domingo, 26 de abril de 2015

Pequeno parágrafo sobre o amor II



Quando soube que a missão das folhas é definir o vento senti um arrepio e uma espécie de vertigem. Qualquer saber a respeito desse mapa desenhado pelas folhas não é senão uma desrazão. Como cartas de amantes lidas em segredo, o sopro do vento definido pelas folhas mostra-se como o desenho da intimidade: uma presença distante que se torna, a cada instante, componente de minha própria existência. Mas o que sabe o amor? Não é o amor um estado no qual a espera pelo outro, enquanto totalidade a mim de todo estranha, entranha-se na minha profundidade mais recôndita, estado em que, assim, se vive na intimidade do absolutamente estranho que é o outro? Intimidade, aliás, é sempre a relação com esse outro que se ama, outro este que não é uma imutável essência, mas uma existência à qual dirijo a liberdade do abandonar-se (sem razões) ao amor. Intimidade que não é intimação, proximidade que é pura distância e estranhamento. Mas a liberdade do amor é a do acolhimento desse estranho, é a criação (ex nihilo) de um mundo em que a impossibilidade da partilha, uma vez (e a cada vez) assumida, pode ser o infinito dos sentidos. E, assim, o amor, esta palavra que diz tudo e nada ao mesmo tempo ("elas se refugiaram na noite, as palavras"), pode ser uma toada tola em que o poeta se deleita:

"E o amor sempre nessa toada!
briga perdoa perdoa briga.
Não se deve xingar a vida,
a gente vive, depois esquece.
Só o amor volta para brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.

Mas, se não fosse ele, também
que graça que a vida tinha?

Mariquita, dá cá o pito,
no teu pito está o infinito."

Imagem: Albrecht Altdorfer. Amantes. 1530. Szépmûvészeti Múzeum, Budapeste.

Un detective bolañesco



Los Detectives Helados 
Soñe con detectives helados, detectives latinoamericanos / que intentaban mantener los ojos abiertos / en medio del sueño. / Soñé con crímenes horribles / y con tipos cuidadosos / que procuraban no pisar los charcos de sangre / y al mismo tiempo abarcar con una sola mirada / el escenario del crimen. / Soñé con detectives perdidos / en el espejo convexo de los Arnolfini: / nuestra época, nuestras perspectivas, / nuestros modelos del Espanto. Roberto Bolaño 


manter os olhos abertos em meio ao sangrento sonho latino-americano
resíduos insones de um pesadelo mundial sem fundo nem saída 
um detetive mal alimentado e com dores de cabeça 
passeia em meio à tragédia 
vê o cenário de crimes de hoje e outrora 
não pode olhar desinteressadamente 
não pode ser um observador alheio 
vê a si, deploravelmente se vê 
no espelho convexo de sua tristeza 
como uma parte do cenário de ruínas 
despojo inútil que ainda pode ver e ficar triste 

nossa época, nossa perspectiva 
nossos alquebrados e sujos modelos de Espanto
que não levam à nenhuma revelação 

olha o cenário, os indícios dispersos, 
mas há lobos despertos 
e crimes horríveis e frescos 

é um detetive diletante e desarmado 
sua coragem é não ter esperança 
e olhar com olhos muito bem abertos 
no espelho convexo de sua tristeza    


Imagem: detalhe de "O Casamento dos Arnolfini", Jan Van Eyck (1434)
     

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Meus bares



quem fará honra a este pequeno asilo que visito em minha noites de tristeza
o boteco da velha portuguesa canto poeirento de outro tempo
um minúsculo lugar dentre vários de uma cidade onde se acotovelam
catorze milhões de pessoas?

quem fará honra ao bar da Iocha
ao telefone de disco da Iocha de onde minha família recebia notícias distantes
(em um tempo em que os orelhões de fichas eram raros nos arrabaldes)
ao balcão de fórmica, ao cheiro do bar da Iocha e seus doces de menduim?

quem fará a honra ao velho bar sem nome da avenida Souza Naves
onde um dia tive uma conta
orgulho de calouro ter uma conta de bar
(feita, na verdade, apenas para eu comer)
sempre paga por meu pai quando passava pela cidade
com o caminhão em busca de fretes
refúgio na estepe destruído para a construção de uma concessionária de automóveis?

olhai, poeta, para os bem-aventurados albergues a qualquer hora
onde se abrigam os nec spe nec metu
fazei honra à pequena fuga
à valência etílica
à única porta iluminada em meio ao nevoeiro da madrugada

pelo nome de Heródoto de Halicarnassus
de Xenofonte, o Espartano
de Paulo Mendes Campos e do sempre menino
Huckleberry Finn
façamos honra ao bares da memória
aos lugares sem honra e sem lugar

à pequena e verdadeira história
suja e sórdida
aos pequenos espaços esquecidos por todos
pouco lembrados mesmo no tempo em que existiam
a todos os seus habitantes
vivos, mortos ou imaginários

meu trago, um brinde

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Pequeno parágrafo sobre memória


São instantes que se embriagam de passado e nada mais. O tempo de uma palavra, de um suspiro, de um adeus. E esses galopantes instantes bêbados passam ao largo daquilo que uma vez ousamos chamar de vida. Estúpida hora em que o desejo se esvaiu em gozo e desenhou, com tintas de presente arredio, uma fantasiosa imagem de sonhos prenhes de sentido. As palavras do poeta ainda tocam a borda de meu corpo, como que pedindo entrada para serem soltas nessa imensidão vazia de presentes e passados em que a cada instante me transformo. Não há vozes para uma palavra, nem sopro para um suspiro, nem forças para um adeus. Um caos informe é o campo onde vagam os instantes, um sonho com o nada preenche o que se chamava memória, os traços persistentes das letras insistem em deixar suas marcas nestas cartas destinadas a lembranças impossíveis, e os ecos do poeta ainda se fazem ouvir: 

Mas tudo é apenas o que é 
levanta-te do chão põe-te de pé 
lembro-te apenas o que te esqueceu

Não temas porque tudo recomeça
Nada se perde por mais que aconteça
uma vez que já tudo se perdeu

Imagem: Jacob de Gheyn. Quatro estudos de uma mulher. 1602-3. Musées Royaux des Beaux-Arts, Bruxelas.  

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Pequeno parágrafo sobre o amor



Destituo da palavra amor qualquer sentido de ser palavra. Quantas vezes já não se perguntaram os homens por que as palavras os deglutem num perene movimento sem sentido. E a vida corre como um rio para nenhum mar (e as metáforas descem o rio para mostrar a incompletude certeira das palavras). Jorram palavras onde antes havia silêncio. Mas todas as coisas, ainda que faladas, continuam em sua mudez inexorável, toda sensação é incompleta na expressão que tenta, a todo custo, ser sua origem, exposição ou fim. Permaneço aqui, inerte, tentando escrever uma só palavra que dê o sentido do amor e nada acontece. Disse um filósofo que uma ideia do amor  é "viver na intimidade de um ser estranho não para dele se aproximar, para torná-lo conhecido, mas para o manter estranho, distante e mesmo inaparente - tão inaparente que seu nome o contenha por completo." Tudo não passa de uma evocação de um nome que, ainda assim, é de todo desconhecido? Pode ser. Mas também a neblina, que agora torna inaparentes os objetos mais próximos e esgarça qualquer pretensão de certeza, pode ser uma ideia do amor. Amar pode ser um erro sem palavras, pode ser uma carta escrita e jamais enviada (ou todas as que já foram destinadas), pode ser o puro movimento de nosso destino: o errar sem conta, afinal, a cada vez que alguém parte, resta apenas um adeus para nos lembrar quão errantes, e amantes, somos pela vida. E talvez nos sobre apenas uma estrofe de poema em que dizer a palavra amor não é nada mais que tentar vivê-la em erro:

"Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita"



Imagem: Lucas Cranach. A fonte da juventude (detalhe). 1546. Staatliche Museen, Berlin.