domingo, 29 de agosto de 2021

Teo-po - Jean-Luc Nancy





Existem absurdos ou erros que não cessam de deslocar e prejudicam o pensamento. O epíteto "teológico-político" faz parte deles (assim como o substantivo homônimo). Essa palavra pretende designar, no mínimo, a aliança e, no máximo, a consubstancialidade dos dois registros que assinala, o teológico e o político.


Se o que se objetiva é uma aliança, trata-se daquela que, não há muito, era mais livremente chamada (e que cantava Jean Ferrat) de "o sabre e o aspersório". Caso se queira falar de uma consubstancialidade, o que se implica é uma natureza fundamentalmente teológica da política, ou, o que daria no mesmo, o inverso. De um ou de outro modo, dizemos que a política está autorizada por uma vontade divina mais ou menos dissimulada, ou que a religião tem como único objetivo dominar a coletividade.


As alianças são flagrantes, não é preciso se delongar sobre isso. Não é uma razão para se enganar, isto é, para esquecer que toda nossa tradição, teológica e política, repousa sobre a separação das duas esferas. Essa separação está, de início, no judaísmo desde o fim do reino de Israel (e a respeito disso, o atual Estado de Israel vive numa contradição interna). Ela é fundamental no cristianismo (os dois reinos) e há muito tempo é uma questão ativa para o Islã[1] (para o qual o chamado ao califado hoje é apenas uma palavra de ordem integralista).


Com frequência, o "direito divino” da monarquia francesa é compreendido erroneamente como quase-teocrático, quando, na realidade, era um expediente para se desvincular da feudalidade e que, ademais, sua elaboração, tanto teológica quanto jurídica, foi muito complexa e sutil.


A própria monarquia inglesa não pode ser chamada de "teológico-política” pois ela é politicamente constitucional e religiosamente muito mais moral do que teológica. A religião civil dos Estados Unidos torna consubstancial à nação o "in God we trust” inscrito em sua moeda: essa teologia é assim uma plutologia.


Na verdade, a política se funda numa autonomia integral (soberana) da instituição de um povo que se declara tal, enquanto a teologia se funda sobre a autonomia de uma interrogação a respeito do objeto nomeado “deus” em relação ao qual não se pressupõe nada mais do que seu nome. Uma não tem nada a ver com a outra.


***

Não podemos negligenciar essas relações elementares. Por um lado, Deus não tem nada a fazer na política. Por outro, e isso não é menos importante, a política não pode ignorar que ela está a cargo de tudo aquilo de que deus não se ocupa: ora, ele só se ocupa de seu próprio sentido (que ele é ou não é, e como é etc. – é isso a teologia). O sentido do mundo, ao contrário, não tem nenhum "sentido próprio"; ele se configura e se reconfigura sem cessar, sob forma de direitos, obras, ritmos, relações. A política não tem – sobretudo – que dar esse sentido (a não ser que ela tenha se transformado em teocracia, que não é política). Mas ela tem como tarefa abrir os acessos e permitir o exercício desse sentido: permitir que todos e cada um se deem seus sentidos.


Jean-Luc Nancy


p.s.: que não nos enganemos, se é preciso frisar, sobre o “Tratado teológico-político” de Spinoza, o qual trata apenas da separação dos dois; e também da "teologia política" de Carl Schmitt, que designa (erroneamente) o traçado secularizado de uma concepção (fundamentalmente política) do governo do mundo por deus por meio de sua Igreja.





[1] Lembremos de L'État inachevé – La question du droit dans les pays arabes, de Ali Mezghani, Gallimard, 2011. 

 

Tradução: Vinícius Nicastro Honesko

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

O fim das gerações (ou quarto e sala em Cabul)


                                                                                                                                   

 A Renério Ribeiro de Almeida, in memorian 

A Thais, Tahyana e Bruno 


Experiência era o nome dado a tudo aquilo que uma geração poderia transmitir à outra. Seu conceito abrigava, de forma reconfortante, a ideia de uma passagem do tempo que envolvia formação e mudança, transmissibilidade de histórias e aprendizados, a própria diferença intergeracional garantida pela ritualização da morte - o luto como travessia, aprendizado da dor e liberação do fardo do passado – e incorporação desta em adultos (agora cientes de sua mortalidade) que receberão um legado para que possam edificar outras biografias e novas histórias.  

No fogo da resistência armada contra os nazistas, Capitaine Alexandre (codinome do combatente René Char) escreveu seu famoso aforismo em que afirma que “nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento”, publicado apenas em 1946 em Feuillets d'Hypnos, frase usada como mote por Hannah Arendt, uma década depois, para o conhecido postulado de uma quebra entre o passado e o futuro, que para a teórica significava o próprio fim da tradição: 

(...) o testamento, dizendo ao herdeiro o que será seu de direito, lega posses do passado para o futuro. Sem testamento, ou resolvendo a metáfora, sem tradição – que selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor, parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e humanamente falando, nem passado nem futuro (...). (EPF, p. 31)    

Para Arendt a tradição não é o passado, mas as coordenadas de referência da memória. Traditio, para o direito romano, era a entrega de uma coisa (res) a outrem, que consumava os direitos de propriedade da coisa para o recebedor. Na análise arendtiana, mais importante do que a própria coisa transmitida está o liame que vincula o passado ao presente. 

Um amigo de Arendt, refugiado que morreu em um posto da fronteira franquista, tentando sair de forma clandestina da França ocupada e da caça nazista, não lamentava o fim da tradição e a impossibilidade da experiência, vendo nesta pobreza uma possibilidade, “de começar de novo, de contentar-se com pouco, a construir com pouco”, sem um olhar profundo ou interior. Liberar-se do fardo da experiência é desnorteante – a vertigem da falta de chão embaixo de pés descalços – e liberador, mas é uma possiblidade que carrega sempre consigo o risco das superficialidades e das opacidades, sobretudo quando acompanhadas da nostalgia da velha tradição perdida (o ready-made de Duchamp e o urinol tornado objeto-fetiche de uma ideia de obra que não mais se sustenta ou que funciona apenas como uma mercadoria).  

A geração de Char, Arendt e seu amigo aqui oculto pôde olhar com espanto a quebra que se colocava entre ela e as gerações anteriores, presas ao ainda próximo séc. XIX. Talvez mais do que a tradição ou a experiência, hoje nos deparamos com o fim das próprias gerações. Mais de dois anos de pandemia, submersos em uma catástrofe climática para a qual não há soluções técnicas ou científicas, impossibilitados do luto da vida que tivemos de abandonar e até de nossos mortos, somos os últimos humanoides da terra, mesmo que nossa presença terráquea persista de forma indefinida. 

Os nonagenários ainda vivos e as crianças que acabam de nascer fazem parte da mesma geração de últimos, o que nos diferencia é que muitos buscam seus lugares em escapes inexistentes  - milhares de pessoas tentando entrar nos aeroportos de milionários escapistas que buscam evadir-se para lugares impossíveis, algumas agarrando-se desesperadas às asas das necroespaçonaves Virgin ou Amazon e sendo queimadas vivas pelas turbinas, outras gastando seus últimos dias na terra para trabalhar duro e comprar uma passagem impossível que nunca será vendida – ou estão em seu quarto e sala em Cabul, contemplando a cidade tomada, quando os elevadores já pararam de funcionar e o lixo de semanas se acumula nas escadas. 

Resta estar em vigília, sem temor nem esperança, sem herança nem testamento. Organizar uma evasão terrena, irremediavelmente terrena, cuidar de quem ainda persiste na vida, respirar fundo no resto de atmosfera, alvoradas e auroras que ainda temos. E não perder o deslumbramento de olhar as estrelas, mesmo que muitas delas já não existam, mesmo que não faça sentido algum, não contenha experiência alguma. 



imagem: noite de Kabul.