A M.G.L.
Mal completava uma semana de vida e, cruzando o Atlântico, vinham-me vozes da vida futura de uma portuguesa, talvez pesarosa por conta de alguma saudade:
"Hoje, passada a madrugada, continuei o dia com a minha parte mais sombria; soltaram-se-me as minhas recordações, presentes, passadas e futuras, e não encontrava caminho linear entre elas.
Não só importa escrever sucessivamente, mas saber quem me sucederá numa constelação de sentidos.
O que é a descendência?
A seiva sobe e desce numa árvore, estende-se pelos ramos, e é regulada pelas estações; eu e a árvore dispomo-nos uma para a outra, num lugar por nomear. Este lugar não tem significação de dicionário, não transmigrou para nenhum livro.
Agora o sol, o solo, a solo, encadeiam-me nas palavras
Esta madrugada aproximei-me da certeza de que o texto era um ser."
Um ser distante, o texto, é a própria presença do impossível de ser apreendido e devorado pelo tempo. Sem mais lugares às sentenças definitivas, mesmo as plantas, inertes, são o puro movimento de sua seiva. Nascido, num tempo nascido, deixava meus ouvidos à espera dessas palavras perdidas das recordações presentes, passadas e futuras da poeta. Fazer sentido, como costuravam no céu as constelações os homens de outras épocas, desnuda o bebê de outrora sob imenso mar cinza que se abre, num domingo qualquer, sobre sua cabeça. Tudo o que respira, tudo o que vê e toca não é senão o grande texto do mundo à espera de leitura. "Mi nombre es alguien y no importa quién (...) He testimoniado el mundo: he confesado la extrañeza del mundo", diria Borges lido por Nancy lido pelos dedos que tocam este poema, e que, portanto, tocam parte de um mundo solto tal qual seiva que desce e sobe, num lugar sem nome. E as notas tocadas com tanta força, encadeadas no mundo imaginado por Bach, são também parte deste mundo e de todos os outros, criados ou por criar. Nenhuma imagem se carrega na descendência: há, isto sim, uma grande festa nos mundos (passados, presentes, futuros: todas abstrações) ainda a serem lidos por alguém, não importa quem.
Imagem: Paul Gauguin. Adão e Eva. Casal tahitiano caminhando. 1900.
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