Ao terminar, quase com uma formule de politesse, a carta que escreve a Roberto Assumpção, de Roma, em 05/03/1960, o poeta Murilo Mendes assim se despede do amigo diplomata: "Desculpe-me a extensão desta. Estou habituado a escrever poemas curtos, mas em matéria de carta, sou às vezes torrencial, o que de resto me chateia, porque receio chatear os amigos." Dezessete anos antes, tuberculoso e internado num sanatório em Correias, distrito de Petrópolis, Murilo remetia sua primeira carta ao amigo, e, na linha de abertura desta, pedia desculpas por escrever a lápis, pois a caneta tinteiro havia quebrado. O poeta pede desculpas: por como as letras chegam, pela chateação que, talvez, uma longa carta pode causar, por não controlar a torrente de palavras que por vezes aparece na redação de uma carta - logo, de um mapa - a outrem. Há, nessas palavras de Murilo, uma possível chateação pelo fluxo das palavras, pela onda que constrói uma carta descontrolada e tomada pela ânsia comunicativa. Porém, nessa ânsia é que algo da linguagem comunicativa se perde em traços embaraçosos para o remetente. Mas de que se trata em tal embaraço? Por que essas "desculpas" por "atrapalhar a comunicação" - pelo excesso de palavras ou pelas palavras borradas e ilegíveis, aliás, tão comuns em cartas -, que seria o componente preciso de uma carta? Por que, quando escrevemos a outrem, parece que somos assolados por uma culpa qualquer que, como numa irrupção vulcânica, nos coloca uma quase "obrigação" das desculpas (mesmo que estas, por vezes, venham veladas)? Não seria essa culpa apenas o fato de falarmos, à distância, a alguém que, como nós, também nos fala desde seu silêncio ou de sua resposta? O poeta, que brinca com as palavras em seus poemas, vê-se, diante desse brinquedo inventado, culpado por não poder refrear sua ânsia de dizer, seu desejo, por vezes inconsciente, de fazer da palavra outra coisa que não mero instrumento de dizer; as desculpas são, de algum modo, pelo simples fato de falar. "A linguagem é a pena. Nela todas as coisas devem entrar e nela devem perecer segundo a medida de sua culpa", diz a poeta Ingeborg Bachamann. Numa carta, portanto, entramos numa relação silenciosa em que a distância nos lança todas as sombras dessa culpa, a culpa por excelência dos animais que falam. Desse espaço não encontramos nenhuma redenção e, como que fadigados por tanto dizer, insistimos nessas desculpas para preencher com a tinta do tempo o espaço que nos separa da pessoa que nos lerá...
Imagem: Gabriel Metsu. Mulher lendo uma carta. 1662-65. National Gallery of Ireland, Dublin.