segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Pequeno parágrafo sobre a chuva


A chuva sempre é coisa do passado, já disse o velho Borges. Quando prestamos atenção nos seus sons, acabamos por nos dar conta de que o que escutamos são os rumores daquele "uma vez foi assim...". O som úmido, quase molhado, invade o presente respingando suas cores bem no meio do quarto, onde agora me deito e tento ler histórias do passado que irremediavelmente se tornarão parte do meu futuro. Quixotesca aventura de quem se envereda pelos sons da chuva que agora não cai, mas que caiu, naquele passado que hoje é o mais presente dos presentes. E o passado não é mais lembrança, mas matéria ao meu alcance, matéria tão próxima da minha mão como um punhado de terra, que nada mais é do que a síntese de toda a História Universal.

Imagem: Jan Brueghel, "O Velho". Painéis dos 5 sentidos. Tato. 1618. Museo del Prado, Madrid.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O futuro segundo Giorgio Agamben


Para compreender o que significa a palavra futuro, é preciso antes saber o que significa uma outra palavra, a qual não estamos mais habituados a utilizar, ou ainda, que estamos habituados a usar apenas na esfera religiosa: a palavra fé. Sem fé ou crença, não é possível futuro. Isto é, há futuro somente se podemos esperar ou crer em algo. Mas, o que é a fé? David Flusser, um grande estudioso de ciências da religião, e ainda há uma disciplina com esse estranho nome, um dia estava trabalhando sobre a palavra pistis, que é o termo grego que Jesus e os apóstolos usavam para fé. Naquele dia, estava passeando e, por acaso, encontrava-se numa praça em Atenas. Num determinado momento, olhando para cima, viu escrito em grandes letras à sua frente Trapeza tés Pistéos. Surpreendido pela coincidência – a palavra pistis – observou com mais atenção. Depois de alguns segundos se deu conta de que se encontrava simplesmente diante de um banco. Trapeza tés Pistéos significa em grego “banco de crédito”. Foi uma espécie de iluminação. Eis, finalmente, o que significava a palavra pistis, que há meses estava tentando compreender. Pistis, fé, é simplesmente o crédito de que gozamos junto a deus e de que a palavra de deus goza em nós a partir do momento em que nela cremos. Por isso Paulo pode dizer, numa famosíssima definição, que a fé é “substância de coisas esperadas”. A fé é o que dá realidade ao que ainda não existe, mas em que cremos e temos fé, porque nela colocamos em jogo o nosso crédito, a nossa palavra. Algo como um futuro existe apenas na medida em que a nossa fé consegue dar substância, isto é, realidade, às nossas esperanças. Mas a nossa, sabe-se, é uma época de escassa fé. Ou, como dizia Nicolà Chiaromonte, uma época de má-fé; isto é, de fé mantida à força e sem convicção. Portanto, uma época sem futuro e sem esperanças (ou, de futuros vazios e de falsas esperanças). Mas nesta época, muito velha para crer verdadeiramente em algo e muito esperta para ser verdadeiramente desesperada como deveria, o que se faz do nosso crédito? O que se faz do nosso futuro? Porque, parece-me, se se observa bem, há ainda uma esfera que gira inteiramente ao redor do tema do crédito. Uma esfera que englobou toda a nossa pistis, toda a nossa fé. Esta esfera é o dinheiro e o banco, a Trapeza tés Pistéos, é o seu templo. Vocês sabem que o dinheiro é apenas um crédito. Em todas as notas, na esterlina, no dólar, curiosamente não no euro (isto deveríamos deixar sob suspeita), vem escrito que o banco central promete garantir aquele crédito. Está escrito: “o banco pagará ao portador” – libra esterlina, ou dólar, mesmo se agora não há mais o padrão ouro e se a conversão ao dólar não existe mais. Vocês sabem também que a assim chamada “crise” que estamos atravessando – e espero que sejam bastante inteligentes para suspeitar de que o que se chama crise não é algo provisório, mas o modo normal no qual funciona o capitalismo do nosso tempo – começou com uma série desconsiderada de operações sobre o crédito, sobre créditos que vinham descontados e revendidos dezenas de vezes antes de poderem ser realizados. Isso significa, em outras palavras, que o capitalismo financeiro e os bancos, que são seu órgão principal, funcionam jogando sobre o crédito, isto é, sobre a fé dos homens. Isso também significa que a hipótese de Walter Benjamin, para mim uma belíssima hipótese, segundo a qual o capitalismo é, na verdade, uma religião, a mais feroz e implacável religião que já existiu porque não conhece redenção nem dia de festa, deve ser tomada literalmente. O banco tomou o lugar da igreja e dos seus padres, e, governando o crédito, manipula e gerencia a fé – a escassa e incerta crença que o nosso tempo tem ainda em si mesmo. E o faz do modo mais irresponsável e sem escrúpulos, procurando lucrar dinheiro da crença e da esperança dos seres humanos, estabelecendo o crédito que cada pessoa pode gozar e o preço que deve pagar por isso. Hoje estabelecendo e avaliando até mesmo o crédito dos estados que cederam, não se sabe o porquê, a sua soberania. Desse modo, governando o crédito, governa não somente o mundo, mas também o futuro dos homens, este que a crise torna sempre mais curto e a termo. E se hoje a política não parece mais possível, isso acontece, de fato, porque o poder financeiro sequestrou toda fé e todo o futuro, todo o tempo e todas as esperas. Enquanto durar essa situação, enquanto a nossa sociedade, que se crê laica, permanecer servindo a mais obscura e irracional das religiões, eu os aconselho a retomar o seu crédito e o seu futuro das mãos destes sombrios, desacreditados, pseudo-sacerdotes, banqueiros, de uma parte, e dos funcionários das várias agências de rating, de moldings, de Standard & Poor’s, ou qualquer outra denominação que tenham. E, talvez, a primeira coisa a se fazer é parar de olhar tanto ou apenas para o futuro, como eles exortam a fazer, para, ao contrário, voltar o olhar para o passado. Somente compreendendo o que aconteceu, sobretudo procurando compreender como e por que pôde acontecer, talvez, poderão conseguir liberar-se dessa situação. Não a futurologia, mas a arqueologia é a única via de acesso ao presente.

Intervenção de Giorgio Agamben no programa "Chiodo Fisso" da emissora de rádio "Rai 3" no último dia 25/01/2012. (Link para arquivo de áudio original: http://www.radio.rai.it/podcast/A42410486.mp3)

Transcrição e tradução para o português: Vinícius Nicastro Honesko.

Visão do mundo grotesco (in Salò)




A Roberto Piva, desde a visão de Pasolini.

Pensam comer o mais fino patê enquanto, de fato, o que esquentam em seus micro-ondas é tão somente merda ressequida embebida no último gole de vinho do porto que no barzinho da sala estampava-se como decoração; depois do banquete, descem à igreja para entoar salmos ao deus-merda, crendo tratar-se do velho e lunático deus-encarnado excarnado na cruz no caminho de Jerusalém; ele, o velho-jovem lunático, que comia mel, tâmaras, olivas, damascos, agora era confundido com a merda que estes daqui consomem, consomem, para sumir; e consomem os ocos discursos do sacerdote-estrela, que deglute a própria merda e a regurgita para os espectros consumirem, consumirem; a calçada está cheia de pessoas, que nada são senão as máscaras de corpos que somem; as calçadas estão vazias, apenas soltando a fedentina da merda; e ao lado daquele rio lodoso, e que uma vez foi um rio, circulam em duas, quatro, doze, vinte e quatro ou não sei quantas patas emborrachadas os verdadeiros espectros que degustam o líquido preto fruto da merda e dos cadáveres-merda; e por falar em cadáveres, há pouco vi alguns que boiavam no mar de pó de concreto de edifícios que desabam; a ânsia por mostrar os cadáveres; a verdade que é apenas um momento do falso; a vida que corre em desassossego; nada parece impedir os comedores de merda que tanto gozam ao sentir-se vítimas do poder; o câncer que corrói seus corpos como suas próprias enzimas dissolvem a merda que ingerem; as cidades já longe de serem veladas e embalsamadas; a orgia em meio ao grande banquete de merda; sal e gordura a todos; nada de gosto; desgosto; merda.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Um outro sonho



Eram quatro da manhã e eu ouvia o último vento dobrar a esquina. Junto dele, passava seu rosto desfigurado pelo meu sonho. Sua imagem, plena de vozes, acariciava meu rosto com dedos leves e, junto à minha face, sussurrava mil frases nas quais me perdia em deleites. Depois disso, foi só silêncio. As ruas, perpassadas por uma luz frágil e arredia, eram apenas o silencioso vácuo da sua voz, das nossas vozes, já que agora era eu a tentar falar. Porém, nada, nada além da intenção de falar conseguia sair de mim. E tinha ganas, e tinha ganas; agora eram ganas de escrever, e pus-me a falar à folha branca. Um verborrágico discurso mudo, apenas signos, pequenas manchas negras na celulose alva daquela folha de caderno velho. E escrevia, escrevia, mas, agoniado, só conseguia escrever sobre antes do vento, sobre a voz que há pouco tocava meu rosto com sutileza. Mas eu queria falar sobre o silêncio que veio depois, mas não, palavras para o silêncio não existiam; e pensei que era por causa da luz, aquela mesma, frágil e arredia, que nesta noite, a do último vento, ainda era a única capaz de iluminar a folha branca sobre a qual deitava letras incapazes de dizer o que eu mais queria dizer: o silêncio...

Imagem: Hieronymus Bosch. Jardim das delícias terrestres (detalhe). 1500. Museo del Prado, Madrid.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Imaginação

A imaginação é uma descoberta da filosofia medieval. Nesta, ela atinge o seu limiar crítico – e, ao mesmo tempo, a sua formulação mais aporética – no pensamento de Averróes. A aporia central do averroísmo, que não cessa de suscitar as obstinadas objeções dos escolásticos, está, de fato, na relação entre o intelecto possível, único e separado, e os indivíduos singulares. Segundo Averróes, estes se conjugam (copulantur) com o intelecto único por meio dos fantasmas que se encontram no sentido interno (em particular, na virtude imaginativa e na memória). A imaginação recebe, desse modo, um caráter de todo modo decisivo: no vértice da alma individual, no limite entre o corpóreo e o incorpóreo, o individual e o comum, a sensação e o pensamento, ela é a extrema escória que a combustão da existência individual abandona no limiar do separado e do eterno. Nesse sentido, a imaginação – e não o intelecto – é o princípio que define a espécie humana.

Tal definição, no entanto, é aporética, porque – como Tomás insistentemente objeta na sua crítica, afirmando que, se se aceita a tese averroísta, o homem singular não pode conhecer – ela situa a imaginação no vazio que se escancara entre a sensação e o pensamento, entre a multiplicidade dos indivíduos e a unicidade do intelecto. Daqui – como a cada vez que se trata de apreender um limiar ou uma passagem – o vertiginoso multiplicar-se, na psicologia medieval, das distinções: virtude sensível, virtude imaginativa ou memorial, intelecto material ou agente etc. Isto é, a imaginação circunscreve um espaço no qual ainda não pensamos, no qual o pensamento se torna possível somente por meio de uma impossibilidade de pensar. É nesta impossibilidade que os poetas de amor situam a sua glosa à psicologia averroísta: a copulatio dos fantasmas com o intelecto possível é uma experiência amorosa e o amor é, antes de tudo, amor por uma imago, por um objeto de algum modo irreal, exposto, como tal, ao risco da angústia (que os stilnovistas chamam “dottanza”) e da falta. As imagens, que constituem a última consistência do humano e o único trâmite da sua possível salvação, são também o lugar do seu incessante faltar a si mesmo.

É sobre tal fundo que se deve colocar o projeto warburguiano de recolher num atlas – cujo nome é Mnemosyne – as imagens – as Pathosformeln – da humanidade ocidental. A ninfa warburguiana está carregada da ambígua herança da imagem, mas a desloca sobre um plano totalmente diferente, histórico e coletivo. Já Dante, no De monarchia, tinha interpretado a herança averroísta no sentido que, se o homem é definido não pelo pensamento, mas por uma possibilidade de pensar, então esta não pode ser realizada por um homem singular, mas apenas por uma multitudo no espaço e no tempo, isto é, no plano da coletividade e da história. Nesse sentido, trabalhar com as imagens significa, para Warburg, trabalhar no cruzamento não apenas entre o corpóreo e o incorpóreo, mas também, e sobretudo, entre o individual e o coletivo. A ninfa é a imagem da imagem, a cifra das Pathosformeln que os homens se transmitem de geração em geração e à qual ligam a sua possibilidade de encontrar-se ou de perder-se, de pensar ou de não pensar. As imagens são, portanto, um elemento decisivamente histórico; mas, segundo o princípio benjaminiano pelo qual se dá vida a tudo aquilo a que se dá história (e que aqui poder-se-ia reformular no sentido de que se dá vida a tudo aquilo a que se dá imagem), elas são, de alguma forma, vivas. Nós estamos habituados a atribuir vida apenas ao corpo biológico. Ninfal é, ao contrário, uma vida puramente histórica. Como os espíritos elementares de Paracelso, as imagens têm necessidade, para ser verdadeiramente vivas, de que um sujeito, assumindo-as, una-se a elas; mas em tal encontro – como na união com a ninfa-ondina – está ínsito um risco mortal. No curso da tradição histórica, de fato, as imagens se cristalizam e se transformam em espectros, dos quais os homens tornam-se escravos e dos quais sempre é preciso liberá-los novamente. O interesse de Warburg pelas imagens astrológicas tem a sua raiz na consciência de que “a observação do céu é a graça e a maldição do homem”, de que a esfera celeste é o lugar em que os homens projetam as suas paixões pelas imagens. Como para o vir niger, o enigmático decano astrológico que ele tinha reconhecido nos afrescos de Schifanoia, essencial é, no encontro com o dinamograma carregado de tensão, a capacidade de suspender-lhe e inverter-lhe a carga, de transformar o destino em sorte. As constelações celestes são, nesse sentido, o texto original em que a imaginação lê o que nunca foi escrito.

Na carta a Vossler, enviada poucos meses antes da morte, Warburg, reformulando o programa do seu atlas como uma “teoria da função da memória humana para imagens (Theorie des Funktion des menschlichen Bildgedöchtnisses)”, coloca-o em relação com o pensamento de Giordano Bruno: “Veja o senhor que não devo deixar escapar, de nenhum modo, como o fiz até agora, a possibilidade de entrar em relação com uma figura que me fascina há quarenta anos e que, pelo que posso ver, não encontrou até agora a sua justa colocação na história do espírito: Giordano Bruno.”

O Bruno a que Warburg aqui se refere em relação ao atlas só pode ser o Bruno dos tratados mágico-mnemotécnicos, como o De umbris idearum. É curioso que, no seu estudo sobre a Arte da memória, Frances Yates não se tenha dado conta de que os sigilos que Bruno insere nesse livro têm a forma de matrizes astrológicas. Essa semelhança com um dos objetos privilegiados das suas pesquisas não podia não ter tocado Warburg que, no seu estudo sobre a adivinhação na época de Lutero, reproduz matrizes quase idênticas. A lição que Warburg retira de Bruno é que a arte de dominar a memória – no seu caso, a tentativa de compreender através do atlas o funcionamento do Bildgedächtnis humano – tem a ver com as imagens que exprimem a subjetivação do homem ao destino. O atlas é o mapa que deve orientar o homem na sua luta contra a esquizofrenia da própria imaginação. O cosmos, que o mítico herói homônimo carrega sobre as costas (Davide Stimilli lembrou a importância desta figura para Warburg), é o mundus imaginalis. A definição do atlas como “histórias de fantasmas para adultos” encontra aqui o seu sentido último. A história da humanidade é sempre história de fantasmas e de imagens, porque é na imaginação que tem lugar a fratura entre o individual e o impessoal, o múltiplo e o único, o sensível e o inteligível e, ao mesmo tempo, a tarefa da sua dialética recomposição. As imagens são o resto, o traço daquilo que os homens que nos precederam esperaram e desejaram, temeram e reprimiram. E já que é na imaginação que algo como uma história tornou-se possível, é por meio da imaginação que ela deve a cada instante novamente se decidir.

A historiografia warburguiana (nisso muito próxima à poesia, segundo a indiscernibilidade entre Clio e Melpômene que Jolles sugeria num belo ensaio de 1925) é a tradição e a memória das imagens e, ao mesmo tempo, a tentativa da humanidade de liberar-se delas para abrir, além do “intervalo” entre a prática mítico-religiosa e o puro signo, o espaço de uma imaginação sem mais imagens. O título Mnemosyne nomeia, nesse sentido, o sem imagem, que é a despedida – e o refúgio – de todas as imagens.

Giorgio Agamben. Ninfe. Torino: Bollati Boringhieri, 2007. pp. 51-57. (Trad.: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Franz Ignaz Günther. Ninfa Clio escrevendo a história. 1763. Wallraf-Richartz-Museum, Köln.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Ideia da Musa

Em Le Thor, Heidegger dava o seu seminário num jardim sombreado por altas árvores. Mas, por vezes, saía-se do vilarejo caminhando em direção de Thouzon ou do Rebanquet, e o seminário acontecia então diante de uma cabana perdida em meio a um olival. Um dia, quando o seminário já estava chegando o fim e os alunos, ao seu redor, não paravam de lhe fazer perguntas, o filósofo simplesmente responde: "Vocês podem ver o meu limite, eu não." Anos antes, tinha escrito que a grandeza de um pensador se mede pela fidelidade ao próprio limite interno, e que não conhecer esse limite - e não conhecê-lo pela sua proximidade ao indizível - é a doação secreta que o ser, raras vezes, pode fazer.

Que uma latência seja mantida para que possa haver ilatência e um esquecimento custodiado para que possa haver memória: isto é a inspiração, o transporte suscitado pela musa que acorda o homem à palavra e ao pensamento. O pensamento está próximo à sua coisa somente se se perde nessa latência, se não vê mais a sua coisa. Isto é o seu caráter de ditado: deve haver a dialética latência-ilatência, esquecimento-memória, para que a palavra possa vir e não simplesmente ser manipulada por um sujeito. (Eu - é claro - não posso inspirar-me.)

Mas essa latência é, também, o núcleo tartárico em torno ao qual se adensa a obscuridade do caráter e do destino, o não-dito que, crescendo no pensamento, precipita-o na loucura. O que o mestre não vê é a sua própria verdade: o seu limite é o seu princípio. Não vista, não exposta, a verdade entra no seu ocidente, fecha-se no próprio Amanthis.[1]


"É concebível que um filósofo caia nesta ou naquela forma de aparente incoerência por amor deste ou daquele compromisso: ele próprio pode estar consciente disso. Mas aquilo de que ele não é consciente, é que a possibilidade deste aparente compromisso tem a sua raiz mais profunda numa insuficiente exposição do seu princípio. Se, portanto, um filósofo verdadeiramente recorreu a um compromisso, os seus discípulos devem explicar com base no íntimo e essencial conteúdo da sua consciência o que, para ele mesmo, tomou forma de consciência exotérica."


A insuficiente exposição do princípio o constitui como limite musaico, como inspiração. Mas, para poder escrever, para poder tornar-se também para nós inspiração, o mestre teve de abandonar a sua inspiração, teve que a esgotar: o poeta inspirado é sem obra. Este apagar da inspiração, que traz o pensamento da sobra do seu ocidente, é a exposição da Musa: a ideia.


Giorgio Agamben. Idea della Musa. In.: Idea della Prosa. Macerata: Quodlibet, 2002. pp. 39-40. (Trad.: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Cosmè Tura. Uma Musa. 1455-60. National Gallery, London.


[1] Nome que os antigos egípcios davam ao lugar de permanência das almas.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Jogos de Letras (glosa)


“La Bestia assassina.
La Bestia che nessuno mai vide.
La Bestia che sotterraneamente
falsamente mastina
ogni giorno ti elide.
La Bestia che ti vivifica e uccide...
......
lo solo, con un nodo in gola,
sapevo. È dietro la Parola.”
Giorgio Caproni
Brincar com letras indica o caminho para divagações gozosas, para a livração da imaginação e para o gesto de composição de palavras, este que pode provocar espanto – e os Nomes ou o Grito da Rã Grega de Pasolini são o mais claro exemplo – e lançar quem entra nesse jogo aos limites da linguagem. De todo modo, pode-se sempre armar, num texto, a brincadeira infantil diante das letras, o que, em certo sentido, excede a linguagem enquanto função comunicativa. E esse jogo é também um modo de não se referir a nada útil, mas a algo sutil como uma letra, um gramma, para dizer com Derrida. É curioso como uma letra desloca o emblema máximo dos tempos de capitalismo financeiro doentio no seu oposto. Os adjetivos útil e sutil, de fato, não são opostos; porém, o primeiro refere-se à necessidade, ao uso determinado e preciso, ao mundo da produção, já o segundo diz respeito a coisas delicadas, pequenas e refinadas (e, outra brincadeira: útil é paroxítona - claro, as palavras também podem ser estóicas: primeiro a força para depois ter o descanso numa ética do labor, mesmo que se possa pensar no sexo, se bem que de modo ainda muito cristianizado; sutil é oxítona - o climax vem aos poucos, é tântrico, é de gozo contínuo com uma explosão final).
Os substantivos utilidade e sutileza conseguem expor, mais que seus adjetivos, figuras desse mundo opositivo. Normalmente dizem que a lógica do mercado (a lógica do consumo que Pasolini sentia destruir o mundo ao seu redor) é a utilidade, que é imperiosa, que não dá tréguas, em que nela sobrevivem só os melhores; dizem que a sutileza é, por sua vez, para momentos precisos (normalmente associados ao "lazer" do homem médio - num discurso ainda dentro da lógica capitalista), não dado às coisas úteis. Em outra linguagem, poderíamos dizer que a utilidade é masculina, enquanto a sutileza é feminina (e isso se agrava ainda mais em estudos biológicos que apontam a caça – coisa verdadeiramente útil – ao macho, enquanto à fêmea restariam os trabalhos menos úteis e mais sutis - a preparação dos alimentos, o cuidado com a cria etc.). Obviamente que a distinção pautada no critério da necessidade não é taxativa (aliás, já foi dito que não é questão de dois opostos).
Ao jogar com um s, por exemplo, é possível abrir toda uma temática: com s diz-se sexo, palavra na qual a letra s aparece uma só vez, mas é dito duas. Nada mais gratuito que o sexo (a não ser que, escolástica e cretinamente, alguém queira dizer que sexo é para a reprodução – o que seria reafirmar a lógica da utilidade num espaço em que o predomina a sutileza). Foucault foi muito perspicaz ao dizer que diante do minúsculo segredo do sexo todos os enigmas do mundo parecem menores. Mas não se preocupando com os enigmas ditos no mundo, mas tão somente com o das letras, é possível abrir um jogo, como o da letra s (e, anfibologicamente, ao modo de Max Ernst no La Femme 100 têtes, no qual o número 100 funciona como uma caixa de letras – e sons – para uma brincadeira com a sentença: sans tête, cent tête, s'entête, sang tête...).
Pensar as letras é algo que já a cabala judaica fez. Toda a experiência mística dos judeus medievais se dava por meio da reflexão sobre o tetragrama sagrado. O nome com o qual deus nomeia a si mesmo é a tal ponto uma experiência da letra, que não pode ser proferido (nomen innominabile). Para o místico, o som e a letra coincidem e daí a força criadora do Nome. A auto-nomeação divina seria como que anterior ao primeiro ato da criação e esta, a criação, seria tão somente emanação das letras que compõem o nome divino (daí o caráter impronunciável do nome do deus judeu). Em hebraico a palavra ot quer dizer não somente "letra", mas também "signo". Daí as teorias cabalísticas pensarem as letras como assinaturas secretas (signos secretos) do divino em todos os graus do processo da criação. Isaac "o cego" – que Scholem diz ser talvez o primeiro cabalista provençal historicamente individualizado[1] – dizia que toda letra, como configuração de forças criadoras divinas, representa as formas supremas (divinas) e, ao assumir um aspecto visível no plano terreno, passa a possuir um corpo e uma alma. Esta, a alma, seria a articulação do espírito divino que vive na letra (proveniente do sopro da criação), de modo que todo o criado está fundamentado na linguagem divina, à qual, porém, os homens não têm acesso. A estes é deixada como herança a maldição de saber reconhecer as letras do nome divino (o tetragrama), porém, a impossibilidade de pronunciá-lo. De certo modo, falamos aqui de uma gramática do inominável, do que não pode ser proferido; isto é, no fundamento (a letra) de toda palavra e de todo proferir (a fonética, a voz), existe uma negação fundamental – a Voz. E, além da cabala judaica, também a gnose tardo-antiga e a mística cristã fazem tal experiência.
Henri-Charles Puech (que ocupou a cadeira de História das Religiões no Collège de France entre os anos de 1952 e 1972, e a quem Giorgio Agamben dedica seu ensaio sobre tempo e a crítica do contínuo em Infância e História), ao comentar a obra do mísitico Pseudo-Dionísio Aeropagita, indica como a relação de inadequação da apreensão mística de um sujeito cognoscente e um objeto desconhecido encontra seu ajuste na Treva (as condições para o sujeito ser iniciado e, ao mesmo tempo, como sinal da transcendência divina – de modo simétrico a como o silêncio é condição para o sujeito na espera divina e como Deus mesmo pode ser dito silêncio, Sigé). No caminho do místico ao êxtase, diz Puech,
Nuvem e Obscuridade aqui simbolizam, portanto, a impossibilidade de a união mística esgotar um objeto que permanence fora de toda apreensão, que não pode nem mesmo ser tomado como objeto. Elas marcam o limite que impõe à finitude do sujeito criado o caráter infinito Daquele que o êxtase só pode aproximar. É seguindo essa distância ou essa inadequação jamais colmatada que Aquele que é apenas Luz, ou mesmo que é superior à Luz como à Obscuridade, aparece como Treva.[2]
Em certo sentido, portanto, a união extática deixa um descarte pois à impossibilidade de conhecimento do místico é simétrica a impossibilidade de dar-se a conhecer de Deus. Nessas impossibilidades está a marca de uma busca de um conhecimento inconhecível que, como toda teologia apofática (negativa), é audaz em ir mais longe do que convém permitir.[3]
Em João da Cruz a metáfora da “noite escura” é um modo de relacionar-se com o negativo, com o aniquilamento de Deus por Deus na experiência do Calvário – isto é, a “maior obra” divina na experiência de seu próprio aniquilamento. Em seu História do Nada, Sergio Givone lê nessa anulação divina justamente – tal como sugeriu Taubes – a identificação de Deus e nada.
Somente no nada e frente ao nada Deus se reconcilia com o homem e o salva do nada mesmo. A potência da negação não deve perdoar nem a Deus nem ao homem. Se perdoasse ao homem, isto é, se o homem encontrasse em algum lugar um pretexto certo no qual ancorar sua existência, poderia precindir de Deus. E se perdoasse a Deus, Deus encobriria o homem tornando impossível, com seu simples ser, toda reunião com ele. Ao contrário, Deus se abandona à potência da negação, sem subtrair-se à nenhuma forma de autodestruição. Onde pode então o homem encontrar a Deus senão ali, na aniquilação da divindade?[4]
Tais misticismos, assim, abrem-se ao paradoxo contido na experiência de um negativo:
Que, enquanto é opacidade e desapossamento integral, a experiência final que ela implica é aquela, puramente negativa, de uma presença que não se distingue em nada de uma ausência; em sentido próprio, ela não é antes uma teologia (uma ciência de Deus), mas uma teo-alogia, que atinge uma incognoscibilidade última ou, ao menos, um conhecer apenas por opacidade e negação, uma apropriação cujo objeto é o Inapropriável mesmo, e que não é, por isso, substancialmente em um habitus doutrinal positivo, mas apenas metaforizável e aludivel por oxímoros, catacreses e outras “figuras e similitudes extravagantes”.[5]
A experiência em questão no êxtase, desse modo, é a de um tocar a borda da linguagem – ela que dá a única possibilidade de conhecer – que, como acompanhando a análise derridiana, é apenas o que há em linguagem.[6] Assim, a busca fundamental, a busca do fundamental na linguagem – pela via negativa – acaba por esbarrar no limite que é a linguagem mesma. Diz Derrida que a teologia negativa
não seria somente uma linguagem, e um teste da linguagem, mas antes de tudo a experiência mais pensante, a mais exigente, a mais intratável da “essência” da linguagem, um “monólogo” (no sentido heterológico que Novalis ou Heidegger dão a essa palavra), no qual a linguagem e a língua falam de si mesmas e constatam o que é Die Sprache spricht. De onde essa dimensão poética ou ficcional, às vezes irônica, sempre alegórica, da qual alguns diriam ser somente uma forma, uma aparência ou um simulacro... É verdade que, simultaneamente, essa árida ficcionalidade tende a denunciar as imagens, as figuras, os ídolos, a retórica. É preciso pensar em uma ficção iconoclasta.[7]
A busca mística, nesse sentido, é pela linguagem que fala, pelo toque na borda, pela intransponibilidade do ter-lugar da linguagem. E é este o silêncio do próprio lugar da linguagem. E a experiência do êxtase enquanto calar-se, um não proferir palavra diante do Absoluto (também ele silencioso) para nele se integrar num silêncio que tudo sabe, é um modo de tentar tocar o fundamento negativo (deus) da linguagem; ou, em outros termos, retomando aforismo 6.44 do Tractatus de Wittgenstein, aos conteúdos da linguagem com os quais dizemos “como o mundo é”, a experiência do negativo é a tentativa de ir além e, assim, experimentar o “que o mundo seja”.



[1] SCHOLEM, Gershom. Il Nome di Dio e la Teoria Cabbalistica del Linguaggio. Milano: Adelphi, 2005. pp. 45-53.
[2] PUECH, Henri-Charles. En Quête de la Gnose. I. La gnose et le temps. Paris: Gallimard, 2006. p. 126. “Nuée et Obscurité symbolisent donc ici l’impossibilité ou est l’union mystique d’épuiser un objet qui demeure hors de toute prise, qui ne peut meme être appréhendé comme objet. Elles marquent la limite qu’impose à la finitude du sujet créé le carctère infini de Celui que l’extase ne peut qu’approcher. C’est par suite de cette distance ou de cette inadéquation jamais comblée que Celui qui n’est que Lumière, ou même qui est supérieur à la Lumière comme à l’Obscurité, apparaît comme Ténèbre.”
[3] DERRIDA, Jacques. Salvo o Nome. Campinas: Papirus, 1995. Trad.: Nicia Adan Bonatti. p. 9.
[4] GIVONE, Sergio. Historia de la Nada. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2001. Trad.: Alejo González y Demian Orosz. p. 101. “Sólo en la nada y frente a la nada Dios se reconcilia con el hombre y lo salva de la nada misma. La potencia de la negación no debe perdonar ni a Dios ni al hombre. Si perdonase al hombre, es decir, si el hombre encontrara en algún lugar un pretexto cierto en el que anclar su existencia, bien podría prescindir de Dios. Y si perdonase a dios, Dios incumbiría al hombre volviendo imposible, con su simple ser, toda reunión con él. Por el contrario, Dios se abandona a si mismo a la potencia de la negación, sin sustraerse a ninguna forma de autodestrucción. ¿Dónde puede entonces el hombre encontrar a Dios sino allí, en la aniquilación de la divindad?”
[5] AGAMBEN, Giorgio. La “Notte Oscura” di Juan de la Cruz. In.: CRUZ, Juan de la. Poesie. Torino: Giulio Einaudi, 1974. Trad.: Giorgio Agamben. p. VII. “Il paradoso della teologia mistica è appunto questo: che, in quanto è opacità e spossessamento integrale, l’esperienza finale che essa implica è quella, puramente negativa, di una presenza che non si distingue in nulla da un’assenza; in senso proprio, essa non è anzi una teologia (una scienza di Dio), ma una teo-alogia, che approda a un’inconoscibilità ultima, o, almeno, a un conoscere soltanto per opacamento e negazione, a un’appropriazione il cui oggeto è l’Inappropriabile stesso, e che non è, perciò, sostanziabile in un habitus dottrinale positivo, ma soltanto metaforizzabile e alludibile per ossimori, catacresi e altre ‘figure e similitudini’.”
[6] DERRIDA, Jacques. Salvo o Nome... p. 43.
[7] Idem... p. 35.
Imagem: Caspar David Friedrich. Manhã de Páscoa. 1833. Museo Thyssen-Bornemisza, Madrid

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A Condição Humana


Desespero-me
Quando a espera finda
Nada além de vácuo e estrume
Fátuo Omnívoro que tecla
Tecla.

Gregor Samsa talvez tomasse inseticida
mas um inseto não pode ser suicida
(nem nas estórias de Kafka).


Imagem: Frank Kortan, “Dance Hall of Gegor Samsa”, 2008

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Delirium sem forma


"Je tiens l'appréhension de Dieu, fût-il sans forme et sans mode, comme un arrêt dans le mouvement qui nous porte à l'appréhension plus obscure de l'inconnu". Quando Georges Bataille pensou sua apreensão de um deus sem forma, eu já tinha perdido minha cabeça. Já sentia que não a possuía e que tampouco era por ela possuído. Alguém a tinha talhado com um corte frouxo e ao mesmo tempo sorrateiro para colocá-la junto de outras num museu de cabeças. Mal sabia eu que minha cabeça tinha se tornado um troféu de uma coleção cujas outras peças, outras cabeças, estavam lá, imaterialmente colocadas como fantasmas de imaginationes malae. Era ela agora parte de uma composição ilusória que dominava um horizonte de desejos e que, entretanto, sabia-se incapaz de amar para além da idealização de um obscuro e desconhecido objeto fantasmático. A cabeça, agora ilusão, agia criando a existência do irreal para idolatrá-lo como possível, porém, sabendo de sua impossibilidade. Era a prostração melancólica que tomava minha persona, como no momento da excitação de qualquer zona erógena, pelas delícias do gozo com fantasmas, les plus obscures de l’inconnu.

Imagem: Giotto. Êxtase de São Francisco. 1297-1300. (detalhe). Basílica de São Francisco, Assis.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Lévi-Strauss: Entre os homens algo realmente aconteceu




Martin Rueff
1. No capítulo XXI de Olhar, Escutar, Ler, numa página breve e singular, Lévi-Strauss nos chama a atenção sobre as últimas fórmulas do final de O Homem Nu.
Escrevendo o fim de O homem nu, tinha em mente a página grandiosa que termina o Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. Gobineau aí evoca o desaparecimento inelutável de nossa espécie: resultado que não poderia se passar por duvidoso, já que “a ciência, mostrando-nos que começamos, parecia sempre nos assegurar que nós deveríamos acabar”; e que chegarão “estas idades invadidas pela morte, na qual o globo, tornado mudo, continuará, mas sem nós, a descrever o espaço suas órbitas impassíveis”.
Lévi-Strauss assinala então um reconhecimento de dívidas ao confessar que deve um adjetivo a Gobineau: “impassível”. Como Gobineau tinha escrito “órbitas impassíveis", Lévi-Strauss termina sua obra prima com estes termos: “alguns traços rapidamente apagados de um mundo com a aparência a partir de então impassível e a declaração revogada de que eles existiram não quer dizer nada” (Lévi-Strauss, L’Homme nu, Paris, Plon 1971, 2009, p. 621).
Ora, uma vez que uma “declaração” não pode ser dita “revogada”, uma razão mais tenaz deve explicar a presença deste último termo: é a resistência do significante [órbita]. O sintagma original que associava um adjetivo escondido acaba por se referir (como o vermelho sob o negro de Rimbaud): a “órbita”* de Gobineau torna-se, pela redistribuição das letras, o “revogada” de Lévi-Strauss. Eis aí explicado um “mecanismo da criação literária”. Esse capítulo XXI pode assim ser considerado ao mesmo tempo como uma nota de escritor e como uma variação sobre a lógica estrutural do significante.
2. Mas, há mais.
A última página de O Homem nu evoca um cenário de fim de mundo e retoma, transformando-a, a fórmula de Mallarmé – “Rien [...] n’aura eu lieu [...] que le lieu” [Nada ... terá lugar ... senão o lugar][1]. No momento de finalizar o conjunto de suas Mitológicas, o antropólogo evoca o desaparecimento inelutável do homem da face de um planeta, também ele, condenado à morte. Ele faz alusão a esses traços, rapidamente apagados, do nada que o homem foi sobre a terra.
O fim de Olhar, Escutar, Ler dá alguma espessura a esses traços e tempera o pessimismo do moralista. Poder-se-ia também pensar, wishful thinking, que ele nos permite afrontar essa morte, que certamente nós esperamos como o último golpe, mas que também nos perturba e nos entristece, porque fecha a porta do século passado.
Lévi-Strauss acaba de evocar o sacrifício desses artistas do noroeste que retornam à natureza que os engoliu como as paisagens dos quadros de Poussin que fazem desaparecer os homens.[2]
Lévi-Strauss então especifica:
Vistas na escala dos milênios, as paixões humanas se confundem. O tempo não agrega nada nem retira nada dos amores e das raivas provadas pelos homens, dos seus engajamentos, de suas lutas e de seus espíritos: certa vez e hoje, são sempre os mesmos. Suprimir ao acaso dez ou vinte séculos de história não afetaria de maneira sensível nosso conhecimento da natureza humana. A única perda insubstituível seria a das obras de arte que esses séculos teriam visto nascer. Pois os homens só se diferem, e, até mesmo, só existem, por suas obras. Como a estátua de madeira que teve origem de uma árvore, somente elas [as obras] trazem a evidência de que no correr dos tempos, entre os homens, algo realmente aconteceu.
O algo da obra de arte é pouco mais que o nada do final de O Homem nu, mas faz compreender como a arte, em Lévi-Strauss, assim como em Kant, carrega sozinha uma resposta à questão “o que me é permitido esperar?”.
3. Este sistema de transformações que religa as últimas linhas dessas duas obras poderia ser estudado na obra do antropólogo. Poder-se-ia ler as sentenças dos livros de Lévi-Strauss, colocá-las em série e considerá-las, talvez, como as variantes de um só e mesmo mito teórico, o do desaparecimento do mundo, dado por hipótese na Krisis de Husserl e formulado, ousando-se, de maneira canônica, pelo poeta: o mundo vai acabar[3]. É também, segundo a própria confissão de Lévi-Strauss, “a lição do pôr do sol.” Essa fórmula conhece variações e é preciso nelas estudar as invariantes, as inversões e as simetrias desde Tristes Tropiques. (Lévi-Strauss 1955, p. 497). Ela toma emprestada, às vezes, a imagem que Chateaubriand legou ao autor de As Palavras e as coisas: a onda do tempo vem apagar na areia da história as letras desenhadas pela mão do homem[4]. Mas, sobretudo, diante dessa perspectiva desoladora, ela permite ao antropólogo perguntar-se com melancolia sobre o que é preciso salvar das produções da beleza natural e das produções da arte:
Mais vale, assim, deixar-lhes alguns testemunhos sobre tantas coisas que, pelo nosso descuido e por aquele de nossos continuadores, eles não terão mais o direito de conhecer: a pureza dos elementos, a diversidade dos seres, a graça da natureza e a decência dos homens (Lévi-Strauss, Anthropologie structurale 2, [1973] 1996, p. 337).
A estética selvagem repete e confirma a lição dos crepúsculos[5]. Tínhamos a beleza natural proveniente [pour tenir à la terre] da terra e a arte proveniente dos homens [pour tenir aux hommes] que provinham da terra [qui tenaient à la terre].
Estamos com [Nous tenons à]* Claude Lévi-Strauss.


Texto originalmente publicado nas revistas Po&sie (Dez/2009) e, com variações, Médiapart (24/dez/2009), em homenagem a Claude Lévi-Strauss, falecido em outubro de 2009.
Tradução para o Português: Vinícius Nicastro Honesko.
Imagem: J.M.W. Turner. O declínio do império Cartaginês. 1817. Tate Gallery, London


* N.T.: Orbe pode tanto significar “órbita” – uma superfície circular, tal como a trajetória dos planetas – , como substantivo, e, como adjetivo (do latim orbus), é o que se diz de uma parede completamente fechada, sem portas ou janelas.
[1] Mallarmé « Un coup de dés jamais n’abolira le hasard » [“Um jogo de dados jamais abolirá o acaso”] Œuvres complètes, Paris, Gallimard, La Pléiade, 1998, tome I, p. 385.
[2] No manuscrito de Olhar, Escutar, Ler, o capítulo III acabava com esta sentença: “As personagens [de Poussin] frequentemente reduzidas ao extremo aí são como esmagadas pela imensidão: rochedos, montanhas, florestas, fábricas.”
[3] Baudelaire, Fusées, Œuvres complètes, I, op. cit., p. 665 et Valéry, « Nous autres civilisations, nous savons maintenant que nous sommes mortelles » [Nós, civilização, sabemos agora que somos mortais] La crise de l’esprit, Œuvres, Paris, Gallimard, « Bibliothèque de la Pléiade », I, p. 988.
[4] « J’ai écrit un nom tout près du réseau d’écume où la dernière onde vient de mourir ; les lames successives ont attaqué lentement le nom consolateur » [“Escrevi um nome muito próximo das espumas onde a última onda acabou de morrer; as lâminas sucessivas atacaram lentamente o nome consolador”] Chateaubriand, Mémoires d’outre-tombe, IV, VII, 18, Paris, Flammarion, 1982, p. 403. Michel Foucault, Les Mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, p. 398.
[5] « Il m’était apparu qu’il y avait une sorte de constante, ou d’invariant dans ma pensée, qui faisait qu’après avoir pris un coucher de soleil comme le modèle même des problèmes ethnologiques que j’aurais à résoudre plus tard, en terminant le plus compliqué de ces problèmes, c’est-à-dire les quatre volumes des Mythologiques, je les revoyais sous la forme d’un coucher de soleil. […] On est en face d’une réalité extraordinairement compliquée, dont le déroulement est imprévisible, et qu’il faut tout de même essayer de décrire avec précision. Et à la fin, une fois dégagée une organisation, ou du moins m’être imaginé que je pouvais la dégager, je la revoyais inéluctablement s’abolir comme le spectacle du soleil couchant. » [“Parecia-me que havia uma espécie de constante ou de invariante no meu pensamento, que fazia com que após ter visto um pôr-do-sol como o próprio modelo dos problemas etnológicos que teria que resolver mais tarde, terminando o mais complicado desses problemas, isto é, os quatro volumes das Mitológicas, eu os veria novamente sob a forma de um pôr-do-sol. [...] Está-se diante de uma realidade extraordinariamente complicada, na qual o desenrolar é imprevisível e que é preciso saber descrever com precisão. E no fim, uma vez esclarecida uma organização, ou, ao menos imaginando que eu a podia esclarecer, eu a revia inelutavelmente se abolir como o espetáculo do sol se pondo] Lévi-Strauss, "Le coucher de soleil: entretien avec Claude Lévi-Strauss », Les Temps Modernes n° 628, p. 2-18, p. 8-9.
* N.T.: Como homenagem a Lévi-Strauss, 0 autor joga com os vários significados do verbo tenir (quando transitivo direto: ter perto de si, tomar para si, manter em certo estado, respeitar; quando intransitivo: estar afixado, estar contido; quando transitivo indireto: ter por causa, estar anexado, desejar). No caso, o autor brinca com o uso transitivo indireto [tenir à], marcando a “proveniência”, o “ter por causa”, nos três primeiros usos e o “estar junto de” no último. No entanto, o jogo está em marcar o “estar junto de” com o sinal de “ser proveniente de” dos três usos anteriores. Assim, “Estamos com Claude Lévi-Strauss” e “Somos provenientes de Claude Lévi-Strauss”.