade são deslocadas ou apagadas: o sujeito crítico dá lugar ao consumidor de saberes (aprende-se habilidades) e ao investidor de si mesmo que visa a vencer no campo concorrencial. Dessa maneira, os chamados estados democráticos de direito não necessitam mais de sujeitos que dele possam e queiram participar ativamente, mas de capital humano com habilidades técnicas (e o twitter de Bolsonaro nesse sentido é exemplar) para competir e sobreviver em meio a outros competidores. O capital humano, assim, seria um autoinvestidor que, não preocupado em colocar-se na vida pública e em adquirir conhecimentos necessários para atuar na vida em coletividade, procuraria apenas agregar valor às suas práticas de sobrevivência. Ou seja, o conhecimento é buscado somente como uma melhora ao capital humano, de tal modo que, como diz Wendy Brown

el conocimiento no se busca por propósitos disímiles al mejoramiento del capital, sin importar si es capital humano, corporativo o financiero. No se busca para desarrollar las capacidades de los ciudadanos, mantener la cultura, conocer el mundo o imaginar y crear diferentes maneras de vida común. Por el contrario, se busca por su “ROI positivo” —rendimiento sobre inversión—, una de las mediciones cuyo uso propone la presidencia de Obama para calificar universidades para futuros consumidores de educación superior.[22]

Um conhecimento como arma – um rendimento – para consumidores de educação que se preparam para competir, enquanto capitais vivos, no livre mercado. Como horizonte de fundo, portanto, não faz mais sentido pensar em laços de solidariedade ou qualquer coisa que o valha e, com isso, a universidade passa justamente a ter o papel de lugar onde se aprende as melhores técnicas para sobreviver no campo concorrencial (na guerra civil). Porém, é possível ir ainda mais adiante na compreensão dessa dinâmica implícita no capitalismo contemporâneo. Para a filósofa Marina Garcés, o capitalismo atual tem um marco epistemológico que transcende a mera mercantilização do conhecimento. Trata-se muito mais de uma

revolução que já não depende de uma só linguagem científica, mas que mobiliza todos os saberes de que dispomos para um só fim: fazer da inteligência como tal, além e aquém do ser humano, uma força produtiva. O projeto educativo que o capitalismo atual está desenvolvendo se situa nesse marco epistemológico. A escola do futuro já começou a se construir e não são os Estados ou as comunidades que a estão pensando, mas as grandes empresas de comunicação e os bancos. Ela não tem muros nem cercas, mas plataformas on-line e professores vinte e quatro horas. Não irá fazer falta o fato de ser excludente, porque será individualizadora de talentos e de trajetos vitais de aprendizagem.[23]

Na constituição do novo mundo 4.0, pouco importam[24] as chamadas humanidades, porque nele as soluções para toda problemática da vida em coletividade já estarão todas dadas de antemão pelos dispositivos tecnológicos desenvolvidos, obviamente, no âmbito das inovações proporcionadas dentro da própria universidade e apropriadas pelas empresas nas quais os recursos para tais pesquisas de inovação são captados. Pouco importa que poucos tenham acesso à escola no agora, porque no projeto de equilíbrio espontâneo que tem a liberdade como marco, isso há de acontecer à medida em que mais ações livres (inovações, criatividades etc.) vão sendo produzidas pelos indivíduos mais livres, de modo a proporcionar a liberdade vindoura para aqueles que agora padecem. Portanto, para que esse processo se acelere, é preciso focar nos saberes úteis e que tragam inovações para uso prático no campo da concorrência onde vivemos.

Por fim, gostaria de me ater a um pequeno detalhe do texto de Garcés: o fato de que são as grandes empresas de comunicação e os bancos que estão pensando a escola do futuro. Ora, o ministro da Educação do Brasil, Abraham Weintraub, tem, como professor, uma carreira medíocre: não fez um doutorado e nunca trabalhou com problemas ligados à educação (em seu currículo constam apenas 4 artigos em toda a carreira). Weintraub, no entanto, é conhecido pelos seus mais de 20 anos como agente no mercado financeiro.[25] Já o ministro da Economia, Paulo Guedes, até pouco antes de assumir o posto no governo, era presidente da Bozano Investimentos (agora Crescera), uma gestora de recursos que administra alguns bilhões em fundos e investimentos tradicionais e private equity. Dentre os recursos administrados, encontram-se aplicações ligadas a pelo menos oito empresas do setor educacional[26] (a título de exemplo: ao longo de 2019, o fundo obteve de uma dessas empresas nas quais aporta recursos, a Afya – voltada a cursos de medicina –, uma retorno de 600%, tendo ingressado com uma participação de R$600 milhões que, em novembro de 2019, estava avaliada em R$3,6 bilhões[27]). Além disso, é preciso lembrar de uma coincidência: a irmã de Guedes, Elizabeth Guedes, é a atual vice-presidente da Associação Nacional das Escolas Particulares.[28] Bem, na fábula da liberdade que não prevê personagens como asnos falantes, mas ditadores liberais, vemos que o livre mercado não é tão livre quanto se diz.


[1] UOL – Educação. 26 de abril 2019. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2019/04/26/bolsonaro-faculdades-humanas-investimento.htm (acesso: 05/11/2019)

[2] Idem.

[3] O Estado de São Paulo. 30 de abril 2019. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,mec-cortara-verba-de-universidade-por-balburdia-e-ja-mira-unb-uff-e-ufba,70002809579 (acesso: 05/11/2019)

[4] Idem.

[5] Cf.: O Estado de São Paulo. 30 de abril 2019. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,universidades-acusadas-de-balburdia-tiveram-melhora-de-avaliacao-em-ranking-internacional,70002810148 (acesso: 05/11/2019)

[6] O Globo. 30 de abril 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/ministro-da-educacao-vai-cortar-30-das-verbas-de-todas-as-universidades-federais-23634159 (acesso: 05/11/2019)

[7] Folha de São Paulo. 05 de maio 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/05/bloqueios-no-mec-vao-do-ensino-infantil-a-pos-graduacao.shtml (acesso: 05/11/2019) É importante lembrar que o dinheiro contingenciado foi, por fim, liberado no final do mês de outubro, pouco mais de dez dias antes do prazo final de empenho do dinheiro. Na prática, portanto, boa parte desses recursos não foram utilizados pelas instituições e o contingenciamento revelou-se, de fato, um corte (ainda que, para o público em geral, o governo tenha, por meio dessa estratégia – de guerra –, liberado todo o dinheiro previsto no orçamento de 2019). Cf.: Portal G1. 18 de outubro 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/10/18/ministro-da-educacao-afirma-que-vai-descontingenciar-todo-o-orcamento-de-universidades-federais.ghtml (acesso: 05/11/2019)

[8] Uma semana antes do segundo turno das eleições, Bolsonaro faz um discurso na avenida Paulista em que diz: “Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos", numa clara alusão a seus antagonistas do Partido dos Trabalhadores. Cf.: El País. 22 de outubro 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/22/actualidad/1540162319_752998.html (acesso: 05/11/2019)

[9] Portal G1. 17 de julho 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/07/17/future-se-leia-a-integra-da-proposta-do-mec-sobre-mudancas-na-gestao-das-universidades-federais.ghtml (acesso: 05/11/2019)

[10] Friso que a consulta pública não seguiu minimamente os requisitos legais de uma consulta pública no âmbito da administração pública federal: sem ampla divulgação, sem estudos fundamentados, sem uma linguagem acessível. Há suspeitas, inclusive, de irregularidade na contratação da empresa que elaborou a consulta. O Ministério Público Federal ingressou com uma ação pedindo a suspensão da consulta e, também, a elaboração de uma nova consulta. Cf.: Portal G1 09 de outubro 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/10/09/mpf-entra-na-justica-para-que-mec-refaca-a-consulta-publica-sobre-o-future-se.ghtml (acesso: 05/11/2019) cf.: Folha de São Paulo. 09 de outubro 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/10/mpf-pede-a-justica-que-mec-refaca-consulta-publica-sobre-o-future-se.shtml (acesso: 05/11/2019)

[11] Poderíamos, inclusive, contra-argumentar mesmo dentro do espectro do princípio utilitarista. É nesses termos, por exemplo, que a Universidade Federal do Paraná, em documento aprovado pelo Conselho Universitário, propõe uma "linha de defesa das humanidades". Cf.: UFPR. Análise, Reflexões e Questões acerca do projeto de lei do Programa Future-se. Ago/2019. Disponível em: https://www.ufpr.br/portalufpr/wp-content/uploads/2019/08/UFPR-FUTURE-SE.pdf Cito aqui um trecho do item 4.2. do documento, A atenção às áreas acadêmicas sem conexão imediata com as necessidades do mercado: "Mesmo sem desprezar a visão utilitarista, segundo a qual o conhecimento gerado na universidade deve ter aplicação prática direta, isso não pode se tornar um princípio absoluto. Ademais, ainda que aparentemente as humanidades não tenham impacto mercadológico direto sobre a sociedade, não se pode negar que as ideias de filósofos, educadores, historiadores, linguistas, sociólogos, cientistas políticos, antropólogos e outros profissionais desse ramo do conhecimento também impactam na história e nas vidas dos cidadãos, inclusive daqueles que atuam nas áreas técnicas, para as quais o mercado valoriza uma série de atributos relacionados às humanidades. Por exemplo, um dos ramos mais nobres da filosofia é a ética, uma área do conhecimento que se pode tomar como uma das mais importantes para se construir uma sociedade livre, coesa e justa. Alguns estudiosos têm argumentado, inclusive, que as humanidades são essenciais porque nos ensinam a ser e a nos tornarmos mais criativos, empáticos e curioso. Omitir uma discussão clara sobre uma eventual excessiva mercantilização do conhecimento universitário, que leve a desprezar áreas como as humanidades, bem como à infinidade de cursos de licenciaturas que integram as IFES e que são essenciais para os outros níveis de ensino, vai de encontro à construção da universidade como instituição crucial da história da civilização."

[12] É fundamental lembrar que, mesmo depois da reforma trabalhista de Michel Temer em 2017 – que já fragilizou em muito as relações de trabalho no Brasil –, o governo Bolsonaro já aprovou uma Medida Provisória com o nome “Liberdade econômica" (também denominada “minirreforma trabalhista”), que prevê, dentre outras coisas, que “as partes de um negócio poderão definir livremente a interpretação de acordo entre eles, mesmo que diferentes das regras previstas em lei”. Além disso, o governo também prevê uma nova reforma ainda mais radical, sobretudo no que diz respeito às relações sindicais, de acordo com declarações de agentes do governo. Cf.: UOL Economia. 20 de setembro 2019. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/09/20/entenda-as-principais-mudancas-da-mp-da-liberdade-economica.htm (acesso em: 05/11/2019)

[13] Seu Dinheiro. 28 de jul. 2019. Disponível em: https://www.seudinheiro.com/dois-livros-de-guedes-para-desvendar-o-enigma-de-bolsonaro/ (acesso em: 05/11/2019)

[14] HAYEK, Friedrich. O Caminho da Servidão. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990. Trad.: Anna Maria Capovilla, José Italo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. p. 12.

[15] A esse respeito, são absolutamente fundamentais as análises desenvolvidas por Wolfgang Streeck e sua teoria da compra de tempo, esta que, segundo o autor, teria começado, a partir do início dos anos 1970, a ser o ponto de sustentação do capitalismo. Ainda que Streeck denomine isso de adiamento da crise, penso que se trata de uma forma de implementação do capitalismo que se estabelece justamente como uma manutenção e constância da crise enquanto novo modus operandi. Cf. STREECK, Wolfgang. Tempo Comprado. A crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2019. Trad.: Marian Toldy e Teresa Toldy.

[16] Hayek trabalhou no programa de estudos avançados (graduate studies) denominado Committee on Social Thought e teve seu salário financiado, por dez anos, pelo William Volker Found, uma fundação ligada às empresas de William Volker e que, após a morte de seu criador, em 1947, teve como presidente Harold W. Luhnow, o qual, a partir de então, imprime à fundação também uma agenda de financiamentos à divulgação do pensamento econômico ligado ao livre-mercado. Em 1948, Luhnow escreve para Hayek, então professor na London School of Economics, com a proposta de trabalho na Universidade de Chicago. Dois anos depois, em 1950, Hayek começa seu trabalho na Universidade de Chicago. Cf.: MITCH, David. Morality versus Money: Hayek's move to the University of Chicago. In.: LEESON, Robert (org.). Hayek: a collaborative biography. Part IV. England, The Ordinal Revolution and The Road to Serfdom (1931-1950). Hampshiere; New York: Palgrave Macmillan, 2015. p. 243. DOHERTY, Brian. Radicals for Capitalism. A freewheeling history of the modern american libertarian movement. New York: PublicAffairs, 2007.

[17] HAYEK, Friedrich. The Constitution of Freedom. The definitive edition. (org. Ronald Hamowy). Chicago: The University of Chicago Press, 2011. p. 83. (tradução nossa)

[18] Idem. p. 82.

[19] Idem. p. 83.

[20] HAYEK, Friedrich. Direito Legislação Liberdade. Uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e de economia política. São Paulo: Visão, 1985. Trad.: Henry Maksoud. p. 6.

[21] No que diz respeito à concorrência, Hayek é ciente do problema do monopólio. Para ele, no entanto, este não é um problema inexorável do laissez faire, mas tem também sua origem na dimensão da intervenção do Estado. Como exemplo disso, Hayek utiliza a Grã-Bretanha, onde, antes de 1930, num ambiente ainda sem tanta intervenção estatal, a formação de monopólios era muito difícil. Cf.: HAYEK, Friedrich. O Caminho da Servidão... pp. 65-69. Em nenhum momento, no entanto, Hayek toca na dimensão colonial da Grã-Bretanha. Isto é, todo seu argumento remove do horizonte a produção e extração (espoliação!) de riquezas que os ingleses auferiam de suas colônias. Aliás, o horizonte da liberdade hayekiano se limita ao circuito do Atlântico Norte. Para uma compreensão das implicações coloniais nas compreensões de liberdade: BUCK-MORSS, Susan. Hegel e o Haiti. São Paulo: N-1, 2017. Trad.: Sebastião Nascimento; LOSURDO, Domenico. Contra-História do Liberalismo. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2006. Trad.: Giovanni Semeraro; MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1, 2018. Trad.: Sebastião Nascimento.

[22] BROWN, Wendy. El Pueblo sin atributos. La secreta revolución del neoliberalismo. Barcelona: Malpaso Ediciones, 2016. Trad.: Víctor Altamirano. p. 335.

[23] GARCÉS, Marina. Novo esclarecimento radical. Belo Horizonte; Veneza: Ayiné, 2019. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko. p.

[24] Eric Alterman chama atenção para a diminuição geral da procura pelos cursos de História nos Estados Unidos. No entanto, lembra também que há, de modo paradoxal, um aumento na busca desses cursos nas chamadas instituições de prestígio. Isto é, os saberes relacionados às humanidades estão cada vez mais postos como um incremento de valor para mercados de ponta da elite econômica. P.ex.: é preciso que historiadores, críticos de arte etc. forneçam saberes para o mercado da arte, o mercado de turismo (com saberes históricos especificamente construídos para tal fim) etc. Cf.: ALTERMAN, Eric. The decline of Historical Thinking. In.: The New Yorker. 04 de fevereiro 2019. Disponível em: https://www.newyorker.com/news/news-desk/the-decline-of-historical-thinking?fbclid=IwAR3TZKaUGyOikahozuffCLR08LnUQiLZwJZy5Tqj4pf9AogkF1fzL2SCP3I (acesso em: 05/11/2019)

[25] UOL Educação. 08 de março 2019. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2019/04/08/novo-ministro-da-educacao-tem-20-anos-de-atuacao-no-setor-financeiro.htm

[26] Cf.: Revista Exame. 16 de dezembro 2018. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/plano-para-a-educacao-deve-enfraquecer-professor-e-beneficiar-guedes/ UOL. 04 de outubro 2018. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/04/propostas-de-bolsonaro-favorecem-investimentos-de-empresa-de-paulo-guedes.htm (acesso em: 05/11/2019)

[27] Seu dinheiro. 02 de agosto 2019. Disponível em: https://www.seudinheiro.com/fundo-paulo-guedes-afya/ (acesso em: 05/11/2019)

[28] O GLOBO. 1º de novembro de 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/irma-de-paulo-guedes-defende-migracao-do-ensino-superior-para-pasta-de-ciencia-tecnologia-23204313 (acesso em: 05/11/2019)

sábado, 4 de janeiro de 2020

Curiosos Fios

 
 
Saulo Mattos

Até das fibras mortas não se pode cuidar com tranquilidade. A corporeidade crespa nasce mais morta nessas cabeças negras. O trançado ficava escondido nos cantos da cidade, como se fosse conhecimento de poucos, como se fosse da ordem da proibição, e, só depois de muito tempo, começa aparecer nos colégios particulares, nas representações redundantes de uma África sempre colorida, como se houvesse tido pouco derramamento de sangue no continente, como se tudo fosse dança agitada e de tambor, como se a foto da criança esquálida cercada pelo urubu não fosse conhecida de todos. Apenas para que pudesse haver uma interpretação de sociabilidade com os que compunham a tarja preta escolar que enfurecia a razão particular dos donos dos boletos. O destino predestinado de todo cabelo é nascer morto, não se enganar com a vida. Seu reino é o dos fios mortos, que podem ser cortados em qualquer dia. Desprezivelmente belo: estar morto para ser livre, originalmente sem estética, cobrir a cabeça, protegê-la do sol. Até das fibras mortas o grito capitalista se aproveitou.

Serve para muita coisa. Para dizer quem é negro, quem não é. Quem pode ser da televisão ou de determinada profissão. Quem pode ter cabelo grande ou não. Quem pode estar na cozinha. Quem pode cuidar de seu filho, ser segurança. Quem pode ser galã ou beldade model. Quem pode tudo. Quem estará na prisão. O cabelo identifica. Rotula. Criminaliza. Mata estando morto, porque escolhemos valorá-lo como distintivo social. O cabelo não. Nós fazemos tudo isso a partir dessa textura que pode ser, paradoxalmente a todo esse modo de viver apartado, a nossa parte mais alegre, a autodefinição, a terra viva do ser. Cabelo que pode ser a alegria suada, de muitas lutas individuais e coletivas, representatividade de uma coletividade marcada pela chibatada, pela nudez exposta ao meio dia com suor queimando os vincos profundos da carne negra intergeracional. As dores ultrapassaram o futuro para que se soubesse o valor da celebração, que se despertasse a consciência negra da negritude (Mbembe). Que não se pode ficar só, sozinho, na clausura do corpo negro sofrido. Deve-se correr para o abraço sereno, celebrar o frescor da liberdade dos nossos cabelos, das nossas cabeças. Celebrar do nosso jeito para que os sentimentos sejam um adubo de bons pensamentos.

A senhora-menina está entre as pernas dela, encostada no sofá, sentada no chão, sentiu as mãos dela, da antiga que pôde chamar de vó, do que sobrou de carinho da família, do tempo quase integralmente dedicado à feira, da reduzida oportunidade de conversa graciosamente dada por aquele momento de trançar o cabelo - isso marca, de modo geral, os usos e costumes da negritude, tempo afetivamente estreito e despedaçado, aos solavancos e encontrões.

Não tê-lo era ritualístico. Dentre os que escolheram o Axé havia os que optaram em ir mais adiante para despir-se do cabelo como ato de entrega energética sagrada, escolhida nos caminhos de dentro da especial religiosidade afro. Outra vez o cabelo a emprestar a liberdade de sua natureza morta ao religare humano.

Nem sempre foi assim. Ainda hoje não se sabe se está a se experimentar a liberdade afrocapilar. As lembranças de um passado recente desenham as mulheres negras que se automutilavam alisando seus cabelos, os homens negros que raspavam suas cabeças com vergonha da realidade crespa que os destacava como sujeito racial negro, por mais impossível que fosse escondê-lo. O imperialismo da branquitude fez-se nas cabeças negras, ainda que alguns cantassem que eram “black power”. Por isso, antes de se falar das dores que “cancerinizam” os corpos negros, elevam suas pressões arteriais e diabeticamente amputam suas pernas, que tal pensar no pânico estético que sempre aprisionou nossos extremos corpóreos roubando as cenas originais da existência afro, que podem não ser originais porque estamos cindidos (Fanon) pela segregação trucidante desde a concepção raivosa e insana que nos coloca no mundo, porque boa parte da negritude tem sido filha dessa insanidade disfarçada de amor, anestesiada de carnaval, e com pouquíssimas chances de se autoproclamar humanamente existente. Fétidos, largados pela cidade, são os muitos negros que sobrevivem psicologicamente devastados tanto quanto aqueles que conseguiram a compensação material da carreira bem-sucedida, que querem patrocinar o mito do negro heroico, excepcional.

Para que disputar dores? Somos um texto só de diversas partituras, com múltiplos ecos, tons e silêncios, poesia e prosa corrida se misturam nessa complexa existência que é o viver negro, que busca significar a liberdade nunca sentida.

Quer saber? As cabeças raspadas são suspeitas cláusulas de aceitabilidade social. Os cabelos alisados também. São pré-condições para a empregabilidade subalterna, escravizada, do negro. Alguns mais livres. No geral, muitos negros matáveis (a indistinta autorização socioestatal para matá-los) com seus fios mortos na cabeça, os quais ainda eletrocutam sua sanidade. Existir para ser subalternizado é linguagem contemporânea. A liquidez do mundo não desperdiça uma gota só desse comando arquétipo multissecular de espoliação pungente do negro.

A pergunta volta: por que há quatro ou cinco décadas raspávamos e alisávamos os cabelos com tanta frequência? Antes de sugerir alguma resposta, aparece Conceição Evaristo (Histórias de leves enganos e parecenças, p. 50) para lembrar a história dos fios de ouro da negra africana Halima, que pertencia a um clã em que “um dos signos da beleza de um corpo era o cabelo” e que “a arte de tecer cabelos era exercida por mulheres mais velhas que imprimiam aos penteados as regras sociais do grupo”. A negra Halima, em 1852, com 12 anos apenas, foi escravizada para trabalhar em plantios e colheitas brasileiros, ser brinquedo das crianças da casa-grande, mas, antes, “a sua cabeça foi raspada, indicando sua nova condição: a de peça para ser vendida no comércio da escravidão.”

Raspávamos e alisávamos porque era o “corte” da aceitação, mostrávamo-nos limpos em concordância com a assepsia social e estética da branquitude, que desde sempre confortável em suas poltronas de privilégios imprimiu nota dolorosa na alma negra: “só te aceitarão assim”. Despersonificação, cabelo de negro não serve. Raspávamos as cabeças como se presidiários fôssemos. Continuamos nas prisões. Atados as essas cordas meladas de sangue que arrastam nossos corpos nas construções dos bairros luxuosos, zerados de lixo pelas mãos negras das cabeças zeradas de cabelo. Sob o céu, onde dizem morar Deus, suávamos higienizados da nossa própria beleza. Alisava-se para ser a impossível Barbie. Não queremos generalizar as potencialidades do existir negro. Eles é que nos apontam os dedos querendo desautorizar as nossas falas e interpretá-las de forma sádica, o que demonstra enquanto continuam organizada e difusamente senhores de um “crime perfeito”: o racismo (Kabengele Munanga). Querem generalizar as nossas falas para desautorizar os pensamentos afrocentrados que se desenvolveram enquanto nossas cabeças sofriam de uma ausência capilar imposta, de um alisamento capilar resultante de uma autopercepção desviante do espelho afro que deu espaço para a imposição de um referencial feminino europeu.

Lutamos pelos nossos cabelos. Lutaremos muito mais. Já sabemos que eles são o húmus de grande ideias. Sabedores da idade do universo, fundamos a universidade na nossa pequena casa, nas paredes dos conjuntos habitacionais, nos quartos de despejo de Carolina de Jesus, e a estendemos para muitos lugares que desconheciam a luminosidade do saber compartilhado. Contaremos a nossa história. Interessam-nos os porquês dessa viva História.

Curiosos esses fios, que dizem muito sobre a vida indigesta de nossa sociedade superencarcerada em ilusões de democracia racial

15/10/2019 
 
 
Imagem: Carolina de Jesus.