segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
Pequeno parágrafo sobre a chuva
quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
O futuro segundo Giorgio Agamben
Visão do mundo grotesco (in Salò)
terça-feira, 24 de janeiro de 2012
Um outro sonho
segunda-feira, 23 de janeiro de 2012
Imaginação
A imaginação é uma descoberta da filosofia medieval. Nesta, ela atinge o seu limiar crítico – e, ao mesmo tempo, a sua formulação mais aporética – no pensamento de Averróes. A aporia central do averroísmo, que não cessa de suscitar as obstinadas objeções dos escolásticos, está, de fato, na relação entre o intelecto possível, único e separado, e os indivíduos singulares. Segundo Averróes, estes se conjugam (copulantur) com o intelecto único por meio dos fantasmas que se encontram no sentido interno (em particular, na virtude imaginativa e na memória). A imaginação recebe, desse modo, um caráter de todo modo decisivo: no vértice da alma individual, no limite entre o corpóreo e o incorpóreo, o individual e o comum, a sensação e o pensamento, ela é a extrema escória que a combustão da existência individual abandona no limiar do separado e do eterno. Nesse sentido, a imaginação – e não o intelecto – é o princípio que define a espécie humana.
Tal definição, no entanto, é aporética, porque – como Tomás insistentemente objeta na sua crítica, afirmando que, se se aceita a tese averroísta, o homem singular não pode conhecer – ela situa a imaginação no vazio que se escancara entre a sensação e o pensamento, entre a multiplicidade dos indivíduos e a unicidade do intelecto. Daqui – como a cada vez que se trata de apreender um limiar ou uma passagem – o vertiginoso multiplicar-se, na psicologia medieval, das distinções: virtude sensível, virtude imaginativa ou memorial, intelecto material ou agente etc. Isto é, a imaginação circunscreve um espaço no qual ainda não pensamos, no qual o pensamento se torna possível somente por meio de uma impossibilidade de pensar. É nesta impossibilidade que os poetas de amor situam a sua glosa à psicologia averroísta: a copulatio dos fantasmas com o intelecto possível é uma experiência amorosa e o amor é, antes de tudo, amor por uma imago, por um objeto de algum modo irreal, exposto, como tal, ao risco da angústia (que os stilnovistas chamam “dottanza”) e da falta. As imagens, que constituem a última consistência do humano e o único trâmite da sua possível salvação, são também o lugar do seu incessante faltar a si mesmo.
É sobre tal fundo que se deve colocar o projeto warburguiano de recolher num atlas – cujo nome é Mnemosyne – as imagens – as Pathosformeln – da humanidade ocidental. A ninfa warburguiana está carregada da ambígua herança da imagem, mas a desloca sobre um plano totalmente diferente, histórico e coletivo. Já Dante, no De monarchia, tinha interpretado a herança averroísta no sentido que, se o homem é definido não pelo pensamento, mas por uma possibilidade de pensar, então esta não pode ser realizada por um homem singular, mas apenas por uma multitudo no espaço e no tempo, isto é, no plano da coletividade e da história. Nesse sentido, trabalhar com as imagens significa, para Warburg, trabalhar no cruzamento não apenas entre o corpóreo e o incorpóreo, mas também, e sobretudo, entre o individual e o coletivo. A ninfa é a imagem da imagem, a cifra das Pathosformeln que os homens se transmitem de geração em geração e à qual ligam a sua possibilidade de encontrar-se ou de perder-se, de pensar ou de não pensar. As imagens são, portanto, um elemento decisivamente histórico; mas, segundo o princípio benjaminiano pelo qual se dá vida a tudo aquilo a que se dá história (e que aqui poder-se-ia reformular no sentido de que se dá vida a tudo aquilo a que se dá imagem), elas são, de alguma forma, vivas. Nós estamos habituados a atribuir vida apenas ao corpo biológico. Ninfal é, ao contrário, uma vida puramente histórica. Como os espíritos elementares de Paracelso, as imagens têm necessidade, para ser verdadeiramente vivas, de que um sujeito, assumindo-as, una-se a elas; mas em tal encontro – como na união com a ninfa-ondina – está ínsito um risco mortal. No curso da tradição histórica, de fato, as imagens se cristalizam e se transformam em espectros, dos quais os homens tornam-se escravos e dos quais sempre é preciso liberá-los novamente. O interesse de Warburg pelas imagens astrológicas tem a sua raiz na consciência de que “a observação do céu é a graça e a maldição do homem”, de que a esfera celeste é o lugar em que os homens projetam as suas paixões pelas imagens. Como para o vir niger, o enigmático decano astrológico que ele tinha reconhecido nos afrescos de Schifanoia, essencial é, no encontro com o dinamograma carregado de tensão, a capacidade de suspender-lhe e inverter-lhe a carga, de transformar o destino em sorte. As constelações celestes são, nesse sentido, o texto original em que a imaginação lê o que nunca foi escrito.
Na carta a Vossler, enviada poucos meses antes da morte, Warburg, reformulando o programa do seu atlas como uma “teoria da função da memória humana para imagens (Theorie des Funktion des menschlichen Bildgedöchtnisses)”, coloca-o em relação com o pensamento de Giordano Bruno: “Veja o senhor que não devo deixar escapar, de nenhum modo, como o fiz até agora, a possibilidade de entrar em relação com uma figura que me fascina há quarenta anos e que, pelo que posso ver, não encontrou até agora a sua justa colocação na história do espírito: Giordano Bruno.”
O Bruno a que Warburg aqui se refere em relação ao atlas só pode ser o Bruno dos tratados mágico-mnemotécnicos, como o De umbris idearum. É curioso que, no seu estudo sobre a Arte da memória, Frances Yates não se tenha dado conta de que os sigilos que Bruno insere nesse livro têm a forma de matrizes astrológicas. Essa semelhança com um dos objetos privilegiados das suas pesquisas não podia não ter tocado Warburg que, no seu estudo sobre a adivinhação na época de Lutero, reproduz matrizes quase idênticas. A lição que Warburg retira de Bruno é que a arte de dominar a memória – no seu caso, a tentativa de compreender através do atlas o funcionamento do Bildgedächtnis humano – tem a ver com as imagens que exprimem a subjetivação do homem ao destino. O atlas é o mapa que deve orientar o homem na sua luta contra a esquizofrenia da própria imaginação. O cosmos, que o mítico herói homônimo carrega sobre as costas (Davide Stimilli lembrou a importância desta figura para Warburg), é o mundus imaginalis. A definição do atlas como “histórias de fantasmas para adultos” encontra aqui o seu sentido último. A história da humanidade é sempre história de fantasmas e de imagens, porque é na imaginação que tem lugar a fratura entre o individual e o impessoal, o múltiplo e o único, o sensível e o inteligível e, ao mesmo tempo, a tarefa da sua dialética recomposição. As imagens são o resto, o traço daquilo que os homens que nos precederam esperaram e desejaram, temeram e reprimiram. E já que é na imaginação que algo como uma história tornou-se possível, é por meio da imaginação que ela deve a cada instante novamente se decidir.
A historiografia warburguiana (nisso muito próxima à poesia, segundo a indiscernibilidade entre Clio e Melpômene que Jolles sugeria num belo ensaio de 1925) é a tradição e a memória das imagens e, ao mesmo tempo, a tentativa da humanidade de liberar-se delas para abrir, além do “intervalo” entre a prática mítico-religiosa e o puro signo, o espaço de uma imaginação sem mais imagens. O título Mnemosyne nomeia, nesse sentido, o sem imagem, que é a despedida – e o refúgio – de todas as imagens.
Giorgio Agamben. Ninfe. Torino: Bollati Boringhieri, 2007. pp. 51-57. (Trad.: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Franz Ignaz Günther. Ninfa Clio escrevendo a história. 1763. Wallraf-Richartz-Museum, Köln.
domingo, 22 de janeiro de 2012
Ideia da Musa
Em Le Thor, Heidegger dava o seu seminário num jardim sombreado por altas árvores. Mas, por vezes, saía-se do vilarejo caminhando em direção de Thouzon ou do Rebanquet, e o seminário acontecia então diante de uma cabana perdida em meio a um olival. Um dia, quando o seminário já estava chegando o fim e os alunos, ao seu redor, não paravam de lhe fazer perguntas, o filósofo simplesmente responde: "Vocês podem ver o meu limite, eu não." Anos antes, tinha escrito que a grandeza de um pensador se mede pela fidelidade ao próprio limite interno, e que não conhecer esse limite - e não conhecê-lo pela sua proximidade ao indizível - é a doação secreta que o ser, raras vezes, pode fazer.
Que uma latência seja mantida para que possa haver ilatência e um esquecimento custodiado para que possa haver memória: isto é a inspiração, o transporte suscitado pela musa que acorda o homem à palavra e ao pensamento. O pensamento está próximo à sua coisa somente se se perde nessa latência, se não vê mais a sua coisa. Isto é o seu caráter de ditado: deve haver a dialética latência-ilatência, esquecimento-memória, para que a palavra possa vir e não simplesmente ser manipulada por um sujeito. (Eu - é claro - não posso inspirar-me.)
Mas essa latência é, também, o núcleo tartárico em torno ao qual se adensa a obscuridade do caráter e do destino, o não-dito que, crescendo no pensamento, precipita-o na loucura. O que o mestre não vê é a sua própria verdade: o seu limite é o seu princípio. Não vista, não exposta, a verdade entra no seu ocidente, fecha-se no próprio Amanthis.[1]
"É concebível que um filósofo caia nesta ou naquela forma de aparente incoerência por amor deste ou daquele compromisso: ele próprio pode estar consciente disso. Mas aquilo de que ele não é consciente, é que a possibilidade deste aparente compromisso tem a sua raiz mais profunda numa insuficiente exposição do seu princípio. Se, portanto, um filósofo verdadeiramente recorreu a um compromisso, os seus discípulos devem explicar com base no íntimo e essencial conteúdo da sua consciência o que, para ele mesmo, tomou forma de consciência exotérica."
A insuficiente exposição do princípio o constitui como limite musaico, como inspiração. Mas, para poder escrever, para poder tornar-se também para nós inspiração, o mestre teve de abandonar a sua inspiração, teve que a esgotar: o poeta inspirado é sem obra. Este apagar da inspiração, que traz o pensamento da sobra do seu ocidente, é a exposição da Musa: a ideia.
Giorgio Agamben. Idea della Musa. In.: Idea della Prosa. Macerata: Quodlibet, 2002. pp. 39-40. (Trad.: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Cosmè Tura. Uma Musa. 1455-60. National Gallery, London.
[1] Nome que os antigos egípcios davam ao lugar de permanência das almas.
sexta-feira, 20 de janeiro de 2012
Jogos de Letras (glosa)
quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
A Condição Humana
segunda-feira, 16 de janeiro de 2012
Delirium sem forma
"Je tiens l'appréhension de Dieu, fût-il sans forme et sans mode, comme un arrêt dans le mouvement qui nous porte à l'appréhension plus obscure de l'inconnu". Quando Georges Bataille pensou sua apreensão de um deus sem forma, eu já tinha perdido minha cabeça. Já sentia que não a possuía e que tampouco era por ela possuído. Alguém a tinha talhado com um corte frouxo e ao mesmo tempo sorrateiro para colocá-la junto de outras num museu de cabeças. Mal sabia eu que minha cabeça tinha se tornado um troféu de uma coleção cujas outras peças, outras cabeças, estavam lá, imaterialmente colocadas como fantasmas de imaginationes malae. Era ela agora parte de uma composição ilusória que dominava um horizonte de desejos e que, entretanto, sabia-se incapaz de amar para além da idealização de um obscuro e desconhecido objeto fantasmático. A cabeça, agora ilusão, agia criando a existência do irreal para idolatrá-lo como possível, porém, sabendo de sua impossibilidade. Era a prostração melancólica que tomava minha persona, como no momento da excitação de qualquer zona erógena, pelas delícias do gozo com fantasmas, les plus obscures de l’inconnu.
Imagem: Giotto. Êxtase de São Francisco. 1297-1300. (detalhe). Basílica de São Francisco, Assis.