Existem absurdos ou erros que não cessam de deslocar e prejudicam o pensamento. O epíteto "teológico-político" faz parte deles (assim como o substantivo homônimo). Essa palavra pretende designar, no mínimo, a aliança e, no máximo, a consubstancialidade dos dois registros que assinala, o teológico e o político.
Se o que se objetiva é uma aliança, trata-se daquela que, não há muito, era mais livremente chamada (e que cantava Jean Ferrat) de "o sabre e o aspersório". Caso se queira falar de uma consubstancialidade, o que se implica é uma natureza fundamentalmente teológica da política, ou, o que daria no mesmo, o inverso. De um ou de outro modo, dizemos que a política está autorizada por uma vontade divina mais ou menos dissimulada, ou que a religião tem como único objetivo dominar a coletividade.
As alianças são flagrantes, não é preciso se delongar sobre isso. Não é uma razão para se enganar, isto é, para esquecer que toda nossa tradição, teológica e política, repousa sobre a separação das duas esferas. Essa separação está, de início, no judaísmo desde o fim do reino de Israel (e a respeito disso, o atual Estado de Israel vive numa contradição interna). Ela é fundamental no cristianismo (os dois reinos) e há muito tempo é uma questão ativa para o Islã[1] (para o qual o chamado ao califado hoje é apenas uma palavra de ordem integralista).
Com frequência, o "direito divino” da monarquia francesa é compreendido erroneamente como quase-teocrático, quando, na realidade, era um expediente para se desvincular da feudalidade e que, ademais, sua elaboração, tanto teológica quanto jurídica, foi muito complexa e sutil.
A própria monarquia inglesa não pode ser chamada de "teológico-política” pois ela é politicamente constitucional e religiosamente muito mais moral do que teológica. A religião civil dos Estados Unidos torna consubstancial à nação o "in God we trust” inscrito em sua moeda: essa teologia é assim uma plutologia.
Na verdade, a política se funda numa autonomia integral (soberana) da instituição de um povo que se declara tal, enquanto a teologia se funda sobre a autonomia de uma interrogação a respeito do objeto nomeado “deus” em relação ao qual não se pressupõe nada mais do que seu nome. Uma não tem nada a ver com a outra.
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Não podemos negligenciar essas relações elementares. Por um lado, Deus não tem nada a fazer na política. Por outro, e isso não é menos importante, a política não pode ignorar que ela está a cargo de tudo aquilo de que deus não se ocupa: ora, ele só se ocupa de seu próprio sentido (que ele é ou não é, e como é etc. – é isso a teologia). O sentido do mundo, ao contrário, não tem nenhum "sentido próprio"; ele se configura e se reconfigura sem cessar, sob forma de direitos, obras, ritmos, relações. A política não tem – sobretudo – que dar esse sentido (a não ser que ela tenha se transformado em teocracia, que não é política). Mas ela tem como tarefa abrir os acessos e permitir o exercício desse sentido: permitir que todos e cada um se deem seus sentidos.
Jean-Luc Nancy
p.s.: que não nos enganemos, se é preciso frisar, sobre o “Tratado teológico-político” de Spinoza, o qual trata apenas da separação dos dois; e também da "teologia política" de Carl Schmitt, que designa (erroneamente) o traçado secularizado de uma concepção (fundamentalmente política) do governo do mundo por deus por meio de sua Igreja.
[1] Lembremos de L'État inachevé – La question du droit dans les pays arabes, de Ali Mezghani, Gallimard, 2011.
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko