"Não quero mais escrever cartas. Por que deveria dizer a alguém que estou me modificando? Se me modifico, deixo de ser aquele que era e passo a ser algo diferente do que até agora fui, e então é evidente que deixo de ter conhecidos. E a pessoas estranhas, a pessoas que não me conhecem, é impossível escrever." E com essa pequena reflexão do já velho de 28 anos Malte Laurids Brigge, começo a pensar no meu périplo missivo acumulado em papéis já amarelados, em caixas de lembranças, estejam estas intimamente guardadas no fundo de um guarda-roupas ou lançadas na distância das memórias virtuais de alguma central de emails mundo afora. Sempre pensei ter escrito de íntimo a íntimo, porém, a tolice disso está em colocar o íntimo, o que pensamos ser nosso próprio, como algo que podemos comunicar a um estranho, como se este também pudesse nos comunicar seu íntimo e como se, de estranhos, passássemos a ser próximos nas distâncias que as cartas tentam suturar. E construímos todo esse imaginário da intimidade distante com as vontades da memória, com as criações dessa pessoa que, ausente, seria apenas uma parte de nossos desejos mais íntimos (e talvez daqui a ilusão da comunicação de íntimo a íntimo quando, numa carta, somos nós que falamos a nós mesmos). Nossa tentativa forçada de dizer à ausente coisas com base na recordação que temos dela presente - uma pessoa estranha, portanto, e que, como nós, também se modificou (para não falar que quando presentes, também nos modificamos e assim, caro Brigge, somos sempre desconhecidos uns dos outros) - é uma forma de tentar interromper o esquecimento. E a nossa bobagem maior, talvez, seja a de creditar à memória os louros por nos fazer ser o que pensamos ser, quando a vida se movimenta mesmo é pelo esquecimento. "Do passado o que realmente importa é o que se esquece", dizia nietzscheanamente o mitólogo italiano Furio Jesi (e acho que é somente quando nos esquecemos que tomamos a liberdade, inclusive, de adverbiar um nome - é porque Nietzsche é esquecido que podemos nietzscheanamente falar e pensar). E não porque as recordações esquecidas são perdas eternas (nada nos é eterno, nem mesmo a sensação de eternizar, em busca da qual, parece, às vezes passamos a vida que nos passa), mas porque tudo sobrevive, não como uma vez já foi, mas, justamente, como perdido dentro de nós mesmos. E o velho Drummond já dizia que "A ausência é um estar em mim./ E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços./ que rio e danço e invento exclamações alegres,/ porque a ausência, essa ausência assimilada,/ ninguém a rouba mais de mim." Nas cartas as nossas vertigens do movimento da ausência, do esquecido, materializam-se na escrita, na tinta sobre o papel ou no binarismo 0/1 do arquivamento digital. São tentativas, mais ou menos eficazes, mais ou menos felizes, de fazer fulgurar por um momento aquela presença impossível por meio dos operadores da ausência mais eficazes que os homens já criaram: as palavras. E a sensação de uma ausência branca que ninguém rouba mais de mim retorna-me por meio dos pensamentos de Brigge. Só me resta hoje, neste domingo coroado por nuvens, esboçar meu sorriso.
"É ridículo. Estou aqui sentado em meu quartinho, eu, Brigge, que completei 28 anos e sou desconhecido de todos. Estou aqui sentado e não sou nada. E, contudo, esse nada começa a pensar e pensa, no quinto andar, numa cinzenta tarde parisiense, estes pensamentos:
É possível, pensa ele, que ainda não tenhamos visto, conhecido e dito nada de real e de importante? É possível que tenhamos tido um tempo de milênios para ver, refletir e anotar, e que tenhamos deixado os milênios passar como um intervalo entre as aulas em que comemos um pão com manteiga e uma maçã?
Sim, é possível.
É possível que apesar de invenções e de progressos, apesar da cultura, da religião e da filosofia tenhamos ficado na superfície da vida? É possível que tenhamos recoberto inclusive essa superfície, que, em todo caso, já teria sido alguma coisa, com um tecido inacreditavelmente aborrecido, de tal maneira que ela tenha a aparência dos móveis dos salões durante as férias de verão?
Sim, é possível.
É possível que toda a história universal tenha sido mal-entendida? É possível que o passado seja falso porque sempre falamos de suas massas, exatamente como se alguém falasse sobre uma aglomeração de pessoas em vez de dizer algo acerca do indivíduo em volta do qual estavam paradas, e isso porque ele era estranho e morreu?
Sim, é possível.
É possível que acreditássemos na necessidade de recuperar aquilo que aconteceu antes de nascermos? É possível que tivéssemos de lembrar a cada indivíduo que ele se originou de todos que vieram antes dele, que soubesse disso, portanto, e não se deixasse convencer pelos outros que tivessem um conhecimento diferente?
Sim, é possível.
É possível que todas essas pessoas conheçam com perfeita exatidão um passado que nunca existiu? É possível que todas as realidades nada sejam para elas, que suas vidas transcorram sem estar ligadas a nada, tal como um relógio num quarto vazio...?
Sim, é possível. (...)
Porém, se tudo isso é possível, se tiver apenas uma centelha de possibilidade - então, por tudo que há de sagrado neste mundo, algo tem de acontecer. A primeira pessoa a ter esses pensamentos inquietantes tem de começar a fazer um pouco daquilo que foi negligenciado; por mais que seja apenas uma qualquer, de modo algum a mais indicada: simplesmente não há outra. Esse jovem e insignificante estrangeiro, Brigge, terá de sentar no quinto andar e escrever, dia e noite: ele terá de escrever, é assim que isso acaba."
Imagem: Giorgione. As três idades. 1500. Galleria Palatina, Firenze.
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