"Qualquer que seja o Deus a ter entre suas incumbências velar pela correspondência dos terrestres, parece que os fios da nossa escaparam das suas mãos e caíram no poder de algum demônio do silêncio.
Naturalmente, admito que o poderio desse diabo não me é de todo estranho, à medida que o meu próprio mundo interior lhe serve de cenário." Essas palavras de Walter Benjamin, dirigidas ao amigo Gershom Scholem numa carta de 29 de março de 1936, ressoam pelo tempo e, ainda que destinadas ao amigo, hoje se abrem a este leitor qualquer que agora as cita. Mas essa intimidade - e toda intimidade é, tal como Agostinho em suas interpelações a deus, interior intimo meo, o mais profundo de mim que é atravessado por esse fora, pelo completamente outro - da amizade encontra, em cada carta que escrevemos, seu ponto de máxima combustão. Assim, quando em nosso cenário interior demônios-atores - e, para os gregos, o demoníaco (daimonion) estava sempre em relação com a felicidade (eudaimonia); ou seja, feliz é quem está na companhia de um "bom demônio" - atuam numa peça que a nós é sempre desconhecida, começamos a escrever um mapa, uma carta, a alguém que jamais o compreenderá de todo. Qualquer carta, portanto, não é senão um fragmento para dominar esses demônios silenciosos, uma tentativa de atribuir papeis a esses seres que nos fazem lançar palavras a outrem, e, desse modo, com as folhas preenchidas e com o mundo interior esvaziado, permanecemos, com a caneta em mãos, no recôndito de nosso silêncio.
Imagem: Lucas Cranach "o velho". A era de ouro (detalhe). aprox. 1530. Alte Pinakothek, Munique.
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