A M.H.
Está próxima a margem onde daremos nosso último adeus. Uma poeta, nos devaneios da mente de uma sua personagem - inventada homem, grafada a lápis, engolida com muito vinho -, disse que "há sonhos que devem permanecer nas gavetas, nos cofres, trancados até nosso fim. e por isso passíveis de serem sonhados a vida inteira." Hoje, por aqui, outros sonhos despertaram monstros, tal qual Goya vislumbrara. Caminhamos juntos, com passos já titubeantes, para a margem. Porventura ficarei e partirás, só, sem lembranças e sonhos, apenas com o sorriso antes tão duro e hoje já domado por tudo o que sonhou pela vida. Mas a partida também é sempre uma constante, é parte integral de todos os "adeus" que pronunciamos sem cessar desde o nascimento. Certa vez, choramos uma distância, a de um mar absolutamente azul - que nem mesmo Mallarmé teria pensado tão azul como nós, naquele dia, acabamos por pensá-lo -, que me jogava aos lugares por onde nossos passados corriam loquazes. E muitas são as vozes que hoje, por mais que impere a vontade de silêncio, ainda soam em cozinhas aquecidas por fogões a lenha, em meio ao cheiro da brasa que preparava os banquetes de outrora. E nada é capaz de detê-las, nenhum adeus, nenhum rio. A margem está próxima, mas, antes da partida, abro a gaveta dos sonhos para que os sonhemos juntos uma, duas, três, não importa quantas vezes.
Imagem: El Greco. Menino soprando brasa para acender uma vela. 1570-72. Museo Nazionale di Capodimonte, Napoli.